4. Motivos do Coração
❀ Capítulo 4 | O Som das Flores ❀
𝒁𝒐𝒆𝒚
Zoey quase achou que Liam havia desaparecido novamente. Enquanto Lana e Marcela faziam o pedido, a moça avistou o amigo sentado em um banco rústico próximo a um pequeno lago. Estava de costas para ela, por isso, Liam não a viu se aproximar. O garoto parecia estar imerso demais nos próprios pensamentos. Por um momento, ela se lembrou do Liam de alguns anos atrás: os cenhos franzidos, os ombros curvos e os lábios cerrados.
A moça se aproximou devagar; e, ao perceber sua aproximação, Liam rapidamente mudou o semblante. Ele suspirou e sorriu, parecendo voltar ao presente. Arrastou-se no banco para que Zoey pudesse se sentar.
— Você está bem? — Zoey perguntou, sentando-se ao seu lado.
— Estou — Liam piscou os olhos e observou ao redor. — Só pensando em algumas coisas. Mas estou ótimo. Bonito o lugar, não?
Zoey fitou as plantas aquáticas flutuando no lago.
— Sim. Eu gosto de lugares assim — ela concordou. — Estava pensando se foi boa ideia me convidar ou não?
Liam riu e balançou a cabeça.
— Não, é claro que não. Eu fiquei realmente feliz que tenha vindo, Zoey — ele disse. — Eu...estava pensando em outras coisas. Não tem a ver com você.
Liam ficou sério novamente. Zoey ficou calada, perguntando-se se deveria mudar de assunto ou não. Porém, como era de hábito, ela preferiu o silêncio.
— Eu sou um idiota, não sou? — Liam disse de repente, ainda sem olhar para ela.
Zoey franziu o cenho.
— Perdeu uma estrelinha — ela fingiu estar irritada. — Esqueceu do que combinamos?
Os lábios de Liam se esticaram um pouco, provavelmente lembrando da conversa que tiveram há alguns meses, no final do ano anterior. Havia apenas algumas semanas que ambos se formaram no ensino médio e voltaram a se falar com mais frequência.
Naquele dia, ainda em dezembro, eles conversaram por horas sobre aquele ano e sobre o futuro. Apesar da distância entre eles durante um período, nada havia mudado. A intimidade e a confiança um no outro ainda permaneciam. Zoey precisava daquela conversa tanto quanto Liam, pois ambos não se sentiam muito bem depois de tudo. Fora um ano pesado para ambos, apesar do crescimento pessoal dos dois. Tanto ela quanto o garoto estavam esgotados e sem autoestima alguma — o que os fazia se menosprezar a todo momento.
Zoey ainda tinha gravado em sua memória as mensagens de texto que trocaram no final da conversa:
Zoey: Eu sou burra
Liam: Eu sou um babaca
Zoey: Eu nunca vou conseguir fazer faculdade
Liam: E eu sou de humanas
Zoey: Me respeite, garoto. Eu tbm sou
Liam mandou uma figurinha de um gatinho fofo assustado. Ficou sem digitar por um momento, mas logo continuou:
Liam: Vamos combinar uma coisa? Para o bem de nós dois
Zoey: Oq?
Liam: Vamos parar de nos diminuir. Isso é um péssimo hábito
Zoey: E o que eu faço se vc se diminuir? Posso te bater?
Liam: Nããão. Cada um perde uma estrelinha. Começando agora
Zoey: HAHA. Tá bom. Combinado então
Liam: Sério sério?
Zoey: Sério sério. Não podemos perder as estrelas do nosso céu interior
Liam: Cara, isso foi muito humanas
Zoey: Cala a boca
— Certo — Liam assentiu veemente. — Eu perdi uma estrelinha. Justo.
Zoey riu, mas falou duramente em seguida:
— Você não é idiota. Por que está dizendo isso?
Liam suspirou, coçando a cabeça. Zoey achou que ele não fosse dizer nada, mas ela não forçaria o amigo. Ela só queria que Liam se abrisse como antes; como costumava ser antes deles se afastarem.
— Eu não sei ao certo — ele finalmente disse. — Arrependimento, talvez. Por não ter sido eu mesmo ano passado. Por não ter me dedicado o suficiente, por ter me afastado de você.
— Uma coisa que aprendi e Lana me disse, é que não podemos mudar mesmo as coisas que passaram — Zoey tirou as sandálias, sentindo a grama sob seus pés. — Mas podemos aprender com elas. E acho que...acho que foi necessário nos afastarmos.
Liam franziu a testa e olhou para ela.
— Por quê? — perguntou, incrédulo.
— Porque... — a moça engoliu em seco, desviando o olhar. Se arrependera na mesma hora de ter dito aquilo. Às vezes você podia voltar a ficar calada, ela disse mentalmente para si mesma. — Hã, por nada. Quero dizer, deve ter um motivo para isso ter acontecido. Muitas coisas mudaram. Eu mudei de escola, nós estávamos no último ano e...você, hã, precisava viver outras coisas.
— E eu tive uma namorada — ele completou.
— É, mas eu não estava me referindo exatamente a isso — Zoey sentiu as mãos suarem. Não estava gostando nada do rumo daquela conversa. Ela não queria falar sobre aquilo.
Seja qual fosse os motivos do seu coração, Zoey não gostara nada daquela novidade na época — o que a fez se afastar ainda mais dele propositalmente. Liam provavelmente não sabia sobre aquilo, pois nunca haviam conversado diretamente sobre aquele namoro.
A cena do dia em que vira a foto do casal veio inevitavelmente em sua mente. Ela ainda tinha aquela imagem marcada em sua cabeça como um carimbo: Liam e Daniela com os rostos colados, a garota com o moletom dele, Liam com o braço ao redor da cintura dela. Ambos sorrindo, felizes.
Zoey nunca havia sentindo aquela sensação na vida: Era como se uma faca quente estivesse adentrando seu peito, rasgando-o sem misericórdia. Ela não estava com ciúmes — estava arrasada. Era a primeira vez que sentia, literalmente, seu coração partido; e não era nada agradável. A frustração de ser incapaz de demonstrar sentimentos também a corroía.
Não que ela estivesse apaixonada por ele. Não...quem sabe uma quedinha. Pelo menos, naquela época. As coisas haviam mudado. Zoey havia mudado. Agora, ela o via como seu melhor amigo.
Pelo menos, era o que ela tentava se convencer a todo momento.
— Acho que não gosta muito desse assunto. — Liam adivinhou. — Desculpe.
Zoey olhou para ele.
— Não me importo — ela mentiu. — Sério. Você pode me contar o que quiser.
— Me envergonho de contar sobre o ano passado — ele admitiu. — Não sobre o namoro. Mas sobre outras coisas. Você sabe...
— Fez coisas que não queria de verdade. — Zoey disse, lembrando-se mais uma vez da conversa. Ela não sabia do que se tratava ou o que havia acontecido exatamente, mas não o forçou a contar.
Liam assentiu.
— É, basicamente. As coisas mudaram drasticamente nos últimos meses — ele falou. — Não voltei a ter crises. E nem ficar deprimido. Mas eu fiquei, hum, perdido. Como se eu não me reconhecesse. Agora as coisas estão melhores, mas às vezes ainda me lembro.
Zoey se sentiu tentada a perguntar o que ele se lembrava exatamente, mas não fez isso. Seus olhos, entretanto, brilhavam de ansiedade; e o amigo percebeu isso e sorriu desanimado.
— Acho que eu estava tentando fugir de mim mesmo no começo do ano passado. — ele prosseguiu — Foi o que minha psicóloga disse: eu estava querendo escapar da realidade sendo alguém que eu não era. Depois que comecei a namorar, isso piorou. Não acredito que seja culpa da Daniela...não. Ela é uma boa pessoa. Mas acho que eu não fui uma boa pessoa.
— Por que diz isso? — Zoey soltou. — Não o vejo como uma má pessoa. Você é bom, só estava passando por uma fase ruim.
Liam consertou a postura, franzindo a testa.
— Pode ter razão. Mas fiz coisas que não se encaixam com meu perfil — ele disse. — Eu nunca te contei essas coisas pois tenho vergonha. Mas você é minha melhor amiga, Zoey — o garoto fitou seus olhos. — E eu cheguei a conclusão que odeio esconder as coisas de você. Não depois de tudo que passamos juntos.
— Já disse — Zoey também olhou em seus olhos, encorajando-o. — Você pode me contar o que quiser, independente do que for. Eu não vou julgá-lo.
— Bom... — Liam desviou o olhar. — Eu ia para festas. Daniela era muito popular e era sempre convidada para essas coisas. Eu sempre odiei festas de adolescentes e o que acontece na maioria delas. Mas eu fui...queria ser um bom namorado. Eu acabei bebendo muito em uma delas. Briguei com alguém também, mas não lembro muito bem dessa parte. E... — Liam parecia desconfortável. — Eu perdi a virgindade.
Zoey tentou não arquear as sobrancelhas exageradamente. Um misto de surpresa e decepção adentrou seu ser. Ela não sabia o que dizer.
— Ah... — ela murmurou. — Como eu disse...aconteceu. Provavelmente aprendeu com isso.
— Ah, sim. Aprendi na dor. — Liam disse, amargurado — Aprendi como é doloroso decepcionar sua família depois de tudo que fizeram por mim. Aprendi que a ressaca é horrível e que eu não deveria ter traído minha primeira namorada.
Zoey esfregou as mãos na própria calça. Naquele momento, Liam parecia querer enfiar a própria cabeça no lago. A moça era incapaz de acreditar que ele, seu doce e justo amigo, fosse capaz daquelas coisas. Entretanto, Zoey não conseguiu condená-lo.
— Eu não sei muito bem o que dizer — ela confessou.
— Não precisa dizer — Liam deu de ombros. Ele respirou fundo, fechando os olhos. — Essas coisas me deixam mal ainda, para dizer a verdade. Mas, quando esqueço do passado, me sinto em paz. É como se aquele Liam estivesse morrido. Ou melhor: ele nunca existiu de verdade.
— Você só se perdeu. É isso. — Zoey sorriu. — E está tudo bem. Agora tudo está bem.
— Você tem razão. Tudo está bem agora — Liam fechou os olhos novamente, relaxando o maxilar. — Tudo está bem...
❀❀❀
Zoey sentiu-se mais leve depois daquela conversa. Quando Marcela os chamou para o almoço, Liam já estava com o semblante mais calmo novamente — o mesmo rosto que ela havia admirado secretamente enquanto pegavam estrada.
Todos comeram em silêncio e logo voltaram para o carro. As cadelinhas acordaram, felizes em ver seu salvador ao lado delas novamente. Ao contrário do que havia acontecido pela manhã; com todos sonolentos demais para qualquer coisa, todos conversaram entre si — o que fez o tempo passar ainda mais rápido. Zoey aos poucos foi se inserindo na conversa, sentindo-se tão segura com aquela família que sua timidez aos poucos fora colocada de lado.
Ela não se sentia a mesma pessoa de três anos atrás. E não era mesmo. Se Zoey tivesse o poder de voltar ao tempo e se reencontrar com o seu eu do passado, a antiga Zoey não acreditaria no que havia se tornado. Não que ela tivesse se superado totalmente — aquele era um processo longo demais para tal exigência — mas ela sentiu a mudança. Antes, ela não conseguia se comunicar com ninguém além de seus pais e sua irmã mais nova. Agora, era natural para ela dar bom-dia ao atendente de um caixa, agradecer alguém e até mesmo conversar com seu melhor amigo. Aquele último fato, para ela, era o mais gratificante. Ela nunca imaginou que um dia pudesse conversar com Liam usando a própria voz.
Zoey estava fazendo o máximo para ignorar a parte da conversa que a incomodava. Não havia motivos para se sentir chateada; não naquele momento. Liam não estava mais namorando Daniela. E, mesmo se estivesse, o que ela tinha a ver com aquilo? Ela queria, mais que tudo, que o amigo estivesse feliz. Depois de ver Liam em seu pior estado — e de Liam vê-la tão vulnerável — era o que ela mais desejava. O garoto realmente parecia mais feliz, mas estava claro que algumas coisas estavam mal resolvidas consigo mesmo; assim como Zoey. Ela tinha a impressão que aquela viagem seria mais do que imaginava que seria. Entretanto, o que aconteceria, era um mistério. E Zoey às vezes odiava mistérios, pois sua ansiedade aspirava por certezas.
Ansiedade. Aquela palavra a acompanhava há alguns anos. Não só pelas crises de Liam, mas pela sua própria ansiedade. Às vezes ela se via, ainda, roendo as unhas e arrancando os próprios fios de cabelo. Ela costumava registrar todos os momentos em que se sentia mais ansiosa — mais um conselho útil de Lana — e, um deles, era quando estava com Liam.
— Você parece um pouco tensa — Lana apareceu ao seu lado na varanda da lanchonete. Era a terceira parada. O lugar era pequeno e rústico, como quase todos os estabelecimentos da estrada. — Está tudo bem? Não está gostando da viagem?
Zoey piscou, percebendo que estava com os cenhos franzidos. Aquilo só piorava sua inquietação.
— Estou — ela disse, tentando sorrir. — Estou gostando muito. Só estou pensando demais em algumas coisas.
— Oh, Zoey. Somos tão parecidas que às vezes me assusto — ela disse, colocando um fio de cabelo atrás da orelha. Seu cabelo castanho claro estava amarrado em um rabo-de-cavalo alto. — Aprendi com o tempo a dádiva de viver no presente. Mas isso é difícil, claro. Um hábito tão difícil quanto acordar todos os dias às cinco da manhã.
Zoey olhou para ela. Vez ou outra ela tinha a impressão que Lana lia seus pensamentos — como se pudessem absorver os pensamentos uma da outra ou compartilhassem de uma mesma mente.
— É. Às vezes vivo demais no passado. Ou pensando demais no futuro — a moça disse. — Isso é...cansativo.
— Eu entendo, minha cara — Lana apoiou a mão delicadamente em seu ombro. — Eu entendo. Mas prometo que com o tempo conseguirá controlar isso. Comece usando a comida como meio — ela aspirou o ar, sentindo o aroma de pão de queijo recém assado. Lana era louca por pães de queijo. — Tente saborear a comida, sentindo o cheiro, o gosto e a textura, sem pensar no que tem que fazer daqui a dez minutos.
— Dizem que é uma boa técnica para se distrair e controlar a ansiedade — Zoey estava prestes a dizer sobre um vídeo que vira no YouTube sobre aquilo. Mas Lana já estava com os olhos vidrados em direção à estufa de salgados.
— O que acha de fazermos isso agora? — ela perguntou. Zoey viu que Liam havia saído do banheiro e estava indo em direção ao balcão. Ele havia trocado a calça por uma bermuda camuflada, usando uma camiseta branca. Mais uma vez, ela percebeu o quanto o corpo de Liam havia mudado. Estava mais robusto, seus braços e ombros um pouco mais largos do que ela se lembrava.
Zoey sentiu seu estômago dar voltas, mas ela interpretou aquilo como fome. Ela precisava urgentemente de um pão de queijo para se distrair.
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