4. Inefáveis lágrimas

Capítulo 4 | O Som do Silêncio

Agora Liam entendia porque a irmã ficava horas no celular tarde da noite com um sorriso idiota na cara. Ele desconfiava que Marcela podia estar apaixonada - ele sabia identificar muito bem esse estado caótico nas pessoas - mas nunca havia perguntado nada. Marcela já havia namorado com um rapaz antes, mas Liam não teve a chance de conhecê-lo; por isso não sabia como era de fato ter um cunhado. Ao desconfiar que Marcela estava com um rolo novamente - ou pior: terrivelmente apaixonada - Liam torceu para que o cara não fosse um babaca. Isso porque ele esperava que fosse um homem.

Liam nunca imaginou que teria uma cunhada tão legal e divertida. E sexy. Ele tinha que admitir: sua irmã tinha bom gosto.

Além disso, o garoto percebera algo um tanto curioso ao observá-las durante o dia: Lana e Marcela podiam ser facilmente confundidas como irmãs. Os gestos, o modo de se portar e vestir e até a altura eram parecidas. Liam não duvidava que até mesmo suas frequências cardíacas estavam em sincronia.

- O que prefere? Suco de laranja ou morango? - Lana perguntou, segurando um cardápio. Estavam em um pequeno restaurante na beira da estrada, rodeado de plantas e árvores. A música de fundo eram o canto dos grilos e o som de uma água corrente.

- Laranja. - Liam respondeu.

- Por que não ambos? - ela perguntou, franzindo o cenho para o cardápio. - Eu quero de laranja e morango, por favor.

A garçonete sorriu e anotou os pedidos.

- Por que sempre dá esses trocadilhos? - Marcela perguntou.

- Foi assim que você descobriu que eu jogava nos dois times. - Lana deu um sorriso travesso.

- Hã... - Liam olhou para as duas. Ele ainda estava absorvendo a ideia de que a irmã tinha uma namorada. Não por preconceito, claro; mas por ela nunca ter contado. Descobriu que elas já estavam juntas há mais de um ano, e Liam não sabia de nada.

- Não está com calor com essa blusa de frio, menino? - perguntou Lana de repente.

- Não... - Liam encolheu os braços - Eu sinto frio.

- Oh, tudo bem - a mulher respondeu, fitando o copo de suco que a garçonete carregava. Ela agradeceu a moça, tomando um gole do seu suco. Liam fez o mesmo. - Sua irmã disse que você tira boas notas na escola e é um ótimo filho.

- Ela fala muito de mim? - Liam perguntou, olhando de soslaio para a irmã. Mas ela prestava atenção demais em Lana para perceber.

- Bastante - Lana confirmou. - Você é o xodozinho dela.

Liam fez uma careta.

- Agora parece que terei que dividir esse título. - murmurou, saboreando o gosto do suco. Aquilo estava muito bom. Aliás, ele estava se sentindo muito bem naquele dia; o que era raro.

- Eu gosto da forma como ela fala de você. - Lana disse, passando a mão delicadamente no rosto da namorada.

Marcela sorriu. A irmã parecia mais à vontade - e, pela primeira vez, o garoto percebeu o quanto ela estava feliz. Liam não precisou de muito para gostar de Lana - mal havia um dia completo que a conhecera de fato e ele já a adorava. Aquilo o fez pensar mais uma vez sobre o relacionamento da mãe. Talvez pudesse dar uma chance a Antônio; por mais que considerasse suas atitudes para com sua mãe um tanto mesquinhas.

Após o almoço, se puseram novamente na estrada. A cidade vizinha ficava a apenas uma hora, mas ninguém tinha pressa. Lana tinha razão: Liam precisava de novos ares. Precisava se distrair e sair um pouco da mesmice de sempre. Lana contou que pretendia comprar uma casa nessa cidade, que considerava mais calma e mais bonita. Liam sentiu que uma importante informação ficou pairando no ar, mas ele não tinha ideia do que poderia ser.

Ao chegarem à cidade vizinha, Liam não pôde deixar de concordar com a cunhada - o lugar era realmente agradável. Lana dirigiu diretamente para um condomínio fechado, onde Liam percebeu poucas casas e muitas árvores. A tranquilidade do lugar dava a Liam uma vontade tremenda de se jogar na grama e dormir.

- Nada como o silêncio - Lana disse, erguendo o dedo e respirando o ar puro. Haviam parado em frente a um portão de madeira. Liam escutou pássaros e outros pequenos animais. - ...o silêncio e o canto dos pássaros.

O garoto acompanhou as duas portão adentro. A casa de madeira, aparentemente nova, ficava no fundo do terreno. O jardim estava coberto de mato e as árvores cobriam grande parte do lugar, deixando o ambiente mais fresco.

- Com uma boa capinada e uma faxina, ficará esplêndido - os olhos de Lana brilhavam enquanto subiam os degraus da varanda. Ela abriu a porta da frente, revelando uma ampla sala e uma escadaria que levava ao andar de cima. Ainda sim, não era tão grande.

- Isso é bem a sua cara - disse Marcela. - O que acha, Liam?

- Legal - o garoto murmurou. - Os vizinhos são onças pintadas.

- Eu adoro onças - Lana disse, descontraída. Ela puxou Marcela para a cozinha, e Liam ficou parado no meio da sala vazia. Resolveu voltar para a varanda, que circundava a casa inteira.

O mato chegava a adentrar pelo parapeito, o que o impedia de ver a real extensão do lugar. Distraído, ele seguiu até a parte de trás da casa, deparando-se com uma paisagem montanhosa. Ele se sentou em um banco de madeira encostado à parede e fechou os olhos. Ele pôde sentir o próprio coração batendo e sua respiração alta. Não demorou muito para que, de repente, Liam começasse a sentir um familiar peso no peito. Tentou ignorá-lo como sempre fazia, mas naquele momento não havia nada com o que pudesse se distrair. Tinha deixado seus fones de ouvido e o celular no carro. Sentiu um bolo se acumular em sua garganta e as lágrimas ameaçarem a saltar de seus olhos. O garoto engoliu a saliva que se acumulava em sua boca e respirou fundo, apertando de leve seu braço machucado. Não, ele disse para si mesmo. Agora não...

Ele nunca ia se acostumar com aquilo. Estava tendo um ótimo dia; não havia motivos para se sentir tão mal. Então, por que de repente sentia como se tudo fosse desabar?

Liam não podia chorar. Ele evitava ao máximo se expressar daquela forma, especialmente perto da irmã. Não queria preocupá-la sem motivos. Marcela perguntaria o que estava acontecendo, e Liam não saberia o que responder. Eu não sei, ele respondia para si mesmo. Eu nunca sei.

O garoto baixou a cabeça, colocando as mãos no rosto. Ele não aguentaria por muito tempo. Pensou em correr para o carro, mas um peso em suas pernas o impedia de ir a qualquer lugar.

- Liam? - ele deu um salto ao escutar a voz de Lana ao seu lado. Tentou disfarçar os olhos vermelhos e consertar a postura, mas sabia que era tarde demais. - Está tudo bem?

Liam tentou engolir as lágrimas mais uma vez, sem sucesso. Olhou para Lana sem dizer nada, mas não foi preciso. Algo bem no fundo dos olhos daquela mulher o deixou um tanto vulnerável. De alguma forma, ele tinha certeza que ela sabia. Sabia o que ele estava sentindo. O garoto não soube explicar o que acontecera naqueles segundos - ele apenas abriu a guarda e deixou que as lágrimas rolassem. Liam começou a soluçar como uma criança indefesa, chorando como há muito não chorava.

Lana sentou ao seu lado e o abraçou, envolvendo-o em seus braços tão intimamente que por um momento ele achou que fosse sua irmã.

- Meu menino, nós estamos aqui - ela disse baixinho próximo ao seu ouvido, enquanto Liam soluçava sem parar. Ele não percebeu que a irmã também estava ali até sentir sua mão acariciar suas costas.

As duas não disseram nada. Apenas ficaram ali, dando-lhe literalmente os braços e as mãos; pois sabia que ele precisava somente daquilo naquele momento. Quando finalmente se acalmou, Marcela entregou-lhe uma garrafa d'água e Lana acariciou seus cachos.

Liam sentiu-se leve como uma pena; como se tivesse tirado algo terrível dentro de si. Sabia que seria temporário, mas sentiu-se aliviado naquele momento.

Depois daquele dia, ele sabia que não estava mais sozinho.

❀❀❀

- Não me esconda nada, Liam - Marcela disse. Já eram quase dez da noite quando se preparavam para dormir. Liam jogou a coberta por cima do corpo e olhou para a irmã.

- Você me escondeu um namoro de mais de um ano - ele retrucou. - Quem é que estava escondendo algo?

- Me desculpe por isso - ela disse, suspirando. - Eu estava insegura quanto a sua reação. Você nunca conheceu nenhum namorado meu. E muito menos namorada.

- Eu não me importo com isso. Eu gostei muito da Lana. - ele encostou a cabeça no travesseiro, pronto para dormir. Ele estava exausto.

A irmã ficou calada por alguns instantes. Apenas a fraca luz do abajur estava ligada, impossibilitando de Liam ver sua expressão.

- Tem algo a ver com a mamãe e Antônio? - ela perguntou de repente.

- Não. - Liam negou. - Não é só isso. Eu não sei o que é exatamente.

Muitas coisas, ele disse para si mesmo.

- Você não está bem - Lana afirmou. - Eu sinto muito por não ter percebido isso antes.

- Não queria que se preocupasse. Você tem uma vida - Liam retrucou.

- Você faz parte da minha vida, William - a irmã disse. Marcela só dizia seu nome quando falava muito sério. - Mas eu estava focada demais em outras coisas para notar algo. Me desculpe.

- Eu odeio essa casa - Liam soltou. - Odeio esse apartamento desde que mamãe deixou Antônio colocar os pés aqui dentro.

Parecia bobagem, mas Liam sentiu-se aliviado ao dizer aquilo. Não percebia o quanto a presença daquele homem era um incômodo. Agradeceu o fato de ambos estarem sozinhos naquela noite - a mãe provavelmente estava tendo uma noite romântica com o namorado.

- Ele usa o banheiro do corredor e não dá descarga - Liam pôde sentir a repulsão na voz da irmã. - Além disso, faz a mamãe de trouxa. Acredita que ela teve que lavar as cuecas dele?

Liam não acreditou que estava ouvindo aquilo. Ele riu alto. Então, Marcela também partilhava de sua opinião sobre o intruso. Mas, ao contrário dele, ela sabia ser cortês.

- Eca - o garoto murmurou. - Eu sabia que havia um cheiro estranho vindo da lavanderia.

Marcela riu, e Liam gargalhou. Ele se sentiu leve pela segunda vez no dia. Quando o quarto ficou em silêncio mais uma vez, o garoto tentou imaginar o que a irmã faria caso ele contasse sobre suas mutilações. Não, ele não contaria...Não naquele momento. Não queria estragar aquela noite.

- Liam - Marcela quebrou o silêncio. - Eu não quero esconder mais nada de você.

Ele não gostou do tom de voz dela. O que mais ela tinha a dizer?

- Você está grávida de Lana? - ele perguntou em um tom malicioso.

- O quê? - Marcela virou-se para ele. - Não, idiota! É que nós...estávamos planejando morar juntas.

Liam ficou calado. Seu sorriso desapareceu e um peso invadiu seu estômago de imediato.

- Merda. - ele ouviu Marcela sussurrar. Ela se levantou e sentou-se ao lado do corpo do irmão, que havia se encolhido ainda mais no colchão.

Ele não sabia o que dizer, pois milhões de pensamentos invadiram sua mente de repente. A casa, a empolgação das duas na cozinha, a intimidade que as duas pareciam ter... Agora tudo fazia sentido. Liam estava prestes a perder sua irmã para uma bonitona anti-social viciada em suco.

- Você vai morar com ela. - Liam tentou não soar como se tivesse chateado, mas a irmã o conhecia muito bem.

- Não pretendo deixá-lo. - Marcela acariciou seu joelho. - Não sabemos quando isso irá acontecer, mas; sobretudo agora, eu não quero deixá-lo. Quero que venha morar com a gente.

Liam arqueou as sobrancelhas, surpreso. Definitivamente, ele não esperava por aquilo.

- É sério...? - perguntou, perplexo.

- Podemos visitar o papai e a mamãe nos fins de semana - ela disse. - Não é muito longe, e eles entenderiam. Afinal, eles também estão vivendo a vida deles. Lana já te adora e está disposta a te ajudar no que for preciso. Há uma escola muito boa com ensino médio também... Poderemos começar uma vida nova juntos. De novo.

- Sim... - ele disse. Uma estranha empolgação começou a tomar conta dele, substituindo a apreensão. - Pode ser bom.

Naquela noite, Liam adormeceu com a imagem da casa que havia visitado naquele dia. Pensou na cidade, nos locais que poderia ir, nas novas pessoas que poderia conhecer. Um novo colégio. Cada vez que pensava naquela ideia, mais aquelas paredes ao seu redor parecia sufocá-lo. E, por mais que mal conhecesse Lana, com certeza era bem mais agradável que Antônio - e algo lhe dizia que Liam não se livraria dele tão cedo.

A expectativa de novas mudanças deixou Liam um pouco mais animado - mas não o suficiente para deixá-lo estável. Meses se passaram e ele ainda escondia as cicatrizes da irmã; que haviam se estendido também para as coxas. As notas começaram a afundar e, apesar de ter feito as pazes com a mãe, ainda não se sentia confortável com a presença cada vez mais frequente de Antônio.

Entretanto, Liam sabia que era só uma questão de tempo até tudo florescer.

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