🦋 ᴏ quᴇ sᴇ cᴏnsɪdᴇʀa ʀᴇlᴇvantᴇ

Os olhos de Mitchell são atentos, de um castanho esverdeado tão bonito que me deixa desconfortável. Estão me analisando, mas não de um jeito particularmente clínico; a inspeção vai além disso. Ele não quer só entender a minha doença, ele quer encontrar um jeito de me alcançar por completo. Como se realmente se importasse.

Isso deveria me colocar na defensiva, mas só desejo boa sorte a ele. Desde o incidente que as minhas palavras são limitadas — se falei vinte frases, foi muito. O luto e a desgraça fizeram com que as pessoas não quisessem conversar comigo, como se o silêncio as poupasse da dor. Com o tempo, adotei o silêncio também. Quanto menos falo, menos machuca.

O meu primeiro encontro com Mitchell como sua paciente foi calmo. Achei, sinceramente, que meu corpo me trairia; que eu surtaria e gritaria como fiz com os terapeutas anteriores. Mas, surpreendentemente, tudo correu bem. Não que eu tenha conversado de verdade, mas não senti vontade de bater a cabeça dele — ou a minha — na mesa. Mitchell me perguntou sobre a escola antes do incidente, sobre meus pais, sobre meu irmão, sobre meus amigos e até sobre o meu primeiro emprego, mas não tocou no assunto, como esperei. Nem mesmo no fim da sessão. Foi como se ele não soubesse o que tinha acontecido.

— Nosso tempo acabou — Mitchel anuncia de repente. — Obrigado por ter conversado comigo, Elizabeth. Você é uma garota muito interessante.

Interessante. Sei muito bem o que essa palavra significa, mas acho que não combina comigo. De qualquer jeito, sorrio para Mitchel e levanto da cadeira, incerta sobre o que fazer a seguir. Devo dizer algo? Assinar algo? Perguntar algo? Melhor não. Qualquer passo e Mitchel entenderá que quero a sua ajuda. Eu costumo sempre passar as impressões erradas para as pessoas — Dominic me dizia isso com frequência

É engraçado pensar que, às vezes, notamos alguma coisa sobre nós mesmos apenas quando alguém faz isso primeiro. Como se dependêssemos do olhar exterior para termos certeza de que somos como somos.

Mitchel está me olhando com curiosidade, provavelmente tentando entender por qual motivo simplesmente parei e fiquei olhando para ele sem dizer nada. Desvio a atenção para a sua mesa, onde uma pilha de papéis se acumula. Entre eles, uma folha marrom com desenhos de borboletas ganha destaque aos meus olhos, e eu sinto uma necessidade quase sobrenatural de pegá-la nas minhas mãos para analisar.

Afasto o pensamento e decido simplesmente sair da sala. Sem brechas para a minha má sorte, sem brechas para Mitchel pensar que está se aproximando de mim.

— Até logo — digo rapidamente, então corro para a porta.

O lado de fora da sala parece muito mais fresco. Eu nem percebi que estava tão nervosa. Respiro fundo e caminho até chegar à área comum, onde ficam as TVs, videogames e tudo mais. O lugar está cheio por ser final de tarde, mas sigo ignorando todos os pacientes curiosos com a garota nova. Mantenho meus olhos no chão, fixos como se minha vida dependesse disso, e subo as escadas. Ouço cochichos e sussurros, mas nenhumas dessas pessoas fala diretamente comigo. É exatamente como no ensino médio.

Sempre fui o tipo de garota que tem muitos amigos, mas isso não dependia de mim. Tudo era sobre Dominic. Quando nos conhecemos, logo no primeiro ano, eu era nova e ele acabou me unindo aos amigos dele. É estranho pensar desse jeito, mas é verdade. Nenhuma daquelas pessoas teria me notado se não fosse por ele. Todo mundo aceitou a minha presença e, aos poucos, passaram a gostar de mim, mas sempre senti que era frágil. Como se fossem esquecer da minha existência se um dia eu deixasse Dominic.

Bom, sei que iriam.

A verdade é que sempre fui a sombra de Dominic, a garota que ria de suas piadas e fazia elogios. Ninguém escutava quando eu falava, a não ser que eu estivesse falando dele. Por costume ou simplesmente por não me importar, isso nunca me incomodou. Pelo menos não até o incidente.

Depois que Dominic se foi, apesar de eu continuar sentindo que era uma sombra, tudo mudou. Ao resto do mundo, finalmente Elizabeth existia. Mas sombras precisam estar ligadas a algo, elas pertencem a outros e não a si mesmas. O que é uma sombra sem o seu dono? Nada. Apenas escuridão. Um vulto perdido por aí, que ninguém sabe que existe, algo que foge à compreensão. Eu não podia mais ser uma sombra, então o que era? Dominic diria que uma garota — uma garota incrível —, mas ele não podia mais dizer qualquer coisa para me confortar. Então fui obrigada a ser a Elizabeth.

A Elizabeth que não podia se esconder em uma sombra.

Foi assustador. Cheguei a pensar que não conseguiria, mas seria um luxo absoluto ter a opção de desistir. No funeral dos meus amigos, na primeira vez em que não fui uma sombra, tive que sentir tudo. As pessoas me viam de verdade e se perguntava como Diabos eu sobrevivi e os outros não. Eu era especial? Dominic diria que sim. Mas só ele enxergava isso, então, para todo mundo, Elizabeth Taylor era a garota que viveu para que seus filhos morressem. Não especial, apenas amaldiçoada.

Fecho a porta do quarto atrás das minhas costas. Todos esses pensamentos me distraíram o suficiente para que as pessoas na sala de TV fossem esquecidas, mas agora a realidade voltou. Estou aqui, e não estou sozinha, como no funeral, apesar de solitária. Aquelas pessoas, mesmo não tendo falado comigo, me amedrontam, e são reais demais para que eu consiga fugir. Não quero pensar no que podem perguntar quando quiserem me conhecer, porque com certeza precisarão de uma identidade; um perfil. Mas eu tenho medo de que tenham medo de mim.

Tudo o que tenho, agora, é medo.

E isso é ruim, até para uma sombra.

🦋

Eu sei que é um sonho.

Não porque é bom, mas porque é impossível. Dominic está aqui, sorrindo para mim. Seu rosto é gentil, como sempre. Ele usa sua roupa favorita: calça de moletom larga e camisa social. A combinação é estranha, mas lhe cai bem. Ele usa coisas estranhas desde que nos conhecemos.

— Sabe, acho que deveríamos levar mais bebidas — diz.

Então um carrinho de supermercado aparece à minha frente e, aos poucos, um corredor cheio de produtos ganha vida na escuridão. Dominic está com um pedaço de papel na mão esquerda, apontando para as nossas opções com a mão direita. Acho que, mesmo tendo uma lista, está confuso.

— Temos bebidas demais — respondo. Não penso sobre o que dizer, só falo como se estivesse seguindo um roteiro. — Acho que deveríamos comprar mais salgadinhos.

Dominic pensa por um segundo antes de concordar. Ele amassa a lista e a coloca no bolso da calça, então inclina a cabeça para baixo e sussurra sorridente.

— O que eu faria sem você, Liz?

— Provavelmente morreria — provoco.

O sorriso dele desaparece no mesmo instante, e Dominic para de andar. Algo na expressão dele machuca — não a mim, a ele. Como se de repente alguém tivesse cravado uma faca em seu peito

Meu estômago revira e os produtos nas estantes do mercado começam a cair no chão.

— Você tem razão — Dominic diz de uma forma vazia. — Sem você...

Antes que ele possa terminar, garrafas de vodca estouram às minhas costas e o líquido, junto com o vidro, nos atinge.

Penso em gritar, mas algo toca o meu rosto.

Seguro o fôlego e me forço para acordar. Eu já sabia que era um sonho, mas deixei levar mesmo assim. Minha intenção foi ver Dominic mais uma vez, escutar sua voz e ter sua companhia, mas teria sido melhor não arriscar. Alguns pesadelos simplesmente tiram o melhor de nós, como se fossem reais.

Esse certamente era.

Abro os olhos. A sensação quente no meu rosto, na bochecha direita, estava muito além do sonho e, com certeza, foi o que me acordou. Pulo na cama e me encolho contra a parede, muito assustada por saber que não estou sozinha. Quero gritar, mas não consigo; meus reflexos são horríveis.

Então vejo Ethan sentado na beira da cama, sorrindo.

Ele não é exatamente uma ameaça.

— O que você está fazendo aqui?

Estou visivelmente alterada, respirando pesadamente e com os olhos arregalados.

Como se fosse assim, simples, ele diz:

— Você não tomou café da tarde. E nem café da manhã.

Fico olhando para o seu rosto, esperando algo além disso. Qualquer continuidade seria plausível, mas Ethan não se esforça para completar sua explicação.

— E o que você tem a ver com isso? — insisto em saber.

— Você precisa comer. Como vai melhorar, se não comer?

É inacreditável. Ele tem um parafuso a menos, como todo mundo aqui. Seguro todos os resmungos que quero soltar e volto a deitar na cama, me escondendo embaixo do edredom. Quero sumir. Desaparecer dessa praia infernal e ir para bem longe das pessoas malucas que sempre parecem me rodear.

— Vai embora. E nunca mais entra no meu quarto desse jeito.

Apesar da grosseria, ele não se move. Continuo sentindo o peso na ponta da cama. Espio por uma fresta do edredom e o encontrou com os braços cruzados, concentrado na parede da cama de Maya.

Quando nota que o estou encarando, diz:

— Eu não vou sair enquanto você não comer alguma coisa.

— Então eu vou gritar!

— Fique à vontade. Estão todos na Praia.

Sento mais uma vez e olho pela janela. É verdade: o grupo todo está lá, andando ao pôr-do-sol enquanto suas silhuetas pintam a areia.

Neste momento, meu estômago me trai e ronca muito alto. Agora, preciso admitir, estou com muita fome.

— Então a cozinha está vazia? — pergunto, meio contrariada, ainda olhando para a janela como se isso fizesse minha fome parecer casual.

Ethan concorda com a cabeça.

— Temos uns trinta minutos até todo mundo voltar.

Olho para ele sem muita pressa e dou de ombros. Não sei por que é tão importante fazê-lo não se importar comigo, nem por qual motivo faço isso comigo mesma. É uma grande hipocrisia desejar ter morrido no incidente e continuar aqui, comendo, cuidando da minha saúde, sobrevivendo. Se eu fizesse o que penso, deixaria a fome me matar. Mas, no fundo, sou egoísta; eu quero ser salva, mesmo que só por medo.

Ethan se levanta da cama e me oferece uma das mãos. Esse pequeno gesto faz uma lufada de ar escapas pelos meus lábios, meio como se fosse engraçado. Ele parece um clichê, como aqueles garotos que a gente conhece na escola. Ainda não sei qual é o tipo dele: seria o capitão do time de futebol que te engana para conseguir transar com você? Ou o cara quieto, tímido, que vai quebrar o seu coração depois de muito tempo? Sinceramente, qualquer um dos dois parece pouco provável. Há algo nele que não consigo entender, como se Ethan fosse a mistura de muitas coisas.

Acabo aceitando a sua não. Não por qualquer interesse, apesar de ainda estar curiosa, mas porque estou mesmo com fome. Ethan sorri assim que os meus dedos encostam nos seus, meio vitorioso, o que me faz revirar os olhos.

Não me importo de estar de pijama, só o sigo para fora do quarto e descemos as escadas em silêncio. Fico feliz por não estarmos conversando, já que sempre prefiro o silêncio, mas percebo ter comemorado cedo demais quando Ethan começa a falar.

— Então, é algum tipo de fobia social? Ou você odeia todo mundo?

Tenho essa mania de me abraçar sempre que sinto uma ameaça. Não que Ethan vá me atacar ou coisa do tipo, mas ele está tentando me conhecer. Não é só o meu nome, não é sobre os meus gostos; é sobre mim, Elizabeth Taylor, internada em uma clínica de reabilitação.

— É, isso. Eu odeio todo mundo — concordo. Quem sabe ele não fica satisfeito?

— Acho que você se odeia. É bem diferente.

Paro de andar e fico encarando Ethan como se pudesse assassiná-lo só com o olhar. Depois de alguns segundos, ele percebe o que disse e começa a pedir desculpas, mas estou com tanta raiva que não o escuto.

— Vai para o inferno.

— Desculpa, eu só queria te entender.

Quando dá um passo na minha direção, avanço e vou direto para a cozinha. Estou pouco me lixando para as intenções dele. Não vou aceitar análise psicológica de outro fodido psicologicamente.

Pego algumas bolachas de um carrinho perto da porta, volto a subir as escadas e me tranco no meu quarto.

Quanto mais fico nesse lugar, mais desejo que o mundo inteiro me engula.

🦋

CONTINUA

N/A:

OIEEEEE!!! Como vocês estão? Espero que bem e seguros. E espero que esse capítulode OSdC melhore um pouquinho o dia de vocês. Eu amei escrever ele porque pude trazer alguns fragmentos do passado da Elizabeth à tona. Talvez, agora, vocês já comecem a criar teorias sobre como era a vida dela e sobre o que pode ter acontecido. 

Eu liberei uma foto do Dominic lá no meu clube de leitores! Se você não conhece ainda, é um lugar onde posto conteúdo exclusivo sobre os capítulos (como, por exemplo, a foto do Dominic e o desenho que a Elizabeth viu na mesa do Michell. Estão todos lá <3) dá uma passada no link da minha bio! Membros do clube também recebem o capítulo antes de todo mundo e alguns outros extras.

Até a próxima! Não se esqueçam de passar no meu instagram para ver o calendário de atualizações (andresa7ios).

beijão.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top