5. O que não se pode mudar

Capítulo 5 | O Som das Flores

𝑳𝒊𝒂𝒎

O cheiro da maresia e a umidade do ar foram sentidas assim que entraram na cidadezinha litorânea conhecida como Porto do Sol. Liam logo esticou o pescoço para tentar avistar o mar, que há tanto tempo não via. Zoey fez o mesmo. O sol, que em breve começaria a se pôr, estava tão laranja e o mar brilhava tanto que ambos tiveram que estreitar os olhos. Liam sentiu-se uma criança, empolgado demais para manter-se no seu lugar no carro e prestes a abrir a porta para pisar naquela areia; aparentemente tão branca quanto nas fotos que vira na internet.

A pousada ficava praticamente de frente para a praia, em um lote extenso e repleto de coqueiros e outras árvores. O lugar era muito úmido e fresco, não só pela maresia mas como pela quantidade de plantas e árvores espalhadas por todo o terreno. Haviam aproximadamente vinte chalés, todos espaçados entre si. Cada um deles possuía uma cor diferente, o que dava um ar ainda mais tropical no lugar. Todos eles foram construídos da mesma forma: como um sobrado, havia dois andares cada; com varandas em ambos os segmentos. Havia redes penduradas entre as colunas que sustentavam os chalés, além de plantas e flores — como samambaias, gardênias e girassóis.

O carro fora estacionado entre dois chalés, nos quais eles se hospedariam por aquele período. Cada chalé tinha um número e uma cor, e o de Liam e Zoey — que dividiriam o mesmo chalé — era o doze, com paredes de um azul turquesa. Ao lado, estava um chalé rosa escuro, no qual ficariam Marcela e Lana. Liam saltou do carro primeiro, observando ao redor e expirando o ar puro e úmido. Pegou a caixa com as duas filhotes, colocando-as na varanda do chalé azul. Por sorte, o dono do local permitia a entrada de animais; desde que não causasse confusão com os outros hóspedes. Mal colocara no chão, Meg e Mel saltaram da caixa, espreguiçando e fazendo as necessidades na grama baixa. Marcela havia garantido que convenceria Lana de procurarem um veterinário na cidade, só para que os filhotes não ficassem sem assistência por aqueles dias que passariam ali — mas que Liam seria o único responsável por cuidar delas durante aquele período.

Zoey passou por ele carregando suas coisas, olhando o local com atenção. A moça parecia ter gostado, mas algo a fez hesitar antes de entrar no chalé.

— Você pode dormir no andar de cima. Eu fico embaixo — Liam foi até a porta, abrindo-a, revelando um aposento médio com uma cama, móveis de madeira e um pequeno banheiro. Havia também um frigobar branco, uma mesa com suas cadeiras e pequenos quadros com praias e coqueiros espalhados pela parede. Uma escada estreita levava ao andar de cima.

— Tudo bem... — Zoey assentiu, entrando no quarto e se dirigindo ao andar superior. Liam pegou as cachorrinhas e colocou-as no vão embaixo da escada, onde se deitaram para dormir de novo.

Após tirar suas coisas do carro e ajudar Lana e Marcela com o restante, Liam e Zoey não perderam tempo: eles correram em direção à praia, lembrando-se apenas de fechar a porta do chalé e ouvir algum aviso inaudível de Lana.

Rindo, ambos correram e só pararam quando finalmente sentiram a areia sob seus pés. Estava quente e macio, e era tão branca que não parecia real. Liam já havia ido em algumas praias antes, e em todas elas ele se irritava pelo fato de sempre pisar em tocos de cigarros e espeto de churrasco. Naquela cidadezinha, entretanto, havia poucos turistas e nenhum lixo à vista, para a alegria da natureza — e dos pés de Liam.

Eles se sentaram lado a lado na areia, observando o sol ir ao encontro do mar. Ficaram em silêncio, escutando apenas o marulho e o som das gaivotas ao longe. Liam pensou na conversa que tivera com Zoey quando ainda estavam na estrada, e tentou mais uma vez identificar em seu coração algum sentimento de arrependimento. Vergonha, talvez, mas não arrependimento. Desde que revelara à amiga o seu segredo — talvez o maior deles — ele tentou perceber alguma mudança no comportamento de Zoey. Ela parecia a mesma, mesmo que tenha ficado claramente surpresa com a confissão de Liam. De fato, Zoey não esperava aquilo dele; mas uma das coisas que o rapaz mais gostava nela era o fato de não julgar com tanta facilidade. Zoey possuía um nível de empatia e compreensão superior à maioria das pessoas. Não...ele não se arrependera nenhum pouco de ter contado a ela, e sim de ter feito aquelas coisas. De ter decepcionado sua irmã. De ter desapontado sua cunhada, Lana, que tanto o havia ajudado.

Liam não queria pensar sobre aquilo, não naquele momento — mas, por algum motivo, as lembranças voltaram a perturbá-lo desde que começou aquela viagem. Seria o silêncio da estrada e seus fones de ouvido que causaram aquilo; ou a presença de Zoey, que lhe causava uma estranha nostalgia?

Ele não sabia responder naquela hora. No entanto, teria que enfrentar aquelas memórias e se perdoar por tudo que havia feito consigo mesmo. Já havia pedido desculpas à Marcela e à Lana por tudo o que havia acontecido, por tê-las decepcionado, mas não perdoara a si mesmo ainda.

Não ainda.

O rapaz olhou para Zoey de soslaio, e, antes que ela percebesse, voltou seu olhar para as ondas que se formavam à distância. De fato, Zoey fazia parte de um passado que por muito tempo ele tentou esquecer; mas que, agora, era mais fácil lidar. Ele estava ciente do quanto amadureceu naquela época, quando estava deprimido demais para enxergar algo bom em sua vida ou em seu futuro. Com isso, Liam tinha esperanças de que aquelas dolorosas lembranças no último ano também passassem a ter outro significado.

Liam não havia contado tudo à Zoey, e nem pretendia. Havia muitos detalhes dos quais ninguém sabia e nem precisava saber — apenas ele, o que tornava as coisas ainda mais difíceis. Como se o vento beira-mar o convidasse a mergulhar em sua mente, ele deixou com que aquelas memórias passassem por ele e através dele; como um forte vento passageiro.

Ele se viu, então, na sala de jantar da casa do seu ex-colega de turma, já alterado demais para andar sem tropeçar em seus próprios tênis. Liam lembrava-se de ter caminhado até o balcão da cozinha, apoiando as mãos na pedra fria e escura enquanto procurava, em vão, sua namorada. Havia um copo sobre o balcão — provavelmente de vodka ou algo do tipo — e ele pensou em beber, mas sua visão foi desviada para os cabelos escuros à sua frente.

— Seu nome é William, não é? — a moça perguntou. Com dificuldade, o rapaz olhou para o rosto dela, tão bonito que parecia ter sido feito a partir de filtros de embelezamento do Instagram. Ele não a conhecia, apenas se lembrava de tê-la visto no começo da festa. Liam a tinha achado bonita; lembrando-se mais tarde que se tratava de uma das primas do anfitrião da festa.

— Oi. Sim. Você viu Daniela? — ele respondeu tentando não embolar a voz. A moça contornou o balcão, ficando ao seu lado.

— Quem é Daniela? — ela perguntou. — Desculpe, não conheço.

— Éé miinha namouladsda — ele disse, balançando a cabeça e ficando mais tonto ainda. A moça tinha cheiro de alguma fragrância doce e forte, e todos os cheiros ao redor desapareceram por um momento.

— Acho que deveria se sentar. — ela riu, agarrando seu braço e levando-o para um dos sofás no canto. Liam estremeceu com o contato, gostando da sensação da mão e os braços da moça contra seu antebraço. Devia haver algo de afrodisíaco naquela bebida azul que tanto gostara; pois, depois disso, ele só se recorda do toque, do cheiro e da súbita atração que sentiu por aquela desconhecida.

Ele não se lembrou de Daniela e nem a viu em parte alguma quando a moça — que depois ele descobriu que se chamava Fernanda — o levou para o banheiro para lavar o rosto e eles acabaram se beijando. Não fora nada convencional. Depois, Liam descobriu que Fernanda também estava um pouco bêbada (não mais que ele) e que estava observando Liam há algum tempo durante a festa.

Foi então que aconteceu o que ele jamais esperava — não aos dezessete anos de idade. Não com uma desconhecida, não traindo sua namorada, não no meio de um banheiro de uma festa de adolescente. Ele se odiava por aquilo e se arrependia amargamente por ter sido tão idiota. De ter sido levado por aquele momento, mesmo sob efeito da bebida, como um animal selvagem.

Para ele, aquele foi sem dúvida o pior acontecimento (mesmo não se lembrando de quase nada), mas houveram outros que pesaram o suficiente em sua consciência — como na vez que brigara com um rapaz em outra festa e Liam saiu com dois dentes quebrados. Ou como na vez que aceitara fumar um cigarro de maconha em uma das excursões que fizeram no terceiro ano, quase sendo pego pela coordenação.

Liam se recusava a acreditar que aquele era ele.

O rapaz odiou olhar para Zoey ao seu lado naquele momento, com os olhos tão puros e a expressão tão tranquila; a mesma que acreditava que o amigo jamais faria aquelas coisas. Ele apertou as mãos contra a areia, sentindo-a entre seus dedos, como se aquilo o fizesse voltar ao momento presente. Ele não estava mais naquela festa. Não estava mais bêbado. Prometera a si mesmo jamais fazer aquelas coisas — beber demais, fumar, fazer sexo com pessoas que ele não tinha afinidade alguma e nunca, jamais, deixar com que que as circunstâncias o moldasse.

Liam havia feito essa promessa para si mesmo após uma séria conversa com Lana — na época que Marcela ainda não conversava com ele, pois estava chateada e brava demais com o irmão. Ele nunca mais se esqueceria da dor que sentiu quando viu o olhar de decepção das duas; sua família, que fazia de tudo por ele.

Marcela não sabia de tudo, entretanto. Liam não queria machucá-la ainda mais contando os detalhes. Mas Lana...havia algo nela, uma tranquilidade e compaixão em sua postura, que o fazia confiar totalmente nela. Era como Zoey — o rapaz sentia que podia contar tudo a elas e que, mesmo que fiquem chateadas por um momento, nunca gritariam com ele. Mesmo dizendo a ele que estava errado — como Lana disse, e com razão — não o condenaria ainda mais. Lana estava ciente de seu arrependimento e não queria que seu jovem cunhado ficasse ainda pior.

— Nós somos duais, Liam — Lana havia dito após um constrangedor silêncio, enquanto observava o jardim da varanda da casa. Era noite, e havia acabado de chover. Liam havia chorado como um bebê; tal como o céu naquele fim de tarde, e Lana ouviu tudo o que ele queria e tinha que dizer.

Ele se sentiu tão aliviado que por um momento achou que poderia sair flutuando.

— Como assim? — ele perguntou, fungando.

— Todos cometem erros. Somos humanos. Temos lados tão sombrios que escondemos de nós mesmos. — ela disse. — Eu diria que você foi corajoso ao enxergá-los. Não que eu aprove suas atitudes. Mas se não houvesse acontecido, será mesmo que tomaria consciência disso?

Liam piscou, liberando as últimas lágrimas de seus olhos. Às vezes, Lana era um pouco assustadora, mas no bom sentido — pois falava exatamente o que ele precisava escutar. Ela sabia interpretar tão bem as coisas, e seus conselhos eram sempre certeiros.

— Você percebeu seus erros e está disposto a não cometê-los mais — ela continuou. — Isso já é o suficiente. Seja mais gentil consigo mesmo a partir de agora, tudo bem?

Liam deu um sorriso sem graça. Estava desanimado, cansado e deprimido, mas mil vezes mais leve depois daquela conversa.

— Vou tentar — ele garantiu. — E Marcela...

— Dê um tempo a ela. — Lana aconselhou. — Ela não vai ficar assim com você para sempre. Deixe-a pensar um pouco.

Liam olhou para ela.

— Onde aprendeu a dar tantos conselhos bons? — ele brincou.

Lana sorriu, olhando para o céu escuro.

— Os acontecimentos nos ensinam — ela disse. — Basta prestarmos um pouco mais de atenção.

Liam... ele escutou a voz de Zoey em meio àquelas lembranças. Ele ainda apertava a areia contra as mãos.

— Liam?

O rapaz abriu os olhos, que estavam um pouco marejados. Olhou para a amiga, que estava com o rosto um pouco preocupado. Por um instante, foi como se Liam tivesse sido transportado mais uma vez para um tempo que não se podia mais mudar — o passado.

— Sim? — ele estreitou os olhos quando os últimos raios do Sol invadiram-lhe a face. — Desculpe. Acho que estou pensando demais.

Zoey sorriu. Era o mesmo sorriso calmo e acolhedor de Lana.

— Eu entendo. Não se preocupe — falou. — Olha... Independente do que aconteceu ano passado, eu não vou deixar de ser sua amiga. Eu gosto de ser sua amiga.

Liam soltou a areia, limpando as mãos uma na outra. Ele não conseguiu segurar um sorriso.

— Obrigado, Zoey — o rapaz disse. — Você é a melhor amiga que alguém pode ter. 

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