🦋 ᴇxpʀᴇssaʀ-sᴇ pᴏr mᴇɪᴏ dᴇ ᴇscʀɪta

EU NÃO ESCREVO MAIS.

Não desde que tudo aconteceu.

É como se minha mente não funcionasse do mesmo jeito. Como se estivesse com algum defeito irreparável. Não consigo pensar as mesmas coisas de antes, nem se eu me esforçar, e não só quando se trata dos meus cadernos. Parei de responder mensagens de texto, não sou mais capaz de ler livros.

Talvez o defeito esteja em mim, afinal. Não só no meu cérebro. Mas em mim. Estou quebrada, e coisas quebradas não funcionam.

— Eu peço que tente. Só isso.

Conheço muito bem esse olhar penoso, quase dolorido, que Mitchel lança na minha direção. Ele está suplicando para que eu melhore, para que eu coopere com os seus métodos. Sua intenção é me curar, assim como todos os outros que vieram antes dele, mas há algo diferente, quase pessoal, no modo como ele olha de mim para o caderno sobre a sua mesa.

— Eu já tentei.

Há súplica na minha voz também. O tom é cansado, perceptivelmente desesperado. Esse som, rouco de cigarros, gasto pela bebida, é o que restou depois de tudo o que passei. Mas Mitchel não se comove e, com delicadeza, empurra mais o caderno na minha direção.

— Você mudou de ares agora. A praia pode te inspirar. Sua mãe me disse que você sempre gostou de escrever, que tem vários desses cadernos na sua casa. Talvez seja a hora de voltar.

— Tinha — o corrijo, ainda sem aceitar a sua oferta. — Eu tinha vários cadernos desses. Queimei todos.

Mitchel engole a seco, mas o choque dura muito pouco. Logo ele está inabalável, como antes. Minhas pernas começam a tremer diante de sua postura. Eu só queria que parassem de prestar atenção em mim. Eu queria ser invisível. Todos esses cuidados, sessões de terapia, toda a preocupação da minha família... Isso me mata por dentro. Todos os dias. Cada vez um pequeno pedaço.

Porque sei que é em vão. O esforço e a esperança são como veneno. O inevitável é o pior cenário, um no qual acabo com a minha própria vida do jeito tradicional ou, pior, do jeito lento, sobrevivendo sem viver. Sentar aqui, nessa cadeira, é sinônimo de fracasso. Porque sei que não vou melhorar. E se eu deixar Mitchel acreditar que sim, isso só vai servir para fazê-lo ser mais uma das pessoas que vou decepcionar.

Acho que estou passando mal, talvez tendo uma crise de ansiedade. Faz tempo que não passo por isso, mas sempre tem como piorar.

— Elizabeth, peço que dê uma chance a nós.

A voz de Mitchel é um ponto fraco dentro da minha cabeça. Fico olhando o caderno de capa preta na mesa, que ele me ofereceu com tanta esperança, e penso em queimá-lo também.

Que se foda.

Farei o que ele quiser — ou pelo menos vou fingir.

Qualquer coisa para poder sair logo dessa sala. Estou começando a sentir as paredes se aproximando.

— Vou dar uma chance.

Mitchel sorri brevemente, totalmente desconfiado. Ele sabe, apesar do meu teatro quase ridículo, que tentei fugir. Posso sentir. Minha mãe precisava muito acreditar que quero melhorar, então se enganou e se convenceu de que eu não tentei correr para longe da minha única salvação, mas Mitchel é experiente e já deve ter visto isso antes.

Ele sabe.

E está ignorando.

Me pergunto o porquê. Meus outros terapeutas teriam me dado uma bela bronca.

— Fico feliz — Mitchel se afasta um pouco da mesa. Sinto que está jogando comigo, assim como eu com ele. — Vou deixar para te mostrar as regras e o cronograma depois. Você deve estar cansada e precisa descansar. Alguém vai te mostrar o seu quarto.

Concordo com a cabeça e, aliviada, pego o caderno ao me levantar. Meu estômago revira só de eu lembrar o cheiro das folhas de um caderno novo, e, por mais que a capa de couro pareça queimar os meus dedos, preciso fazer isso. Mitchel quer me curar e vai insistir nessa cura enquanto conseguir enxergar os meus pedaços quebrados. Preciso convencê-lo de que estou bem, de que estou ao menos me esforçando, para que ele desista. Ou se conforme. Ou sinta que fez o seu trabalho e me deixe em paz. Apesar e eu ainda não querer decepcioná-lo com falsas esperanças, não tenho forças para fazê-lo entender como desejo sumir. 

Agradeço antes de me retirar da sala. Ainda sinto que ele sabe o que estou tentando fazer.

Ethan está no corredor, com a cabeça encostada na parede, quando abro a porta. Ele me olha assim que entro no corredor e sorri:

— Olha ela! Como foi lá dentro? Ele te deu um sermão ou só fingiu que não viu?

O cabelo preto está arrumado agora, como se antes Ethan estivesse interpretando um personagem. Que conveniente seria, afinal, encontrar outro rebelde sem rumo durante a minha fuga? Eu deveria saber que essas coisas não acontecem. Não é como se a minha vida fosse um filme de superação adolescente. Um cara bonito não vai aparecer e me salvar. Mais do que ninguém, sei disso. Estou aqui porque acreditei nessa merda toda; estou aqui porque achei, por um momento, que poderia ser salva, e tudo só piorou.

Ethan entende meu silêncio como um protesto, se desencosta da parede e dá um passo na minha direção. Suas duas mãos estão nos bolsos, a cabeça inclinada para baixo para mantermos a mesma altura.

— Não ficou com raiva pelo que aconteceu, né? Eu só estava fazendo o meu trabalho.

Continuo sem respondê-lo. Se antes eu só estava perdida em pensamentos, agora o ignoro de propósito. Estou com raiva, mesmo que não especificamente dele. Não é culpa de Ethan eu estar aqui. Ele não me colocou dentro daquele carro e me trouxe para cá, muito menos provocou toda a merda que me fez precisar de ajuda profissional.

Ele é só um efeito colateral. Uma consequência de uma consequência.

Conformado com o meu silêncio, Ethan desiste e indica com a cabeça a direção que devemos seguir. Descemos pelo corredor até a sala de TV, onde agora tem umas cinco pessoas, e eu viro o rosto para não ter que cumprimentá-las enquanto seguimos para as escadas. O andar de cima é tão cru quanto o térreo, com pouca decoração e um papel de parede horrível. Meu quarto, ou pelo menos o que vou ficar dormindo enquanto estiver aqui, é o 7.

Ethan abre a porta e fica apoiado na maçaneta como se quisesse ver a minha reação diante do que me espera lá dentro.

— Eu trouxe suas malas. Um conselho: tome cuidado com a Vivi, porque ela é cleptomaníaca. — olho para ele tão rápido que sinto minha cabeça doer, e logo Ethan sorri: — A boa notícia é que, como vocês dividem o quarto, não tem como suas coisas irem parar muito longe.

Não sei se ele está falando essas coisas e agindo desse jeito para tentar me intimidar ou me deixar à vontade, então acabo não pensando muito nisso. Entro no quarto devagar, analisando tudo, sem me importar com o olhar atento de Ethan às minhas costas. Tem duas camas, duas cômodas, um closet e um tapete. Nada mais. A janela está aberta e deixa um pouco de sol entrar.

Tento me imaginar acordando aqui todas as manhãs. É estranho. Meio... irreal. Começo a sentir saudades de casa, da minha mãe e do meu pai. Por mais doloroso que fosse estar ali, enfrentando as consequências de tudo o que aconteceu, eu já conhecia aquela dor. Essa aqui é nova, solitária, confusa. Não sei o que fazer assim como não sabia o que fazer na minha casa, só que agora não tenho para onde fugir. Não tenho esperanças de reconciliação, de voltar a ter uma vida normal. Esse lugar é um ponto final, o exato momento em que minha vida muda mais do que jamais mudou.

Antes, eu tinha uma escolha. Eu poderia tentar mudar tanto que uma hora meus pais se esqueceriam de tudo o que eu fiz. Eu poderia ir atrás dos meus amigos e pedir perdão a eles; eu poderia encontrar cada família das vítimas fatais e fazer algo a respeito.

Mas agora, não

Não tenho escolha.

Só tenho ar para respirar e culpa para remoer. Dor. Pesadelos que sei que virão todas as noites.

E o pior é sentir que isso é exatamente tudo o que eu mereço.

Uma dor aguda me acorda para a realidade, e eu paro de pressionar as unhas contra as palmas das minhas mãos. Respiro fundo, afasto todos esses pensamentos e ando até a cama onde as minhas malas foram postas. É macia, pelo menos. Nada como a que tinha no meu quarto, mas talvez eu consiga dormir aqui.

Deito no único e pequeno espaço que não está sendo ocupado pelas minhas malas e encaro o teto. Aos poucos, sinto minha respiração ficar mais calma. Fecho os olhos, percebendo pela primeira vez que é possível ouvir o som das ondas quebrando mesmo com a distância do mar. Eu amo esse barulho; me faz lembrar de Dominic.

Sinto tanto a falta dele que, às vezes, parece que vou morrer.

— Você deve ser a Elizabeth!

Abro os olhos como se alguém tivesse jogado um balde de água fria em mim. Olho para a porta do quarto, mas a montanha de malas me impede e enxergar direito. Vejo apenas fios de cabelo loiro presos em um coque muito alto, bagunçado e cheio de pequenas presilhas infantis.

— Eu estava louca para te conhecer! Nem acredito que finalmente vou ter uma colega de quarto. Acho que o Mitchel está começando a confiar em mim. Sou a Maya, a propósito.

A mulher está do meu lado agora, com um sorriso colossal no rosto. Há marcas de expressão ao redor dos seus olhos e sua pele é um pouco machucada pelo sol. Quero muito reparar na sua beleza e em como ela parece gentil, mas a única coisa que chama a minha atenção são os cortes no seu pescoço.

— Oi. — Me forço a dizer. Quase engasgo.

Ela ri um pouco nervosamente, então me encoraja:

— Você é...?

— Ah, sim. Elizabeth. Elizabeth Taylor.

Contente, ela só concorda com a cabeça. Então se vira rápido demais e deita na cama oposta à minha. Faço o mesmo, voltando a encostar a cabeça no travesseiro, e fico esperando Maya dizer alguma coisa por longos segundos.

Nada acontece.

Nenhum assunto.

Nenhuma fala.

Só consigo pensar que se eu estivesse na minha antiga vida, antes de tudo acontecer, eu nunca passaria por uma situação dessas. Eu costumava sempre saber o que dizer, era muito boa em lidar com pessoas. Meus discursos de representante de turma eram os melhores; minhas amigas todas faziam parte do grupo de populares, líderes de torcida ou chefes de comitês. Eu nunca, em toda a minha vida, até esse maldito incidente, havia passado por situações onde o fato de eu existir em um contexto social me incomodasse.

— Você também é escritora?

Maya me encara com curiosidade da sua cama. Seguro instintivamente o caderno que Mitchel me deu mais forte, porque já sei que a pergunta é por causa dele. Desde que deitei nessa cama o seguro contra o corpo como se fosse um tipo de salvação. Eu nem havia reparado em como desesperadamente, internamente, quero a sensação do papel entre meus dedos de volta.

— Não. Eu só... anoto coisas. Palavras.

Maya concorda com a cabeça.

— Qual foi a última palavra que você anotou?

Penso na linha do meu caderno especial, na minha casa. Ele não existe mais, foi totalmente queimado, como os outros, mas me recordo de cada pequeno detalhe dele, porque foram aquelas folhas que selaram o meu terrível destino.

Fogo, eu escrevi naquela noite. E uma série de palavras que jurei nunca mais usar na vida. São amaldiçoadas agora, independente do contexto.

Levanto da cama, ignorando a pergunta de Maya, e me escondo no banheiro do quarto.

Aquelas palavras... Aquelas malditas palavras estão se repetindo na minha mente, e eu não consigo pará-las.

🦋

Quando saio do banheiro, Maya joga um vidro de protetor solar na minha direção. Por impulso acabo segurando no ar ao invés de deixá-lo cair.

— Anda logo. O Mitchel odeia atrasos.

Enquanto fala, Maya pega um chapéu de sol de dentro do armário e o coloca na cabeça. Se olha no espelho da porta, feliz, como se amasse essa peça com todo o seu coração.

— Por que eu preciso de protetor?

Ao fechar a porta do armário, Maya está agitada e começa a andar pelo quarto em busca de pertences (óculos de sol, chinelos).

— A gente caminha na praia todos os dias. É sempre às 15 e às 16 horas, antes do sol sumir completamente.

Ah, claro. Uma casa de recuperação na frente da praia incluiria passeios ao pôr do sol em sua programação. Não sei por qual motivo não adivinhei que passaria por algo assim antes.

É um pesadelo.

— E se eu não for? — pergunto.

Maya olha estranho para mim.

— Não sei. Ninguém nunca preferiu ficar.

Volto para a minha cama, onde sento e decido que não vou me mover. Não gosto de praia, não gosto de protetor solar e não gosto de ser obrigada a fazer alguma coisa. Mitchel pode me manter aqui, tentar empurrar cadernos vazios na esperança de despertar algo bom, mas ele não pode, e não vai, me fazer viver uma ilusão dessas. Caminhar na praia? Como eu poderia fazer isso? Escrever é mais provável.

Maya me olha estranho quando não a acompanho para fora do quarto, mas não diz nada. Ela sai, fecha a porta e eu ouço seus passos até o último degrau da escada. Então solto o ar pela boca calmamente, contando até 100, e quando acho que terei alguma paz a porta do quarto se abre de novo.

É Ethan.

O cabelo dele não está bagunçado como de manhã, nem arrumado com quando me trouxe até o quarto. Ele usa um boné virado para trás que cobre todos os fios. Parece que está preparado para a praia também.

— Ei. Você tem que ir. São as regras da casa.

— Estou cansada. Vim de longe e a viagem foi longa.

Ele me analisa por uns dez segundos, de cima abaixo, apoiado na maçaneta da porta. Tira o boné, coloca de volta, suspira umas duas vezes e acaba decidindo o que fazer.

— Certo. Mas é só hoje. Os passeios na praia são importantes para o Mitchel.

Contenho o impulso de revirar os olhos. O que esse Mitchel tem que todo mundo se esforça tanto para agradá-lo? Sei que seremos tratados por ele, mas essa devoção é quase doentia. Não deveríamos nos apegar tanto assim a alguém.

— Tá, ok. Só me deixa sozinha.

Sem falar nada, Ethan fecha a porta. Eu espero, assim como fiz com Maya, seus passos sumirem por entre o som das ondas do mar, e então jogo todas as malas que estão sobre a minha cama no chão. Contenho um impulso muito forte de socar a parede, mas grito contra o travesseiro com toda a força que meus pulmões permitem.

Então, me enfio embaixo dos edredons e durmo tão rápido que nem me lembro do exato momento em que caio no sono.

É a primeira vez em três meses que não tenho um pesadelo.

🦋

CONTINUA

N/A: OIEEEEEEEEEEEEE

COMO VOCÊS ESTÃO?

Sentiram saudades da história? Estão gostando? Já têm algum preferido?

Espero que estejam todos em casas, seguros, nessa quarentena. Logo vai passar, prometo. E tudo vai ficar bem. Fiquem fortes e se cuidem, leiam notícias, se informem, lavem as mãos.

Não escutem o Bolsonaro (sério).

Um grande beijo,

Andy.

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