~ Capítulo Único ~
Talvez fosse porque o céu se parecia com uma cortina negra que se estendia por todo o Egito.
Ou talvez porque, nos últimos dias, todo o tipo de calamidade mais terrível havia acontecido. Quer dizer, uma chuva de pedras? Onde já se viu uma coisa assim?
Não que acontecesse com ele, é claro. Eram rumores que escutava.
Tudo ocorria longe do quintal de seu patrão. Ali as coisas iam bem, e vira e mexe aparecia algum nativo metido a besta para pedir ajuda ao "escravo", como o chamavam.
Outro dia mesmo lhe imploraram por água, como se as fontes dos egípcios não fossem infinitamente superiores às dos judeus. Estranho, ele sabia, e não parava de remoer.
Entretanto, ainda que nada o tivesse atingido até agora, nosso herói sentia, no fundo de sua alma, que algo estava prestes a mudar.
Agnus não tinha exatamente certeza. Tudo o que sabia era que estava agitado, evidentemente mais do que o normal naquela noite. Magda, sua mãe, havia acabado de cantar para ele dormir. Não que a senhorinha não fizesse isso sempre, mas naquele fatídico dia, algo obscuro assombrara seu coração. Então ele pediu que ela cantasse uma cantiga especial de ninar, que relembrava os velhos costumes, das pessoas antigas, do século em que um cordeiro foi usado como expiação no lugar de um menininho.
‒ Vai acontecer. Eu posso sentir ‒ disse ele, achando que ela não ouvia. Mas a mãe se aconchegou ao seu lado para fazer que se sentisse aquecido, visto que tremia.
‒ Por que você acha isso? ‒ retrucou ela, impossibilitada de manter a língua dentro da boca. ‒ Nosso dono não tem muitos pecados. E não é comum que um de nós seja usado para um propósito como esse. E olhe que já sou bem velha. Muitas gerações de cordeirinhos já passaram por meus olhos e...
‒ Eu sei, mamãe ‒ interrompeu, sonolento. ‒ Não poderia explicar. Apenas sinto.
Então, depois de um bocejo não anunciado, ele dormiu.
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Enquanto dormia, Agnus evidentemente sonhava, mas de alguma forma tinha consciência disso. Ele estava andando pelo pasto onde cresceu, quando algo se iluminou no céu.
Tentou firmar as patas na grama, ao som da voz estrondosa que saia da luz.
Cada palavra que ouvia confirmava sua suspeita. E lhe pesava o coração compreender o estava por vir.
Precisou perguntar-se a si mesmo se estava disposto a fazer como o heroico cordeirinho do passado, que subiu uma montanha para poupar a vida do filho do seu senhor. Agora seria a vez de Agnus, pelos primogênitos de sua família.
A vida de um pelas de muitos. Uma importante e dolorida missão.
Foi o rosto da mãe que o jovem viu quando abriu os olhos.
‒ Você sempre foi perfeito ‒ suspirou ela, com pesar.
‒ Então você sabe ‒ disse ele, erguendo-se do chão. ‒ Sabe o que há de vir no dia de hoje.
A mãe assentiu.
‒ Agora eu sei. ‒ Os olhos dela se desviaram para o tronco do filho. ‒ Não há mancha no seu pelo ‒ comentou, parecendo distraída. Como ela podia se distrair diante da iminente tragédia?
‒ Ao que parece sou o único por aqui ‒ afirmou ele, e pela primeira vez teve coragem para encará-la. ‒ A senhora não se oporá?
‒ Você faria isso?
‒ Eles são apenas escravos, é o que dizem. Mas são as nossas pessoas, não são? Se houvesse outra maneira... um meio de evitar o sacrifício. Sou seu único filho, afinal. A senhora não acha que pode haver?
O pescoço de Magda pesava, pelo mais doloroso menear de cabeça que já havia feito.
‒ Então ‒ murmurou ele, quase num fiapo de voz. ‒ Então que seja como tiver que ser.
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Quando a noite escura caiu e a gélida morte por ali passou, os gemidos dos egípcios podiam ser ouvidos ao longe.
Na pequena casinha, porém, sob os umbrais tingidos em vermelho sangue, não houve lamento.
Entretanto, ao quintal, as lágrimas de Magda derramadas pelo filho. As outras mães, dos cordeirinhos malhados, cochichavam a seu respeito.
Como podia uma mãe abrir mão de um filho sem lutar?
Ela, no entanto, tudo o que fez foi aconchegar-se no cantinho de sempre, embora sozinha desta vez, lembrando-se do que a voz poderosa a dissera, e ‒ apesar de triste ‒ sentindo-se grata por ser escolhida para gerar o único cordeirinho que poderia cumprir a mais importante missão.
Fim.
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