Capítulo 02 - Ganho um celular e começo a ficar paranoica.
O Som Do Trovão — Livro I
Ainda estava um pouco presa pelo choque quando, o cara que julgava ser o tal Perseu, resmungou parecendo um pouco mais incomodado:
— Apenas Percy. — Murmurou desviando o olhar, ele parecia estar incomodado com meu olhar que o estudava e ainda se mantinha confuso pela semelhança do rapaz com minha irmã, os mesmos olhos verdes azulados que lembravam perfeitamente das ondas do mar, principalmente o mar quente e vibrante do mediterrâneo, que tanto sentia saudade.
— Audrey? — O Sr. Gibbson me chamou, mas o ignorei ainda paralisada. — Audrey! — Disse um pouco mais alto que me despertou do meu transe, fazendo-me dar um sobressalto e balançar a cabeça para os lados, como forma de me livrar daquele estado.
Raspei a garganta, respirando fundo olhei na direção do meu professor de história americana — cortando o contato visual com Percy pela primeira vez —, abri um sorriso falsamente gentil.
— Sim, sim! Mostrar o reformatório, claro! — As palavras saíam automaticamente da minha boca. — Por favor, queiram me acompanhar. — Olhei para os dois, com uma gentileza evidentemente falsa, esticando o braço em direção ao corredor à minha esquerda, dando passagem para eles.
Ambos apenas assentiram e começaram a andar a minha frente. Entretanto, imediatamente lembrei-me que agora tinha aulas de ciências sociais e para continuar com meu bom comportamento para que assim o juiz pudesse libertar Bell e eu, nós dois também tínhamos que ter 100% de frequência nas aulas para ter ainda um "bom comportamento". Não vou mentir que não fiquei feliz pela primeira vez em minha vida em ter aula de ciências sociais, pois com certeza isso iria me livrar do trabalho de mostrar o reformatório para aqueles dois esquisitos.
— Oh, Audrey não se preocupe, avisarei a Sra. Jacob sobre o motivo da sua ausência na aula dela. — O Sr. Gibbson sorriu mostrando seus dentes brancos e alinhados.
E lá se vai meu plano de me livrar dessa responsabilidade.
Na verdade, eu odeio responsabilidades, sim, é difícil de acreditar, mas acreditem: não sei lidar com responsabilidades. Por dois motivos óbvios: sou irresponsável e responsabilidade são para pessoas que são sortudas e tem uma liderança e facilidade em tomar as melhores decisões, qualidades importantes que tanto eu quanto Bell não temos.
O fato de apresentar o reformatório para os novatos, também não é uma boa ideia para mim, visto que o mesmo cara que mostrou a Gray Scott para Bell e para mim, foi o mesmo que tentou esfaquear meu irmão e o culpado pelas cicatrizes na minhas costas: Jack Lennon. Então não possuo boas experiências sendo guia, sem falar qual foi o crime que esses dois haviam cometido para estarem ali? Assassinato? Sequestro? Envolvimento com drogas? Ou seria tráfico? Roubo? Não saberia dizer com plena certeza, entretanto a única coisa que poderia dizer é que eles são problemáticos, pois caso fosse o contrário, eles não estariam aqui.
Parei de me perder em meus pensamentos, no instante em que me toquei que os dois esquisitões haviam parado de andar e me olhavam fixamente, mostrando que eles estavam apenas me esperando, enquanto ainda me mantinha parada no mesmo lugar de início, com o Sr. Gibbson ao meu lado, também me observando, no momento em que também ajeitava seu blazer xadrez. Droga! Mais uma vez me perdi nos meus pensamentos!
Respirei fundo, apertando com força a alça da minha mochila, o suficiente para marcar minha palma da mão com minhas unhas. Tratei logo de andar depressa na frente, pois acreditava que quanto mais rápido começasse essa tortura, mais rápido estaria livre daqueles dois. Ouvia os passos deles, ecoarem por detrás de mim, o que significava que eles estavam me seguindo mesmo com a minha mania de andar sempre rápido — crédito todo das minhas longas pernas.
— Qual é a de vocês? — Perguntei sem olha-los, ainda permanecendo de costas.
— Como? — Ouvi um deles perguntar, mas não soube distinguir se a voz pertencia a Grover ou Percy, que havia questionado.
Suspirei me virando para os dois, parando de andar o que os obrigou a pararem também.
— Pílulas, remédios, tornozeleiras, acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, o que carinhosamente chamamos de "avaliação". — Expliquei. — O que vocês precisam para não ter um surto ou ataque psicótico, ou seja, o que mantem vocês sãos.
Os dois trocaram olhares intensos, como se pudessem conversar com aquele simples ato. Algo que me pareceu estranho, mas se for pensar todos na Gray Scott são estranhos ou esquisitos, inclusive eu e Bell. Porém, acreditava que talvez poderia ser um choque para eles estarem em um reformatório pela primeira vez na vida, algo que não aconteceu com Bell, mas comigo a história foi outra...
Ainda lembro-me que nas minhas primeiras semanas, tinha muitos acessos de crises de ansiedade e de fúria, a verdade é não gosto de coisas novas das quais sou obrigada a me acostumar ou adaptar, chorava constantemente e só me acalmava quando Bell estava comigo. Havia sido difícil me acostumar com a minha nova casa na américa, e quando finalmente consegui, sou subitamente arrancada do meu lar e obrigada a lidar com um ambiente totalmente diferente do que estou habituada com pessoas estranhas que nem sequer conheço. Sempre tive uma grande dificuldade de adaptação às coisas diferentes e acima de tudo uma dificuldade para me socializar com pessoas que me são estranhas.
Depois de um tempo consegui me adaptar mesmo com dificuldade e ainda consegui fazer uma amizade sólida com Molly, apesar de ter curtos diálogos com outros alunos como Derek, Matthew, Logan, Lisandra e Duncan. E não posso me esquecer que Lana também era uma pessoa importante para mim e Bell, isso antes dela se dopar com vários e diferentes medicamentos, se atirando da janela do quarto andar, assim quebrando seu pescoço.
— Remédios e acompanhamento psiquiátrico, nós dois. — Grover disse ainda se apoiando em suas muletas, mostrando um sorriso, que desapareceu no mesmo instante em que ele viu minha sobrancelha arquear.
Por sorte, quando ele disse aquilo, me impediu de reviver a lembrança dolorosa do suicídio de Lana. O que na verdade foi um alívio, pois faz cerca de um ano e meio que Bell e eu conseguimos nos recuperar desse baque com o nosso psiquiatra e esquecer a maldita lembrança, a enterrando bem fundo dentro de nossas mentes, para jamais ser desenterrado.
— E você? — Surpreendentemente quem perguntou foi Percy, que olhou instantaneamente para meu tornozelo esquerdo, onde estava minha tornozeleira exposta fora da minha calça jeans e como sempre as luzes de led vermelhas e azuis pareciam se alternar a cada segundo.
Às vezes, esquecia-me que tinha isso, dado ao tempo que estou a usando e também por me lembrar que ela só estava realmente ali quando iria tomar banho, uma vez que não poderia deixa-la molhar, caso não quisesse ser eletrocutada, ou quando iria tirar ela do meu tornozelo para dormir de forma confortável ou quando também tinha que mascarar minha localização, como era o que iria fazer hoje. Bell também tinha uma, na verdade, só os alunos que eram consideramos "perigosos" tinha uma dessas em seu tornozelo.
Por sorte nenhum de nós dois ainda não tínhamos sido eletrocutados, o que geralmente acontece quando se envolve em uma briga feia com outros alunos ou represente uma ameaça para as pessoas ao seu redor. O que aconteceu exatamente com Jack, quando ele me esfaqueou, sua tornozeleira foi acionada e ele foi eletrocutado de uma maneira tão bizarra que queimou sua própria pele, deixando-a na carne viva e chamuscada, ninguém nunca fala sobre o ocorrido, mas acreditam que houve uma falha em sua tornozeleira o que a fez dar um choque de mais de mil volts nele.
Aquilo foi extremamente macabro.
— Meu irmão e eu somos piromaníacos, incendiamos nossa casa. — Dei de ombros.
Acredito que Percy já havia feito àquela pergunta sabendo o significado de se usar uma tornozeleira elétrica em seu tornozelo. Pois sua expressão quando disse aquilo permaneceu neutra, entretanto, percebi que ele uniu as sobrancelhas como se estivesse tentando decifrar um enigma, diferente da de Grover que ficou visivelmente surpreso, para não dizer assustado, se esse foi o caso ele pareceu se recuperar rapidamente.
Sei que talvez não deveria contar para eles o meu crime que me fez ficar ali, entretanto era uma questão de tempo até que eles soubessem pelos boatos do incêndio que fizemos. Ou seja, de qualquer forma eles saberiam, cedo ou tarde. Desde o incidente com Jack, Bell e eu ficamos muito famosos e conhecidos o suficiente para termos apelidos como: "gêmeos piromaníacos" ou "tochas humanas" e outros ainda mais sem graça que os veteranos colocaram em nós.
Depois que disse aquilo, permanecemos em silêncio, enquanto mostrava algumas instalações da Gray Scott, murmurando e apontando com o indicador ou polegar direito: "A sala a esquerda, com a enorme porta, é onde fica o refeitório" ou "Ali fica a sala de esgrima" ou "Olha, aqui é a sala de artes, parece que os melhores artistas tendem a ter algum distúrbio mental, Salvador Dalí é a prova viva disso" e essa última foi à única apresentação, em que achei relevante fazer um comentário irônico. Após isso, os apresentei o restante do prédio com suas respectivas salas com aulas especificas, como a sala de aulas de biologia geral e a sala de história americana. Quando finalmente terminei a apresentação oficial de todas as salas do prédio principal, com direito a enfermaria e a ala psiquiátrica, na qual eles poderiam pegar seus medicamentos e consultarem com o psiquiatra.
Ainda faltava mostrar a eles os dormitórios e a ala externa da Gray Scott. Contudo, para mim algumas vezes ficava claro que tanto Percy quanto Grover pareciam cochichar entre eles, enquanto mantinham seus olhares fixos a mim, tampouco prestando atenção nas coisas que falava ou lhes apresentavam. Confesso que aquilo me causou certo incômodo e por pouco não os questionei sobre o motivo de estarem cochichando, preferindo assim ignora-los para essa tortura acabar.
— Você não é daqui, não é mesmo? — Ouvi Grover questionar, provavelmente tentando começar um assunto comigo. — O seu sotaque e seu inglês é carregado. — Observou.
— Sou grega. — Expliquei.
— Ah? — Rebateu confuso, acho que ele não tinha me ouvido muito bem.
— Sou da Grécia, especificamente de uma ilha do país no mediterrâneo, Creta. — Respirei. — Meu pai era americano, o que explica o meu nome e sobrenome em inglês e não em grego.
Todos meus irmãos e minha mãe, nascemos em Creta, lá era não só nossa cidade—estado natal, como também foi o nosso lar durante alguns anos. Até nossa mãe ser convidada a dar aulas na renomada UVA, por um bom salário que iria possibilita-la criar os três filhos, pois infelizmente ela tinha ficado sem trabalho e só a mensalidade que o governo americano nos mandava — por nosso pai ter morrido em guerra —, tornava uma mixaria quando os dólares eram convertidos em euros, sem falar que Creta é uma ilha extremamente cara. Viemos para os Estados Unidos com Bell e eu com 11 anos de idade e Cassie com 14, no início tivemos muita dificuldade para aprender o inglês — pois quando se é disléxico a dificuldade só aumenta quando se trata de aprender um novo idioma.
Entretanto quando morávamos em Creta nossa mãe nos educava em casa, o que significava que nenhum de nós havíamos pisado em uma escola antes dos 11 ou 14 anos e em meio às aulas que nossa mãe nos dava, ela nos ensinou grego antigo, latim clássico e o arcaico — que eram os únicos idiomas em que nossa dislexia não atacava e conseguíamos ler perfeitamente. A língua inglesa, nossa mãe também nos ensinou, confesso que demorou muito para que pudéssemos falar com fluência, mas ainda sim, não havíamos perdido o sotaque e a mania de às vezes falar uma sílaba mais forte do que a outra, tornando nosso inglês totalmente carregado, mostrando perfeitamente que éramos estrangeiros.
— Entendi, mas as pessoas de Creta não são todas bronzeadas?
— Deve ser por isso que expulsaram meus irmãos e eu de lá. — Sorri irônica, o que fez Grover rir.
No início foi difícil me acostumar ao clima temperado da Virginia, tão diferente do clima quente e úmido de Creta, mas quando Bell e eu estávamos finalmente nos adaptando a nossa casa e o fato de irmos à escola pública do nosso bairro, o incêndio aconteceu e desde então estamos confiados aqui desde dos 13 anos. Confesso que ainda sinto saudade de Creta, as músicas, as pessoas animadas e as paisagens encantadoras, a única coisa que não sinto falta é o mar, o que chega ser ridículo para uma grega não amar o mar de sua própria pátria, mas sim, eu odeio o mar ou até mesmo piscinas, na verdade qualquer coisa que tenha profundidade e água, me assusta.
Talvez esse fosse o verdadeiro motivo pelo qual evitava olhar o tal Percy nos olhos, seus olhos me lembram do mar e o mar me causa um medo avassalador.
Esse grande medo vem de um acidente que sofri no mar quando criança, que faço um grande esforço para não lembrar-me e também para estar bem enterrado no fundo da minha mente.
Após atravessar o grande salão principal no térreo, para chegar ao bloco B, o prédio onde localizava os dormitórios. Os corredores dos dormitórios eram bastante largos e repleto de portas, cada uma com a decoração exclusiva de cada um dos alunos ali — um prêmio de consolação para nos fazer se sentir em casa —, meu olhar quase que institivamente recaiu sob a porta colorida de roxo com alguns desenhos de caveirinhas brancas, fazendo-me sorri de lado: aquele era o quarto de Molly.
Mesmo estando no inicio do corredor, ainda era possível ouvir o som alto de heavy metal que vinha da porta negra com um grande aviso desenhado em tinta vermelha escarlate: "CAÍ FORA, OTÁRIOS". Bell e eu conhecíamos muito bem aquele quarto, pois era o quarto de Derek, o mesmo contrabandista que te arrumava qualquer coisa pelo preço certo e o mesmo do qual estava precisando para pegar a encomenda que havia o pedido para mim.
Respirei fundo antes de dar longos passos até o quarto de Derek no final do corredor, sendo seguida pelos novatos, sei que talvez não deveria negociar na frente deles, mas estava ansiosa demais esperando Derek arranjar o que eu o havia pedido. Estava algumas noites sem dormir graças à ansiedade e Derek havia me prometido que essa semana minha encomenda chegaria ou talvez até tinha chegado, sim ou não, estava mais do que preparada para fazer a pergunta de um milhão de dólares.
Quando bati com força cinco vezes na porta negra, já sentia minhas mãos começarem a suar e ficarem inquietas juntamente com meus pés, que batiam incontrolavelmente contra o chão, também estava mordendo com força o lábio inferior sentindo minha ansiedade crescer cada vez mais a cada segundo que se passava e Derek não abria a porta. Até que estava prestes a bater pela sexta vez, quando o loiro de olhos avelã sem camisa e com um cigarro nos lábios abriu a porta, com um semblante mal humorado que pareceu desaparecer quando viu que se tratava de mim.
— Garota em chamas. — Sorriu, apoiando seu antebraço sob o batente da porta. — O que a trás a minha humilde toca? Ou melhor dizendo, meu humilde cafofo?
A fumaça forte de maconha logo invadiu minhas narinas irritando meus olhos, obrigando-me tossir um pouco. E o alto barulho da música potente quase fez meus tímpanos explodir.
— Amarelo, verde e vermelho. — Respondi ainda tossindo por culpa da fumaça.
Derek logo entendeu o código e assim saiu do batente da porta dando passagem para entrar, mas logo quando passei, seu braço estendido travou sob a porta impedindo a passagem de Percy e Grover, com um olhar sombrio.
— Quem são? — Perguntou num tom ríspido e duro.
— Derek, relaxa, eles estão comigo. — Disse me jogando na poltrona vermelha do seu quarto. — São novatos...
Meu amigo pareceu relaxar um pouco e logo abaixou o braço deixando os dois entrarem no seu humilde quarto. Ele mexeu a cabeça para ambos os lados no corredor, se certificando que ninguém havia nos visto entrando, antes de fechar a porta e ir até o seu aparelho de som abaixando o volume.
— Agora está dando uma de guia, garota em chamas? — Perguntou irônico.
Revirei os olhos.
— O Sr. Gibbson me pediu.
Olhando de canto pude ver que Grover parecia um pouco tenso segurando e se apoiando em suas muletas, Percy, por outro lado, ainda continuava com seu semblante neutro, parecendo não se importar de estar ali, apenas observando o quarto de Derek com inúmeros pôster de bandas e cantores famosos de rock da última década e com uma coleção invejável de CDs.
— Claro, pois você não pode recusar um pedido do velhote. — Ele bagunçou um pouco seus cabelos loiros. — Então qual é a deles? — Derek perguntou se sentando na sua cama desarrumada, analisando os dois como se um felino estivesse olhando para sua presa.
— Remédios e psiquiatria. — Respondi. — Céus, da para abrir essa janela, não?! Não quero ficar chapada por essa fumaça de maconha. — Me levantei logo abrindo a janela do quarto de Derek que ficava de frente para o jardim.
Todas as janelas de todos os dormitórios da Gray Scott tinham grades e barras metálicas com grande espessura e colocadas verticalmente, fazendo nos sentir em um verdadeiro presídio, como forma de evitar que fujamos ou escape por elas.
Ouvi a risada seca de Derek.
— Não podia abrir antes, porque o Sr. Willians estava limpando as folhas secas, sabe como é, não quero ser dedurado. — Deu de ombros.
Ouvi alguém raspar a garganta perto de mim.
— Ah... Audrey? O que estamos fazendo aqui? — Grover perguntou um pouco cauteloso.
— É, garota em chamas! Que deselegância não nos apresentar!
Mostrei o dedo médio para Derek, que riu.
— Percy e Grover, esse é Derek Young, o cara que consegue qualquer coisa que você pedir e não pode ter aqui dentro.
Derek fez uma reverência dramática com a mão e o braço direito, logo se curvando exageradamente.
— Ao dispor do dinheiro de vocês, cavalheiros. — Sorriu. — A propósito curtem uma verdinha?
— Verdinha? — Foi à primeira coisa que Percy questionou, visivelmente confuso, ele parecia ter acabado de acordar de um longo transe, como se estivesse em uma realidade paralela em seus pensamentos.
— Maconha. — Expliquei. — Esquece, Derek, esses dois ai não são da sua laia.
E de verdade não era, para falar a verdade Percy e Grover pareciam dois engomadinhos de algum bairro nobre de Alexandria — cidade mais próxima do reformatório — do que alguém que estaria disposto a usar.
— Minha laia?! Ora, assim você me ofende, garota em chamas. — Fez beicinho, se fingindo de ofendido. — Então veio atrás do que havia me pedido?
— Claro, até porque esse é o único motivo pelo qual estou ainda olhando nessa sua cara feia.
Dessa vez foi Derek que me mostrou seu dedo médio, acompanhado por uma careta.
— Sorte sua que gosto de você e do seu irmão, garota em chamas. — Resmungou se levantando da sua cama, me dando uma vista privilegiada da tribal tatuada que cobria desde o início do seu ombro ao final da suas costas.
Ele mexeu em sua mochila preta, tirando de lá duas caixas brancas, uma grande e outra pequena com o símbolo da Apple prateado estampado no centro e nas extremidades das caixas.
— Confesso que foi um pouco difícil encontrar um ipad e um iphone das gerações anteriores, mas meu camarada no México fez por um bom preço. — Comentou vindo até mim com os produtos. — É melhor esconder esses aparelhos muito bem, garota em chamas, hoje é dia de revista. — Alertou.
— Vou esconder. — Disse já pegando as caixas e enfiando-as dentro da minha mochila e já retirando meus dólares todos amassados ou surrados.
Derek balançou a cabeça.
— Hoje não, garota em chamas. — Fiquei confusa, Derek nunca rejeita dinheiro. — Molly me contou que é seu aniversário e do tocha humana, então considere um presente de um velho amigo para vocês dois. — Piscou.
— Mas... — Fui interrompida.
— Não! Já disse! É um presente! — Disse sério. — Se quiser me pagar que seja com um abraço e já está de bom tamanho.
Revirei os olhos e estendi os braços convidado Derek para um abraço.
— Molly fala demais. — Resmunguei, enquanto os braços fortes de Derek abraçavam minha cintura, o que o fez rir.
Quando nos afastamos, ele esfregou a mão no meu cabelo o bagunçando.
— Ei! — Gritei. — Ao invés de bagunçar meu cabelo vá tomar um banho! De longe da para sentir o fedor de uísque barato e maconha. — Rosnei, passando as mãos nos meus fios tentando ajeita—los.
— Meu uísque é de qualidade fique a senhorita sabendo.
— Ah claro. — Respondi irônica.
— Você vai à festa, certo? — Assenti. — Vocês dois também estão convidados, é só seguirem a trilha da floresta que levarão vocês até a clareira onde é a festa. — Disse olhando para Percy e Grover.
— Não é meio que proibido aqui? Fazer festa? — Grover questionou um pouco confuso.
Derek e eu ficamos completamente parados e em silêncio por alguns instantes, até que decidimos trocar olhares cumplices como se conversássemos através deles, não demorando alguns segundos para que começássemos a rir.
— Novatos. — Resmunguei levantando os olhos para cima.
— Gostei desse cara, garota em chamas, pode trazê-lo mais vezes. — Derek disse entre risadas, enquanto se aproximou de Grover dando leves tapinhas em suas costas. — E garota em chamas conto com você para levar os novatos para a festa hoje à noite.
***
Depois que saímos do quarto do Derek, parece que só foi nesse momento que Grover pareceu relaxar seus ombros tensos. Acho que ele nunca deveria ter visto algum contrabandista em toda sua vida, não o culpo, Bell e eu nos sentimos do mesmo jeito quando conhecemos Derek. Para falar a verdade, ele havia entrado no reformatório junto com nós dois, praticamente crescemos juntos, durante os anos em que estivemos aqui. Até onde sabíamos sobre ele, o pai dele comandava uma gangue no sul de Los Angeles e foi preso por tráfico, a mãe de Derek havia o abandonado quando nasceu e os parentes mais próximos dele, não o queriam, então ao invés de ser mandado para um orfanato, ele veio para cá, se tornando o melhor amigo de Bell e quase que um irmão para mim.
Derek não era uma má pessoa, na verdade ele era só mais uma vítima da sociedade e das fatalidades, como eu e Bell. A pior parte de ser alguém nessa condição é ter que aturar julgamentos premeditados sobre sua pessoa, sem ninguém sequer te conhecer. Ao menos ali na Gray Scott ninguém te julgava pelos seus erros ou crimes, o que na verdade talvez era um ponto a favor do reformatório.
— E aqui é o terceiro e último andar, destinado aos mentalmente efêmeros, para não dizer os pirados literalmente. — Gesticulei com meu indicador o rodando perto da minha orelha.
— E seu quarto fica onde? Primeiro andar? — Grover perguntou.
Fiquei confusa, em primeiro porque Grover gostaria de saber onde ficava o meu quarto e em segundo porque Percy desde do momento em que saímos do quarto de Derek fica analisando e estudando cada canto do reformatório e o mais o irritante: ele também parece estar me estudando, cada movimento ou até mesmo fala minha. Como sabia isso? Simples: o olhar intenso que ele colocava em mim quando estava de costas, era o suficiente para me deixar incomodada.
Balancei a cabeça para os lados, com o objetivo de espantar esses pensamentos, provavelmente acreditando que minha cabeça estava me pregando só mais uma de minhas paranoias e frutos da minha imaginação. Entretanto, acredito que além de problemáticos, eles também eram esquisitos.
— Aquela porta ali. — Apontei com meu dedo indicador para a porta azul com os símbolos de raios desenhado em preto, logo atrás de Percy e Grover. — É o meu quarto. — Eles se entreolharam.
Grover pareceu rir de nervoso. Acredito que ele pensava que eu estava no primeiro andar no qual é destinado os menores pequenos infratores, que cometeram crimes leves, mas eram totalmente sãos. O que não era o caso meu e de Bell.
— É piada, não é? — Neguei com a cabeça, o que o fez arregalar os olhos e dar uma forte cotovelada nenhum pouco discreta em Percy, que pareceu fechar a cara ainda mais.
Eu não sabia qual era desse cara.
Ele só me parecia um idiota que vivia o tempo todo viajando em uma realidade alternativa em sua própria mente, não se ligando muito no que acontecia perto de si ou muito menos ao seu redor. Ele era visivelmente desligado e desatento, embora eu devesse reconhecer que ele era bonito. Muito bonito. Na verdade, a pele meio bronzeada, o cabelo escuro e olhos verde água, o deixavam muito atraente. Sim, eu poderia ter facilmente um crush nesse esquisito só pela aparência, mas... De repente comecei a pensar nos possíveis defeitos que ele poderia ter.
Poderia ser um cara abusivo, tóxico, um babaca ou um completo idiota. Até porque... É difícil hoje em dia existir um cara bonito e ele não ser um completo otário com você. Na minha cabeça, se você é tão bonito por fora, certamente você é totalmente podre por dentro.
Reconheço, o tal Percy era extremamente gato, mas gente bonita sempre é complicada.
No momento em que Percy percebeu que estava encarando-o como uma maluca psicótica, imediatamente senti minhas bochechas arderem, como se estivessem pegando fogo, desviei rapidamente meus olhos. Me sentia uma criança travessa, que havia acabado de ser pega.
— Drey? — Ouvi a voz de Bell me chamar logo atrás de mim, atraindo minha atenção.
Beowulf havia acabado de abrir a porta do seu quarto, que era ao lado do meu e os fios negros estavam totalmente encharcados, que pingavam sobre sua camisa azul escuro que tinha a frase em branco: "Preciso dormir" em inglês e usava uma calça jeans totalmente rasgada nos joelhos e surrada de tantas vezes que foi usada, da mesma forma em que seu tênis se encontrava. Meu irmão me encarou confuso e depois seu olhar se direcionou para as figuras atrás de mim.
Foi inevitável suprir o impulso de olhar para meu irmão e para Percy, que parecia surpreso e seus lábios estavam entreabertos, enquanto ele encarava meu irmão, fixamente. Percebi que nós quatro estávamos totalmente calados e estáticos, até mesmo Grover que falava bastante, também ficou mudo encarando meu irmão. Tossindo forçadamente, como forma de não só atrair a atenção dos três, no objetivo de quebrar o silêncio desconcertante.
— Esse é Beowulf Summers, meu irmão gêmeo. — Apontei para Bell, que apertou os lábios e deu um aceno rápido com a mão direita, totalmente desinteressado.
— Gêmeos? Sério? — Percy disse um pouco alto, mas logo levou um tapa de Grover, que também despertou do transe, na nuca; fazendo o Jackson resmungar, enquanto massageava o local atingido pelo colega ao lado. — É que vocês realmente não se parecem.
— Sim, não nos parecemos, mas sim, somos gêmeos, não parecemos muito, porém somos irmãos. — Disse. — Mesmo que às vezes acredito que fui trocada na maternidade... — Resmunguei baixo.
Bell apenas balançou a cabeça e depois de um longo suspiro disse:
— Me pediram para ir à ala psiquiátrica mais cedo, para tomar os novos remédios, você deveria ir também. — Alertou Bell passando a ignorar os novatos atrás de mim. — Depois você mostra o resto da Gray Scott para eles.
— Bell, o que... — Antes que pudesse terminar, Beowulf fechou sua porta na minha cara.
Pisquei algumas vezes ainda um pouco atônica pelo o que havia acontecido. Estava me perguntando internamente qual foi o motivo pelo qual que Bell ficasse tão mal humorado ao ponto de bater a porta na minha cara, porque poucas horas atrás ele estava bem e agora... Massageei minha têmpora esquerda.
Bufei.
— Só falta mostrar vocês a área externa do reformatório. Amanhã mostrarei a vocês, os dois agora já sabem onde é seus respectivos quartos no primeiro andar e eu preciso ir... — Balancei a cabeça para os lados ainda um pouco transtornada, comecei a andar, mas logo parei me sentindo um pouco mal por ter sido rude com eles. — Se quiserem ir a festa do Derek, estejam aqui as oito e ponto. — Me virei para eles, os encarando por um instante.
Eles com certeza não estavam entendendo o motivo pelo qual me fez mudar tão repentinamente, mas quando Bell me trata mal ou está mal humorado, isso também me afeta, me deixando quase no mesmo estado. É algo instantâneo, porque quando ele está nervoso, me deixa além de preocupada totalmente inquieta, pois quero entender o mais rápido o que o deixou assim e tentar solucionar o problema.
Mas Beowulf tinha razão, por pouco quase me esqueci de ir buscar meus medicamentos na ala psiquiátrica, precisava urgentemente deles se não quisesse que minha dislexia continuasse me atacando ou que logo começasse a ter minhas alucinações. Talvez ele estivesse mal humorado por isso, pois se esqueço de tomar meus medicamentos, isso consta no meu relatório, o que significa que talvez não poderíamos sair desse inferno. Até porque, tanto Bell quanto eu sabemos, que só um pequeno ou mero deslize já é o suficiente para que o diretor barre nossa saída permanente nos obrigando ficar aqui.
Quando me virei pronta para seguir meu caminho até a ala psiquiatra, nem sequer esperando alguma resposta de Grover ou Percy, senti uma mão fria envolver meu pulso direito me impedindo de seguir meu caminho. Ao virar minha cabeça vi, os olhos verde água de Percy, os mesmos olhos que fizeram um frio na barriga surgir quando me lembrei do mar, ele estava me encarando fixamente, Percy havia se aproximado tão silenciosamente que nem ao menos ouvi o barulho de seus passos, quando abaixei meu olhar e vi sua mão direita segurando meu pulso, uni as sobrancelhas totalmente confusa.
— Seja lá o que estiver planejando fazer com esse celular, é melhor que não faça, se quiser que o seu irmão e você fique em segurança. — Disse num tom sério e ríspido, sem mencionar que pela sua expressão facial ele parecia estar mesmo preocupado.
Não sabia qual reação eu deveria esboçar primeiro, surpresa por Percy ter a ousadia de me tocar sendo que acabamos de nos conhecer, ou por ele falar aquela frase em um tom que não me agradou muito. Na verdade, esse último foi o que me deixou um pouco raivosa, o que me fez me livrar da mão de Percy do meu pulso bruscamente.
Quem ele pensava que era?
— Isso é uma ameaça?!
Ele pareceu ficar surpreso com minha resposta grosseira, mas logo se recuperou e disse:
— É um aviso, se tiver um pingo de bom senso irá me ouvir e não vai usar esse celular. — Dito isso ele me deu as costas, seguindo até Grover, que me olhava com um olhar compassivo, o que só serviu para me deixar mais confusa, quando ele me deu as costas seguindo Percy até o final do corredor.
Deixando uma grande dúvida mesmo que pequena começar a crescer dentro de mim: Qual era a daqueles caras?! Posso dizer que lidei com gente esquisita e problemática durante todos esses anos em que estive aqui, mas nada comparado com aqueles dois. Quero dizer, não sabia muito bem, porém tinha algo neles que me deixava instigada, o que os fazia totalmente suspeitos para mim. Minha intuição gritava que tinha algo muito de errado com eles dois e a pior parte disso tudo, é que minha intuição nunca falha.
***
Perdi as contas de quantas vezes levantei meu braço prestes a bater na porta e o abaixei. Os novatos, bem quero dizer, Percy, me deixou completamente inquieta, com aquilo que ele me disse e porque raios não conseguia tirar suas palavras da cabeça? Era como se o que ele tivesse dito fizesse sentido para mim, quando na verdade, se for pensar com racionalidade, não fazia. Como um celular poderia colocar Bell e eu em perigo? Que besteira!
— Só respira, Audrey! Ele só é mais um maluco que fala coisas sem sentido. — Resmunguei, logo dando um longo suspiro, para enfim juntando coragem e dar três batidas seguidas na porta de madeira pintada de branco. — Um maluco bem gato... — Resmunguei e logo soltei um palavrão, me amaldiçoando por achar aquele possível serial killer bonito.
Só ouvi um "entre" alto e em bom som, porém, acho que estava atordoada demais para perceber que aquela não era a voz da Sra. Smith, a psiquiatra que trabalhava e atendia todos os alunos da Gray Scott, mas sim uma voz masculina e grave.
Quando girei a maçaneta para abrir a porta e finalmente entrar na sala, me vi surpresa quando não encontrei a Sra. Smith, mas um senhor de cabelo ralo e barba desalinhada com fios grisalhos, com óculos retangular e usando um suéter listrado na cor azul e branco por cima da camisa social branca, entretanto o mais chamativo era a cadeira de rodas motorizada vermelha. Ele parecia me olhar fixamente e tinha um pequeno sorriso amigável no rosto. Instantaneamente olhei para a placa prateada colada na madeira da porta, certificando—me que estava na sala certa e não tinha entrado no lugar errado.
E não, não havia entrado, pois as letras gigantescas de "SRA. SMITH — PSÍQUIATRA" na placa prateada confirmava aquilo.
— Latona Audrey Cordélia Summers. — Me chamou pelo nome completo, atraindo minha atenção. — Por favor, pode fechar a porta e sente—se. — Apontou para as cadeiras confortáveis em frente a sua mesa.
Fiz uma careta, nenhum pouco discreta, estranhado toda aquela situação. Mas sem dizer nada, fiz exatamente o que ele me pediu, fechei a porta com cuidado e me sentei na cadeira à esquerda, olhando diretamente para o senhor à minha frente.
— Sou o Sr. Brunner, irei substituir a Sra. Smith por um tempo. — Por um momento quis perguntar o que tinha acontecido com a minha psiquiatra, mas achei melhor ficar calada. — Mas não se preocupe, a Sra. Smith deixou todo o relatório sobre você e seu irmão para mim, inclusive suas medicações diárias. — Ele disse foleando uma pasta amarela.
Perguntava—me internamente sobre o que poderia estar constando naquelas pastas sobre mim e Beowulf. Talvez ali estivesse todas as coisas ruim e absurdas que muitas pessoas já disseram sobre nós, como também os relatos das consultas semanais que a Sra. Smith fazia comigo e com meu irmão. Crises de ansiedade, piromania, depressão, TDAH, dislexia, dificuldade em socialização, talvez um pouco de sociopatia e o gran finale: esquizofrenia. Apostava cinquenta dólares que tudo isso estava escrito tanto na minha ficha quanto na de Beowulf.
— Na sua ficha consta relatos de criaturas fantasiosas, como pessoas de um olho só e... — Ele pareceu reler com mais atenção o que estava prestes a dizer. — Uma grande cobra tentando devorar seu irmão Beowulf...
Se me orgulho de ter dito claramente todas minhas alucinações quando cheguei a Gray Scott aos treze anos? Definitivamente não, pois quando falam em voz alta as coisas que descrevi de que havia visto, percebo o quão fantasioso e louco poderia ser... Menos aquela cobra...
Sei que vai parecer loucura, mas quando Bell e eu tínhamos cerca de cinco anos de idade, estávamos brincando em um parque infantil em Creta quando uma víbora gigantesca, que tinha cerca de um metro de comprimento, apareceu sobre a caixa de areia na qual brincávamos. A víbora abriu sua boca e tentou morder Bell, que por pouco desviou, então só me lembro que tinha ficado com tanta raiva que não me lembro o que fiz, foi como um apagão e quando despertei ouvi o grito de horror não só da minha mãe como das pessoas e mães ao nosso redor, pois eu estava mordendo a víbora com tanta força que minha boca estava manchada com seu sangue.
E quando soltei a víbora da minha boca, ela ainda estava viva e saiu rastejando com dificuldade até os arbustos mais próximos, minha mãe me segurou nos braços fortemente e tentava limpar o sangue da minha boca desesperadamente, enquanto tinha meus olhos fixos no arbusto onde a víbora tinha se escondido. Logo depois de alguns rápidos minutos vi uma mulher de cabelos negros e olhos castanhos que me olhava com um ódio tão visível, sair por detrás dos arbustos, ninguém ali parecia vê-la, apenas eu, no entanto, quando pisquei os olhos ela já não estava mais lá.
Desde aquele dia algo dentro de mim gritava que aquela mulher era a víbora que tentou atacar meu irmão, sei que você deve estar pensando que isso é loucura, pois realmente parece, mas... Parecia que bem no meu interior, sabia que não estava louca ou muito menos sofria de esquizofrenia. Gostaria que essa pequena parte estivesse certa sobre mim, porém, racionalmente falando, eu sabia que não.
— Foram apenas ilusões. — Disse sentindo um leve incomodo por estar admitindo isso. — Só frutos da minha imaginação. — Afirmei mais uma vez.
Se quisesse sair dali, tinha que mentir ou melhor ir contra meus princípios e no que acreditava, tinha que parecer o que eles queriam que parecesse e se para isso tivesse que ir contra o que meu interior e instintos diziam, ótimo, era o que iria fazer. Tudo para que Bell e eu saíssemos desse inferno.
O Sr. Brunner me encarou intensamente e poderia dizer que ele parecia um pouco decepcionado, talvez? Bem, se ele tivesse mesmo ficado assim, como imaginava, ele havia se recuperado rápido o suficiente seu semblante para me dirigir um leve sorriso simpático e com a mão direita ele havia me empurrado um copo descartável pequeno, na minha direção.
Quando o copo descartável, vi o que tinha nele: pílulas azuis.
— Azuis? — Questionei, erguendo um olhar duvidoso para o Sr. Brunner. — Eu tomo pílulas vermelhas.
Desde dos treze anos, sempre tomei pílulas vermelhas, a receita ou até mesmo os ingredientes de que eram feitas mudavam constantemente por meu organismo acostumar facilmente com elas, mas a cor era sempre a mesma: vermelho escuro intenso. O mesmo era válido para Bell, também.
— Sim, sim. — Disse ajeitando seus óculos de grau retangular. — Mas a Sra. Smith antes de partir disse que iria mudar sua medicação para pílulas azuis, não se preocupe apenas a cor mudou, a receita e os ingredientes mudaram apenas um pouco, mas ainda mantendo o padrão de controle do TDAH e da sua dislexia. — Explicou.
Algo dentro de mim dizia que tinha alguma coisa de muita errada com o Sr. Brunner, ao mesmo tempo em que ele me inspirava confiança, sentia que ele parecia estar me escondendo alguma coisa. Ou estava pirando literalmente de vez, ou hoje o dia estava bem mais estranho do que o normal. Mas, o Sr. Brunner, era agora o psiquiatra substituto, porque não confiaria em suas palavras sobre minhas pílulas?
Tanto Bell e eu éramos só ninguéns, não éramos importante de alguma forma, não tínhamos dinheiro ou éramos famosos ou tínhamos alguma importância significante para a sociedade. Já havia assistido filmes o suficiente para saber que coisas ruins acontece com pessoas importantes, algo que nunca gostaria de ser, na verdade estava bem com isso; em não ser importante. O que poderia acontecer de ruim comigo e com meu irmão?
Sinceramente hoje não era meu dia, estava ficando completamente paranoica com tudo e todos, deveria ser o fato de ter ficado muito tempo sem tomar minha medicação.
Sem questionar ou dizer mais alguma coisa, aproximei o copo descartável dos meus lábios e de uma vez o virei, sentindo as pílulas caírem na minha boca, depois estiquei o braço para pegar o copo cheio de água — que estava sob a mesa —, bebendo—o para me ajudar a engoli—las de uma vez.
***
Já eram cerca de cinco horas da tarde, o que significava que as aulas da tarde estavam oficialmente encerradas. Enquanto estava voltando para os dormitórios, depois de tomar meus remédios com o Sr. Brunner, pelas janelas gigantescas que tinham no corredor principal, pude ver os grandes clarões brancos que sobrepunham o céu cinza, não demorando muito o som ensurdecedor dos trovões ecoaram por toda parte, tão forte que eram capazes de fazer as vidraças tremerem, perante ao seu poder.
Poderia ficar ali, observando aquele espetáculo que particularmente o achava o mais bonito entre todos os fenômenos da natureza, porém um único nome me veio à cabeça, acelerando as batidas do meu coração:
— Beowulf... — E ao dizer isso, sai em disparada pelo corredor, correndo o mais rápido que podia.
Já estava sentindo minhas pernas doerem e latejarem, principalmente por subir quatro lances de escadas até chegar no terceiro andar, tropeçando entre os degraus e por pouco não caindo. Minha mente não estava funcionando direito, na verdade, ela estava no modo automático, apenas se importando com uma coisa: chegar até o meu irmão. Quando vi a porta do quarto do Bell, a abrir bruscamente, chamando por ele, entre meus suspiros e as batidas aceleradas do meu coração.
Meus olhos varreram o quarto, até se fixarem em Bell encolhido sobre a cama, com a cabeça encostada em seus joelhos e ambas as mãos pressionando suas orelhas, enquanto ele tremia descontroladamente. Sentia sempre um aperto forte no meu peito quando o via daquele jeito, desde criança, Bell sempre teve um medo agonizante de trovões, nunca entendi muito bem o porquê desse medo, mas era como se fosse algo automático que acontecia com ele. Algo que ele não podia evitar.
Tentei controlar minha respiração, até que ela se estabilizasse completamente, e quando ela se estabilizou, fechei a porta atrás de mim com cautela e deixei minha mochila no chão, até me aproximar cautelosamente de Bell.
— Bell... — O chamei me sentando ao seu lado na cama.
Ele instantaneamente parou de tremer ao ouvir minha voz e ao erguer sua cabeça, vi que seus olhos estavam vermelhos e molhados pelas lágrimas que saiam deles, subitamente Bell se jogou em mim, me abraçando fortemente, enquanto eu acariciava seus fios negros e murmurava baixo: "vai ficar tudo bem". Acredito que quando se é gêmeo de alguém, você estabelece não só um laço, como uma conexão quase que sobrenatural, nunca consegui explicar muito bem isso, mas quando Bell ou até mesmo eu, não estávamos nenhum pouco bem e precisava um do outro, ambos percebíamos isso, ou melhor, sentíamos em nossas próprias veias.
Como já havia dito antes, Bell era meu oxigênio e eu era o dele. Não existíamos um sem o outro, pois nós dois nos complementava e apenas nós dois bastava. Acho que só quem tem um irmão gêmeo, saberia o que é essa forte conexão, que não só apenas no liga, como também nos mantém respirando.
Olhando para a janela repleta de barras de metal, mais um clarão iluminou o céu e logo foi sucedido pelo som forte do trovão, o que fez Bell só se encolher ainda mais em meus braços agonizando. O apertei com mais força nos meus braços, como um aviso de que eu estava ali por ele e que ele não precisava ter medo.
— Ei... — Sussurrei baixo. — É só uma corrente de ar quente que foi resfriada e se alargou, se transformando em um trovão. Não precisa ter medo Bell, é só ar... — Disse tentando o encorajar.
— Eu sei, Audrey... — Disse entre soluços. — Mas não sei o que há de errado comigo, sempre quando há trovões ou relâmpagos, um medo avassalador toma conta de mim, é mais forte do que eu. Como o seu medo de lugares fechados, abafados e até mesmo do mar.
Suspirei.
— Sim, eu sei... — Acariciei seu cabelo. — É só que odeio ver você nesse estado e não poder fazer nada para te ajudar, você é meu irmão, não sabe o quanto isso acaba comigo. — Confessei.
Desde criança, sempre tive essa vontade de ser super protetora com Bell, ser a guardiã fiel dele, ou até mesmo seu escudo, o mesmo vale para minha mãe e para Cassie, sempre fui o tipo de pessoa que é totalmente fiel àqueles que ama e sempre tem sede de mantê-los seguros, pouco se importando com a sua própria segurança... Essa era eu, desde que as pessoas que eu amo estejam seguras, o mundo inteiro poderia arder em chamas, que nem sequer me importaria.
Acho que o fato de sempre querer proteger as pessoas que amo, de tudo, inclusive da dor ou até mesmo do medo, era o que me fazia me sentir tão impotente ou até mesmo inútil, quando via Bell naquele estado durante os trovões ou relâmpagos. Eu só... Queria poder aliviar toda sua dor...
Droga!!
— Se você ler uma história sobre mitologia, como a mamãe sempre fazia, talvez isso me distraia e me faça esquecer dos trovões. — Ele disse se afastando um pouco dos meus braços e apoiando seu tronco na parede, na qual sua cama era colada, enxugando as lágrimas com as costas das mãos.
Nossa mãe... Ela com certeza saberia o que fazer numa situação dessas, tão diferente de mim...
Respirei fundo e ao assentir, levantei-me do colchão indo direto a sua mesa de estudo perto da sua cama, quase senti vontade de sorrir ao ver sua mesa tão organizada e arrumada perfeitamente, assim como o resto do seu quarto. Toda essa organização vinha especialmente porque Bell tinha TOC, mesmo que fosse bem leve, ele ainda brigava comigo muitas vezes pelo meu quarto ser uma verdadeira bagunça, ou como ele prefere dizer: um chiqueiro.
Bem... Um chiqueiro limpinho, mas desorganizado...
— Qual livro você quer ouvir? — Perguntei, enquanto meus dedos passavam rapidamente pelos títulos na capas dos inúmeros livros de mitologia grega que nossa mãe comprou de uma coleção clássica em um leilão online, totalmente escrita em grego antigo.
Apenas me lembro que foi uma fortuna esses livros.
Minha mãe, sempre foi obcecada com mitologia greco-romana, o suficiente para fazer com que os filhos aprendessem grego antigo e latim clássico e arcaico, por incrível que parecesse tanto a minha dislexia, quanto a de Bell e Cassie não aparecia quando liamos livros com esses idiomas. Na verdade era bem mais fácil ler naqueles idiomas do que o inglês ou francês para nós. Esses livros que ela comprou, tinha duas cópias idênticas, a única diferença era que as cópias eram em latim arcaico e as originais em grego antigo.
Se me lembrava bem, Cassie havia ficado e levado suas cópias dos em latim para a faculdade, enquanto eu e Bell ficamos com os de grego. Não que a mitologia me fascinava, como era o caso da nossa mãe, a verdade é que não me importava nenhum pouco com aquilo, só lia porque talvez eram os únicos livros que era capaz de ler sem o uso de medicamentos ou com risco da minha dislexia atacasse.
Acho que se existissem mais livros com esses dialetos antigos, talvez até poderia me tornar uma leitora mais frequente, o que não era o caso, infelizmente.
— A história de Orfeu.
Peguei o livro de capa dura que tinha as letras em grego na cor prateada, que logo passaram a se organizar de uma maneira extraordinária na minha mente, como se as letras saíssem da capa e começassem a flutuar se organizando de uma maneira legível.
O mito de Orfeu.
Segurei firmemente o livro e fui me sentar ao lado de Bell, deixando sua cabeça apoiada sob o meu ombro, enquanto eu foleava o livro com páginas amareladas. Até começar minha leitura em voz alta:
" [...] Orfeu desesperado e deslocado pela morte de sua amada, Eurídiceou, desce ao mundo dos mortos, em busca de fazer um acordo com Hades, deus dos mortos e senhor do submundo, para ter sua amada de volta. Caronte foi convencido pela triste melodia da lira de Orfeu, a levar o jovem vivo pelo rio Estige. Em seguida sua lira adormeceu o cão infernal Cérbero, o cão de três cabeças que vigiava os portões para o submundo.
Seu canto e sua lira aliviava os tormentos de todas as almas condenadas e ao encontrar com muitos monstros durante seu caminho, Orfeu os encantou com seu canto, até que enfim chegasse ao palácio de Hades. O deus dos mortos, de imediato ficou furioso por um vivo estar em seus domínios, mas logo sua ira foi apaziguada quando a agonia e o desespero na lira de Orfeu, haviam o feito ficar comovido o suficiente para que chorasse lágrimas de ferro.
Perséfone, esposa do deus, implorou para que seu marido atendesse o pedido do jovem e trouxesse sua amada de volta, Hades convencido, concordou em atender o pedido do desesperado jovem, Eurídiceou poderia voltar ao mundo dos vivos com Orfeu, desde que esse não olhasse para trás durante o longo caminho até a saída do mundo inferior, quando sua amada fosse banhada pela luz do sol.
Orfeu partiu pela trilha íngreme que levava para fora do escuro reino da morte, tocando músicas de alegria e celebração enquanto caminhava, para guiar a sombra de Eurídice de volta à vida. Ele então quase no final do tenebroso túnel olhou para se certificar de que Eurídice o acompanhava e não a viu. Hades e Perséfone os seguiram e como ficou estabelecido que ele não poderia olhar para Eurídice até chegar ao fim do túnel, Hades a tomou novamente.
Por um momento ele a viu, perto da saída do túnel escuro, perto da vida outra vez. Mas enquanto ele olhava, ela se tornou de novo um fino fantasma, seu grito final de amor e pena não mais do que um suspiro na brisa que saía do mundo dos mortos. Ele a havia perdido para sempre. [...] "
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