I.| O Catedrático

Lisboa, 1973

Maria Isabel Monteiro respirou fundo antes de bater gentilmente à porta com as nozes dos dedos. Era uma porta pesada, de madeira maciça, tão rígida quanto o rosto que se escondia atrás do fumo do cachimbo. A estudante agoirava uma repreensão severa, embora desconhecesse o motivo de ter sido chamada à sala do catedrático.

Expulsou o ar dos pulmões e ajeitou a saia, não fosse o senhor professor doutor imaginar que a bainha lhe ficava acima do nível do joelho. Ganhou coragem e, como menina meiga e educada, fez ressoar um som cavernoso que ecoou no gabinete do professor.

- Faça favor! - Disse uma voz grave vinda do interior da divisão.

A aluna rodou a maçaneta. Reverenciou o homem com um aceno de cabeça, que se manteve sentado e taciturno.

Na secretária de madeira, repousava um cinzeiro com um pó cinzento, uma pilha de papéis escritos à máquina e um tinteiro. Ah, esse tinteiro onde se molhava a caneta de aparo... Só de o ver, a jovem ficava agoniada. À memória, surgiu-lhe a imagem de uma menina de tenra idade, de bibe e lacinhos de fita de cetim pregados com alfinetes d'ama, cabelo aprumado e sapatinhos de fivela engraxados. Na carteira típica das Primárias, mesa e cadeira unidas, a criança treinava a caligrafia. Molhava a caneta no tinteiro e desenhava as letras numa escrita impecável, com o cuidado de poupar as folhas do caderno fornecido pelo Estado. Quis o azar que uma infame gota de tinta lhe borrasse o papel. De imediato, foi chamada à carteira da professora que dirigia a turma da escola exclusivamente feminina. Foi-lhe pedido que entregasse a mão. Os seus olhos captaram o objeto de tortura, uma régua de madeira dura. Sentiu uma dor aguda, que se repetiu por mais duas vezes. Fechou os olhos com força, mas não gritou. Era a disciplina a ser aplicada.

Pena tinha das colegas que nasciam com o infortúnio de terem o lado esquerdo como dominante. Reguadas era o que não lhes faltava. Chamavam-lhes as docentes de burras, estúpidas, pouco inteligentes. Algumas, com receio do castigo, treinavam persistentes a mão direita, opondo-se à sua própria genética, de forma a que a qualidade indesejada fosse ocultada.

Dos irmãos, que frequentavam a escola dos rapazes, Isabel ouvia as mesmas histórias. A régua pesada e firme, o livro de leitura que colocava o regime salazarista num pedestal e os professores, sempre do mesmo sexo que os alunos, que insultavam a seu bel-prazer os discentes por cada erro cometido e que até eram capazes de os colocar à janela com umas orelhas de burro recortadas em papelão.

Do decoranço e do enciclopedismo se faziam as mentes da miudagem da quarta classe. Ali se findava a escolaridade obrigatória, a qual muitos nem chegavam a completar. Sabiam ler, escrever, fazer contas de somar e de subtrair e assinalar os rios e os afluentes de Portugal. Dava-lhes a garantia desses saberes o maldito exame, composto por prova oral e escrita.

No ciclo preparatório, o rigor, muitas das vezes disciplinado pelas consecutivas agressões, não diminuía. O terror assumia a forma de ponteiro, utensílio que tanto servia para apontar para os acetatos como para admoestar os alunos. Seguiam-se os tempos de Liceu, ou Escola Técnica, e, por último, o Ano Propedêutico, que ditava o último ano de uma jornada de onze. Dali, saíam praticamente letrados e quase doutores. Na faculdade, ingressava uma minoria diminuta, muitas das vezes apenas para prosseguir o desígnio prestigioso da família, passado de geração em geração, de se tornarem médicos ou advogados.

- Vou direto ao assunto: gostaria de falar consigo sobre um dos seus trabalhos. O professor assistente alertou-me sobre alguns aspetos... específicos. - Pronunciaram os lábios sisudos do homem por debaixo do bigode.

Isabel engoliu em seco. Pela expressão carrancuda do docente, parecia estar envolvida em mais lençóis.

Na tentativa de acalmar o espírito desassossegado, a estudante de jornalismo desviou o olhar na direção da parede atrás do professor. Decorava-na um retrato de António de Oliveira Salazar, o ministro das Finanças que se propôs a salvar Portugal e que, entretanto, se tornara presidente do Conselho de Ministros, entretanto já falecido e substituído por Marcelo Caetano. Pendurada na parede, apresentava-se também uma réplica da Cruz de Cristo. Ornamentava ainda a sala uma bandeira portuguesa, vermelho do sangue derramado nas batalhas e verde de esperança.

- Eu e o professor assistente ficámos surpreendidos com algumas das suas afirmações a respeito da transmissão da informação nos meios de comunicação. Diz a menina que, citando, "A realidade que comunicada através dos jornais à sociedade civil perde a sua objetividade quando, num esforço corroído de atingir a plenitude da correção e do aprumo social, a transparência que tanto caracteriza o jornalismo começa a tornar-se opaca no instante em que frases são desfeitas pela rasura de palavras tidas como menos apropriadas". Por acaso está a tentar insinuar alguma coisa?

- Referia-me a um contexto sintático, Senhor Professor Doutor. - Tentou justificar-se rapidamente a aluna.

- Um contexto sintático? - O docente retorceu o nariz debaixo da nuvem de fumo que se intensificava em fúria. - Pois a mim parece-me um contexto mais crítico. Não está a revelar pensamentos revolucionários contra a Censura e contra o lápis azul, pois não, menina?

- Claro que não, Professor Doutor! - Exclamou de imediato a jovem. - Como poderia tal insolência? Bem pelo contrário! Prestigio muito a arte que têm em polir os textos que os jornalistas escrevem, de forma a que cheguem os mais concisos possível à população. Não queremos disseminar interpretações que nos conduzam à desordem total. Que dano seria na nossa sociedade tão ordenada...

- Sabe, menina, não é por acaso que ensinam às mulheres o talento da cozinha e da costura e aos homens o de administrar a família. Existe uma ordem natural nas coisas, o que não exclui a natureza humana. Nunca fui muito apologista da iniciação ao ensino misto nas universidades...

- Não quero discordar do Professor Doutor mas, em certas tarefas, existem mulheres que são tão capazes quanto os homens.

- Como nesta frase que acabei de lhe ler. Eu interpreto aqui uma coisa, a Maria Isabel outra. Em que é que ficamos?

- Já esclareci esse assunto. - Arrematou a rapariga, aflita.

- A jovem por acaso não tem irmãos rapazes que possam liderar a família e ganhar o sustento? Talvez a sua mãe precise mais de si em casa. A noite lisboeta é perigosa para uma menina indefesa como a senhora.

- Agora sou eu que vejo que o Senhor Professor está a insinuar que o lugar de uma mulher é em casa, a cuidar dos filhos, a cozinhar e a passar a ferro a roupa do marido.

- É preciso chamar alguém de... maior autoridade? - Interrogou o docente, a arquear as sobrancelhas e a apontar com a cabeça na direção da porta.

Não era segredo nenhum que havia polícia dentro dos portões das faculdades, muitas das vezes à paisana, bem como informadores da PIDE. Olhos perspicazes e ouvidos astutos, perscrutavam os corredores mirando de alto a baixo os estudantes à procura de revolucionários em crescimento na mais perigosa das classes: a letrada, a estudiosa, a sábia. Aquelas sementes de ervas daninhas, que ousavam estragar as plantações do Estado Novo, não deviam rebentar, e muito menos florescer.

- Não pude deixar de reparar no bom gosto do Professor Doutor para escolher cachimbos. - Disse Isabel, em busca de uma cápsula de fuga. - O meu pai também partilha do meu gosto e tem uma coleção lindíssima. Posso-lhe oferecer alguns. Creio que o Senhor Professor vá apreciar.

Uma prendinha ajudava sempre, quer fosse na altura das notas, quer fosse para pedir o favor de não reprovar. A jovem fazia fisgas para que o cheiro a graxice adentrasse as narinas do catedrático e o preenchesse com um aroma tonteante.

Felizmente, a rapariga viu frutos no seu plano. Saiu da sala impune, ainda que trouxesse o sobressalto no coração enquanto descia as escadas que davam acesso à rua de calçada que ladeava a Faculdade de Letras. Os membros da classe docente, qualquer que fosse o nível de ensino, eram criteriosamente escolhidos para corresponderem aos princípios e valores do regime. Tinha de ter mais cuidado com o que escrevia e mais tento na língua.

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