☪ ─ capítulo único
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Cerca de 5590 palavras que contam uma breve história entre um menino da Capital e um mulato de olhar travesso. Espero que apressiem.
─ I ─
Augusto sentiu a brisa da Ilha de Tamaris lamber seu rosto como uma forma de dar as boas vindas. Ele não sorria, apesar da paisagem ser agradável. Eram ruazinhas de pedra, com casarões grudados uns nos outros e pessoas, que em sua maioria, andavam até os comércios com tranquilidade. Algumas estavam descalças, com a sola do pé entrando em contato com a poeira do chão; riam de alguma história inédita e não ligavam para os raios solares que queimavam-lhe a pele ainda pela manhã. Augusto percebeu que todos ali eram muito bronzeados e, para sua surpresa, não havia o barulho e a fumaça costumeira da capital. Era calmo e, na visão do jovem de apenas dezessete anos, uma prisão ao ar livre.
O rapaz não queria pensar muito sobre os motivos que o trouxeram a Ilha de Tamaris. Augusto foi expulso de casa de um modo pacífico demais para seu gosto e com a desculpa de aprendizado fora do ambiente familiar, todavia, o que ele reconhecia era que seus pais não suportavam olhá-lo sem lembrar da noite em que, vergonhosamente, havia sido pego em uma das diversas festas clandestinas que reuniam pessoas com gostos diferentes de uma forma sexual. Gostos como os dele. E apesar de querer se convencer que não havia um problema consigo, ele sabia que havia. E reconhecia que, a partir daquele dia, veria cada vez menos sua família e provavelmente morreria solitário, como todas as pessoas que escolheram o impulso sexual errôneo à uma vida perfeita criada por seus familiares com esposa, filhos e o emprego perfeito.
O jovem suspirou e parou de olhar a movimentação da rua pela janela do carro. Ele era muito diferente de todos ali e não havia como negar. Augusto tinha aquela pele de leite, branquinha e macia; os cabelos eram negros e se destacavam em sua aparência. Era baixo, com olhos castanhos clarinhos que pareciam avelãs. Usava roupas caras e, na mala do carro, poderia-se destacar os gostos do menino: livros e mais livros, que lhe foi permitido trazer depois de muito insistência com sua mãe. A pobre mulher chorou sua partida, ao contrário de seu pai, que parecia ansioso em se livrar do filho e da vergonha que foi encontrá-lo na lastimável festa que arruinou seu futuro.
Pensando no futuro, o mesmo era incerto agora. E quando o carro parou na frente de um dos mais bonitos casarões da rua, Augusto não fazia ideia de como sua vida seria dali pra frente, mas sentiu seu coração se aquecer quando percebeu uma senhora gorducha na porta, com um avental, uma saia longa e um sorriso no rosto. O menino percebeu o que era aquela construção: um tipo de pensão, onde vinha um cheiro gostoso de comida caseira. Pela primeira vez, ele sorriu um pouco.
— Augusto! Meu menino. — a senhora falou em um tom materno. Augusto saiu do carro e sorriu tímido para a mesma. — Olhe como cresceu. A última vez que o vi era pequenininho! Nem deve se lembrar.
— Bom dia, Senhora. — Augusto murmurou e tomou um pequeno susto quando os braços gorduchos da mulher rodearam o menino.
— Senhora está no céu. Me chame de Tia Cida. — disse alegre e se afastou, com as mãos nos ombros do menino que parecia tentar ficar à vontade com aquela demonstração de carinho tão incomum. — Venha, entre logo. Deixe-me olhar para você direito.
Augusto olhou para trás, vendo o motorista tirando suas malas do carro. Suspirou e seguiu Tia Cida, que gesticulava com as mãos e ria alegre, relembrando de como o menino era um bebezinho risonho e gorducho da última vez que ela o viu.
— Eu preparei o seu quarto assim que sua mãe ligou para mim. — Tia Cida explicou. — Talvez não chegue aos pés do seu antigo quarto lá na Capital, mas garanto que separei a melhor vista para você.
— Eu fico imensamente agradecido, Senho- Tia Cida. — se corrigiu e a mulher gorducha manteve aquele sorriso brilhante, que parecia ser comum na Ilha de Tamaris.
— Quantas palavras difíceis. — abriu a porta do primeiro quarto do corredor. — Aqui está.
Augusto entrou e olhou em volta. Era um ambiente simples e parecia se encaixar perfeitamente no local, dando um ar rústico e modesto. As paredes eram brancas e havia uma cama de solteiro perfeitamente arrumada no meio do lugar. Havia ainda uma escrivaninha e pelo que o rapaz percebeu, uma estante que se destacava, como se Tia Cida tivesse a colocado as pressas no quarto. Ele riu levemente, percebendo que talvez sua mãe tivesse avisado a mesma que era um leitor ávido. Tia Cida provavelmente havia arrumado um cantinho para guardar seus livros.
Andou devagar pelo quarto, vasculhando cada centímetro do que seria seu cômodo pessoal por muito tempo. Tia Cida continuou parada na porta, observando o menino que parecia carregar um enorme peso em sua costas. A mulher sabia o que o fez vir para a Ilha e não queria reprimir o menino. Provavelmente, os pais do garoto o esqueceriam ali e Cida não se importava: ela sempre receberia aquela criança de braços abertos, não importa os gostos do mesmo.
— É bonito. — sussurrou. Abriu as cortinas floridas do quarto e olhou para fora, sorrindo de lado ao ver que no horizonte, havia uma praia. — É muito bonito.
— Fico feliz que tenha gostado, querido. — falou a mulher com uma pose satisfeita. — Descanse da viagem e desça daqui a pouco. Hoje eu vou poupá-lo do trabalho, mas prometi aos seus pais que lhe daria uma ocupação.
Augusto assentiu, sem retirar os olhos da janela.
Algo lá fora parecia chamá-lo. Tentou visualizar o que, mas nada parecia diferente. O cheiro salgado do mar chegava até seu rosto e o arrepiava. O rapaz teve uma sensação quanto aquele lugar, como se tivesse achado seu lar. Porém, ele ainda permanecia com sua alma ligada a movimentação da Capital, com carros passando e pessoas andando apressadas sem ao menos olhar umas para as outras.
Entediado, resolveu descer para a pensão. Ajeitou sua roupa e a alinhou, antes de entrar no salão que era enfeitado com diversas mesinhas forradas de panos coloridos e cadeiras ocupadas por pessoas que riam enquanto conversavam sobre seu dia.
Augusto, novamente, se sentiu um tanto deslocado e diferente naquele ambiente. Acostumado com os almoços de negócios dos pais, ele jamais imaginaria que um dia estaria em um ambiente tão simples e, ressaltando, feliz. Ele via os sorrisos nos rostos dos homens, as saias das mulheres girando enquanto cantarolavam e dançavam pelo lugar. Viu crianças correndo pelo salão e sendo repreendidas. E então, entendeu o motivo de seus pais nunca mais terem voltado ali: era brilhante e cheio de vida, algo que jamais teve no frio da Mansão Lima.
Olhando em volta, procurou por Tia Cida, que estava satisfeita em ver sua pensão cheia no horário do almoço. Era um preço simples e nada caro, mas era, certamente, a melhor comida da região. Augusto se aproximou, tímido como sempre, não sabendo como agir. Cida puxou-o para trás do balcão da pensão, lhe dando um tapinha nas costas.
— Que bom que está aqui, menino. — disse ela. — Queria mesmo apresentar você para alguns conhecidos. Joaquim, meu filho! Venha aqui, meu garoto!
Augusto não entendeu de primeira quem era Joaquim, no entanto, suas dúvidas foram respondidas quando um rapaz de sua idade apareceu. Ele era alto, de pele escura feito chocolate. Os olhos castanhos destacavam-se em seu rosto, assim como seu sorriso, que se alargou ao ver o menino da Capital encolhido ao lado de Cida. Augusto achou Joaquim muito bonito (não se via meninos tão exóticos quanto ele na sua antiga casa). Tinha os lábios carnudos e andava de uma maneira relaxada, como se o mundo pertencesse a ele.
— Dona Cida, que bom te ver. — disse o mulato e olhou para Augusto, que se encolheu um pouco mais. — Oi, sou o Joaquim.
— A-Augusto. — gaguejou e estendeu a mão. Joaquim riu um pouco, apertando a mão do rapaz.
O menino da Capital se perguntou se o mulato de olhar travesso havia sentido aquela corrente elétrica que lhe aqueceu todo o corpo.
— Joaquim, eu queria pedir um favor. Augusto é novo aqui na Ilha e seria muito bom ter alguém da idade dele para apresentar a cidade. — disse sem rodeios. Augusto sentiu seu coração acelerar e pedia a Deus que seu rosto não estivesse vermelho. Pelo sorriso de Joaquim, certamente que ele parecia um tomate.
— Claro! Eu posso acompanhar ele sim. — falou. — A Ilha não é muito grande. A gente devemos terminar em um dia.
Augusto, que era um rapaz estudado, logo reparou no jeito que o mulato falava. Sorriu de lado, assentindo. Perguntou-se se Joaquim havia tido algum tipo de educação básica de ponta, no entanto, se lembrou de onde estava. Era um lugarzinho distante de tudo que havia de civilizado (ou o que Augusto achava ser civilizado) e de certo, não haveria mais de uma escola pelas redondezas. Por um momento, sentiu compaixão daquelas pessoas que nasceriam e morreriam ali, sem conhecer a magia da leitura ou do aprendizado.
— Augusto, que tal um almoço? Está tão magrinho. Na Capital não há comida suficiente para todos? — Cida argumentou com as mãos pousadas na cintura e um olhar reprovador. Gesticulou com o corpo em um ato de impaciência, girando seu saião. — Se despeça de Joaquim e venha comer. Ora... parece só ter ossos.
— Uh... adeus. — disse sussurrante, ignorando os resmungos de Tia Cida. Joaquim acenou, se afastando.
— Tchau! Nos vemos amanhã! — e saiu correndo, livre como um passarinho, recebendo olhares de diversão e gritos como "Vá devagar, menino Joaquim!". Augusto não evitou de sorrir e sentir sua mão formigar onde havia cumprimentado o mulato.
─ II ─
A manhã do dia seguinte chegou ensolarada como sempre. Augusto mal havia conseguido dormir, em partes por estranhar a cama nova e pelo silêncio constante do lugar. Era estranho não ter o movimento da cidade grande.
O jovem praticamente pulou de seus lençóis e colchão, preocupado com o que iria usar para o passeio pela Ilha. Optou por uma roupa mais leve, em vista de que, o céu azul do lado de fora insinuava um dia quente demais para paletós e roupas pesadas. Penteou os cabelos e estava prestes a se perfumar, quando parou. Olhou-se no espelho e abaixou o vidrinho, encarando-se: era um idiota. Seus pais tinham razão quando quiseram afastá-lo. Ele se afundou tanto naquilo que ao menos percebia quando começava a ter atrações por outros rapazes. Fechou os olhos, mordendo os lábios e lembrando do sorriso e do jeito descontraído de Joaquim, que apenas com algumas palavras trocadas, o deixou em êxtase.
Augusto se perfumou, mantendo em sua mente que era por higiene e não para impressionar o mulato de lábios cheios. E quem estava pensando nos lábios de Joaquim? Ninguém, claro. Balançou a cabeça e resolveu descer, vendo Tia Cida andando para lá e para cá com cestas de frutas e garrafas de sucos.
— Bom dia, Tia Cida. — cumprimentou e Cida mandou-lhe um beijo no ar, apressada com o café da manhã.
— Bom dia, menino. Coma alguma coisa. Tem broa de milho quentinha saindo do forno daqui a pouco. — e correu para dentro da cozinha da pensão pegar a broa de milho, ele supôs.
Não demorou poucos segundos para um rapaz de pele negra entrar no lugar. Augusto novamente sentiu aquele nervosismo e suas pernas ficaram bambas. Joaquim usava uma roupa um tanto... inapropriada. Pareciam roupas de baixo, mas ao mesmo tempo, não eram. Deveria ser alguma moda do interior, mas o menino da Capital jamais imaginaria que veria uma pessoa tão desnuda na sua frente. Os joelhos estavam a mostra e aquela blusa de pano fino branco era totalmente transparente. Augusto tossiu e teve que se sentar, pois sabia que cairia no chão da pensão em pouco tempo.
— Bom dia. — Joaquim falou e se aproximou. — Que cheiro bom. — disse quando chegou perto do garoto. Augusto se mexeu desconfortável, sentindo uma leve pontada debaixo de seu ventre. — Preparado para nosso passeio?
— N-Não... quero dizer... SIM!
Joaquim o encarou com a sombrancelha arqueada. Augusto se sentiu idiota por ter gritado.
— Perdão, eu não queria gritar. — envergonhado, desviou o olhar e esperou algum tipo de reação irônica, mas o que recebeu foi algo totalmente diferente:
— Tudo bem. Fica assim não. — falou o mulato e deu os ombros. — Aqui a gente nem liga se alguém gritar. Só se for pra pedir socorro, ai sim nós liga. — ele parecia distraído enquanto falava. — Mas o que trouxe você aqui pra Ilha?
Augusto se mexeu desconfortável em seu lugar e fitou o rosto do rapaz que o encarava curioso. Não queria que Joaquim descobrisse sobre sua atração por garotos. Era algo que ele queria apagar para conseguir voltar para sua casa, mesmo que fosse impossível. Coçou a nuca e riu sem graça. O mulato se afastaria se soubesse a verdade? Ou se arriscaria a ter sua companhia? Augusto não queria ir embora de outra cidade (esse era um dos seus medos) e, com certeza, achou Joaquim muito interessante para perder uma possível amizade.
— Algo injusto e talvez muito... errôneo. — admitiu e viu Joaquim juntar as sombrancelhas em um sinal claro de confusão. Augusto riu levemente daquela feição. — O que foi?
— Por Oxalá, que quer dizer essa palavra, "errôneo"? — perguntou.
— Significa: "algo errado". — explicou e a luz do conhecimento se refletiu no rosto do mulato, que disse um "ahhh..." e assentiu.
— Você fala engraçado. — comentou sem pensar. — Mas em, Augusto. Já tomou café? A gente vai ter um caminho grande pra frente.
— Você quis dizer: "um caminho longo pela frente"? — falou o mais baixo e Joaquim pegou uma maçã da cesta de frutas e sorriu malandro:
— 'Ora... você tem essa mania de falar bonito? Precisa falar assim por aqui não. — mordeu a fruta e pegou outra, jogando para o rapaz, que a pegou no ar. — Anda, come. Dona Cida não vai ligar e a gente pode pegar fruta do pé mais tarde.
Augusto olhou a fruta com atenção. Viu Joaquim mastigando sua maçã e sorriu para forma como parecia hiperativo e animado com a ideia de passar o dia inteiro com ele.
Mordeu a maçã e sorriu satisfeito ao constatar que estava doce. Se levantou e tentou não corar com o olhar de Joaquim para si, que parecia estudá-lo minuosamente. Por fim, o mulato não disse nada e pegou uma ameixa da cesta, vendo Cida gritar da cozinha que estava vendo o espertinho roubando a comida dela.
— Estou em fase de crescimento, Dona Cida! — Joaquim gritou devolta e olhou para Augusto. — Vamos, antes que a Dona queira me bater com uma colher de pau.
Ele riu e tratou de seguir o mulato para fora da pensão.
─ III ─
O dia estava ensolarado como Augusto pensou que ficaria. Ele caminhava entre a pontinha da calçada, tentando se equilibrar. Ao seu lado, Joaquim andava com o caroço da ameixa na boca, rindo toda vez que o menino da Capital tropeçava. O mulato estaria mentindo se disesse que não estava curioso com a vinda daquele rapaz para a Ilha: era raro ver pessoas como ele chegando por ali. Em pouco tempo, Joaquim sabia que Augusto era um jovem bem de vida e muito inteligente. Coisa que o mulato de longe era. A única coisa que ele poderia oferecer era um passeio pelo lugar onde nasceu e, mesmo assim, sentia-se inseguro de que Augusto soubesse mais do que ele sobre a cidade.
— E ali é a prefeitura. — explicou e o menor deslumbrou uma construção pequena perto de uma pracinha modesta da cidade. — E aqui é a Praça de Nossa Senhora. — continuou.
— É uma cidade tão pequena e aconchegante. — Augusto admitiu e Joaquim sorriu orgulhoso.
— A Ilha de Tamaris está aqui para receber todo mundo, não importa quem ou o que. — falou.
Augusto pareceu pensar: a Ilha de Tamaris receberia pessoas como ele? Juntou as mãos na frente do corpo e suspirou, olhando para os lados e vendo Joaquim escalando uma árvore na praça. O mais baixo franziu a testa e resolveu se aproximar. Nem mesmo havia notado o mulato se afastar.
— Pega, Auggie! — falou e Augusto tomou uma chuva de goiabas na cabeça antes que pudesse raciocinar o apelido que Joaquim dissera. O mulato riu com gosto. — Tem a mão furada, menino da Capital?
— Eu não pude me preparar! — protestou e pegou as frutas do chão, contando quatro delas. Joaquim desceu da árvore com facilidade e pegou as frutas, fazendo Augusto se afastar um pouco envergonhado com o toque das mãos fortes e galejadas em cima de si. — Para onde vamos agora?
— Vou te levar para Praia da Mãe D'água. — explicou. — Ai a gente lava as frutas e come.
— Certo. — a entonação na voz de Augusto saiu mais animada do que ele queria. Admitia que estava curioso com a praia; nunca havia ido em nenhuma durante toda sua vida.
A caminhada foi curta e logo que Augusto sentiu a areia em seus dedos, abriu o sorriso mais brilhante que Joaquim já havia visto. O barulho das ondas o deixavam alegre; a areia, que fazia cócegas em seus pés, estava quente e aconchegante. Joaquim se afastou, procurando algum lugar para lavar as frutas e deixando Augusto captar a informação de que estava em um local daqueles pela primeira vez.
— Auggie! — chamou o menino, que o olhou rapidamente. Joaquim estava sentado em uma varanda, num tipo de casa de madeira e tinha as goiabas em seu colo, além de uma pequena faca. O menor se aproximou, correndo pela areia como uma criança. — Parece que nunca viu uma praia.
— Pois eu nunca vi, na realidade. Não pessoalmente. — admitiu e pegou metade da goiaba que Joaquim lhe oferecia. — Deve ser bom poder vir aqui todos os dias.
— Você pode vir aqui todos os dias também. — disse de boca cheia. Augusto riu feliz, pela primeira vez se esquecendo dos motivos que o trouxeram a Ilha. — Mas onde você viu a praia?
— Nos livros. Nas palavras. Na imaginação. — falou olhando para o horizonte. O Sol estava alto no céu e a maré baixinha. — Mas admito que é muito melhor ver pessoalmente.
— Você saber ler e escrever? — o mulato perguntou interessado. Augusto balançou a cabeça afirmativamente. — Deve ser... bom.
— Se quiser eu te ensino. — ofereceu.
Joaquim fitou Augusto como se quisesse descobrir uma mentira ou brincadeira de mau gosto. Abriu um sorriso enorme quando viu que o garoto de cabelos negros falava sério. Não conseguiu dizer nada; sempre quis aprender a ler e a escrever, mas nunca teve dinheiro para pagar a escola local. No fim, sempre olhava as páginas dos livros na biblioteca da cidade e se frustava, pois não entendia nada.
Se levantou e sem avisar, retirou a blusa. Augusto engasgou com a goiaba, mas se recompôs a tempo de ver o novo amigo olhá-lo com um convite brilhando no olhar.
— Quer entrar no mar? — a pergunta foi descontraída, mas Auggie negou. — Não sabe nadar?
— Eu nunca nadei. — admitiu com certo temor. — E se eu me afogar?
— Podemos resolver isso outro dia então. — disse Joaquim com um sorriso brincando em seu rosto. Se virou, correndo em direção ao mar e deixando que Augusto o observasse.
Ele tinha as costas largas e quando mergulhou feito um peixe na água salgada, o seu observador teve a impressão de que Joaquim era o próprio mar: livre e incerto. Ao longe, Augusto viu o mesmo acenar para ele, feliz por estar ensopado. Riu quando uma onda o pegou em cheio, derrubando-o. Joaquim se misturou na água e Augusto sentiu novamente aquela sensação calorosa em seu peito. Como era possível, em apenas algumas horas, aquele menino da pele negra e dos cabelos cacheados o conquistar daquela forma? Ah, se os seus pais soubessem... sorriu, lembrando que sua vinda era para fazê-lo esquecer sobre seus gostos e não apurá-los. Contudo, Joaquim apareceu para balançar ainda mais a alma do pobre rapaz.
Assim como o mar, o mulato havia o conquistado. Augusto sabia o quão incivil era aquele sentimento que brotava em seu interior, todavia, como cortar aquilo pela raiz? Como fingir que, assim que seus olhos entraram em contato com aquele homem, Augusto se sentiu quente e confuso? Mordeu a fruta que estava em sua mão, rindo ainda mais quando Joaquim tentou fazer algum tipo de salto que deu muito errado.
Oh, ele estava em apuros...
─ IV ─
Quatro semanas se passaram e logo, Augusto estava acostumado com o dia-a-dia na Ilha. Tia Cida o dera dever de contar o dinheiro da pensão e de arrumar as mesas após as refeições. De longe era o trabalho mais pesado dali, mas Augusto sentia que Cida não queria pressioná-lo. Naquelas quatro semanas, ao menos recebeu uma ligação ou correspondência de seus pais, o que deixava-o para baixo. Cida reclamava de vê-lo choramingar pelos cantos com saudade de casa, portanto, para animá-lo, Joaquim aparecia todos os dias na pensão e o arrastava para a praia, com a desculpa de que iria ensiná-lo a nadar.
E claro, naquelas quatro semanas, Augusto se tornou o melhor amigo de Joaquim, afundando o sentimento que apenas se intensificava a cada dia. Eles pareciam se conhecer a anos e, depois de algum tempo, os moradores se acostumaram a ver os dois correndo pelas ruas e rindo de piadas internas que só eles entenderiam. Augusto havia começado as lições com Joaquim, que estava aprendendo rápido. Em alguns dias, ele já podia escrever seu nome e o nome dele sem problemas. Aquilo o deixava orgulhoso.
— A, B, C, D, F... — Joaquim recitava o alfabeto pela décima vez naquele dia. Augusto, pacientemente, o cortou.
— Esqueceu da letra E. — o corrigiu e Joaquim suspirou, recomeçando sua lição. Os dois estavam sentados na mesma casa de madeira de frente a praia, que Augusto descobriu pertencer ao mulato.
— ...R, S, T, U, V, X, Z. — completou e Augusto sorriu, assentindo. — Eu acertei?! ISSO!
A comemoração foi contagiante. Joaquim colocou os livros de lado e abraçou Augusto totalmente emocionado. O mais baixo sentiu seu coração perder um compasso e seu corpo ficar quente. Joaquim se afastou, um tanto sem graça e sorrindo de lado.
— Perdão. — disse e Augusto apenas riu de leve, negando com a cabeça de modo despreocupado, enquanto se concentrava em empilhar os livros na sua frente. — Auggie...
Sorriu por debaixo dos cabelos negros. Ele gostava daquele apelido. Ergueu os olhos, enxergando Joaquim que o encarava com aquele sorriso malandro. Certamente que não viria coisa boa.
— Joaquim... o que se passa nessa sua mente? — perguntou o garoto e não teve tempo de reagir, já que o amigo foi mais rápido.
Augusto gritou quando foi pego no colo. O mulato correu em direção ao mar. O menor se debatia, mas Joaquim era mais forte. Quando menos esperava, foi jogado na água salgada. Procurou por oxigênio, para ver o mulato rindo de dar gosto da feição irritada do amigo. Augusto estava pronto para retrucar e dizer pouca e boas, quando uma onda atacou suas costas, jogando-o para frente. Joaquim pegou-o a tempo de ser puxado devolta e os dois agora estavam ensopados, grudados um no outro e tossindo água.
— Tudo bem? — a voz preocupada de Joaquim invadiu os ouvidos do menino da Capital como sinos. Augusto abriu os olhos e um misto de emoções o invadiram. As mãos de Joaquim estavam em sua cintura, os dois estavam próximos e como um passe de mágica (ou de Iemanjá), o mar se tornou sereno.
Augusto não pôde deixar de encarar os lábios cheios e carnudos do mulato. Seus rostos se aproximaram lentamente. Ambos fecharam os olhos e Joaquim apertou ainda mais a cintura do rapaz debaixo d'água. Os lábios roçaram uns nos outros e Augusto se esticou mais um pouco, selando o beijo completamente.
Havia gosto de mar e era quente, como o Sol. As mãos frias de Augusto se posicionaram na nuca de Joaquim, que entreabriu os lábios. Os dois pareceram encontrar seu encaixe, pois logo suas línguas valsavam em prol daquela sensação que explodia em seus peitos. Demoraram alguns segundos para recobrar a consciência. Se afastaram com um fio de saliva. Respiraram fundo, com as testas encostadas e, para a total surpresa de Augusto, Joaquim falou primeiro:
— Por isso você veio pra cá? — as palavras sussurradas fizeram o menor tremer nos braços do mais alto. — Você gosta de garotos?
— Você também gosta. — disse sem pensar. Sua mente raciocinou que, se Joaquim o beijara devolta, ele era igual.
— Não. — respondeu e se adiantou. — Acho que gosto só de você.
E voltou a beijá-lo, fazendo aquele sentimento brotar em seus corações.
─ V ─
Augusto abriu a janela do seu quarto após ouvir barulhos de pedras batendo ali. Olhou para baixo, enxergando Joaquim naquele breu das onze da noite. O mulato olhou sugestivo para o menino da Capital, que riu divertido, fechando a janela e correndo pelo quarto a procura de uma blusa apropriada.
Faria cerca de um ano que Augusto estava na Ilha de Tamaris. E onze meses que ele e Joaquim namoravam sem ninguém saber. Os dois descobriram que os moradores da cidade, com exceção de Dona Cida e talvez de Seu Zé, o dono da padaria, não gostavam de gente como eles. Portanto, o relacionamento dos dois era secreto.
Augusto saiu quieto da pensão e sentiu Joaquim abraçá-lo por trás. Sorriu ainda mais quando notou ele erguendo um livro: Hamlet. Por Deus, como ele amava aquele homem.
— Eu li inteiro. Estou ficando bom nisso. — Joaquim admitiu e Augusto se virou para ele, segurando suas mãos. — Olá.
— Olá. — murmurou e olhou para os lados, verificando que ninguém os observava. Se esticou e beijou Joaquim, que enlaçou a cintura do namorado e gemeu gostosamente com a sensação de ter os lábios dele nos seus.
— Isso fica melhor a cada dia. — murmurou e ouviu Augusto rir envergonhado. — Eu tenho uma surpresa.
— Surpresa? — perguntou curioso. Joaquim assentiu e puxou Augusto consigo. Os dois fizeram o caminho comum para a praia.
A casa de madeira de Joaquim estava lá, mas agora parecia iluminada. Augusto encarou aquilo com certa adoração, olhando para Joaquim que sinalizou para ele entrar.
Já havia estado ali antes, mas dessa vez, na mesa de madeira havia um pequeno banquete a luz de velas. Sorriu de lado com aquilo e sentiu os braços fortes do mulato rodearem sua cintura.
— Feliz onze meses de namoro. — disse e Augusto riu. — E obrigado por ter entrado na minha vida, meu Sol.
Aquele era outro apelido que Joaquim havia posto em Augusto. O mulato dizia que o parceiro parecia o próprio Sol quando sorria. Era lindo vê-lo rindo gostosamente com um livro ou com algo que acontecia ao seu redor.
— Você cozinhou?
— Tive ajuda da Dona Cida. — murmurou e Augusto negou com a cabeça.
— Sabia que minha Tia estava por trás disso tudo. — disse e se adiantou, pegando um morango que havia na cesta.
Os dois comeram e riram durante boa parte da noite. Após o jantar, acabaram na cama de Joaquim. Amaram-se como forma de estreitar ainda mais aquela relação. As palavras de afeto eram comuns entre eles e os corações acelerados ainda estavam ali, além das borboletas no estômago. Augusto adormeceu ao lado de Joaquim, que se manteve acordado com um rosto entristecido.
Dona Cida havia avisado para o mulato que os pais de Augusto iriam chegar na próxima semana. O objetivo era levá-lo devolta, já que toda a tempestade de um ano atrás havia se dissipado. Joaquim apertou Auggie mais forte contra si, fazendo-o resmungar em seu sono, se aconchegando em seu peito desnudo.
Ele não sabia se estava pronto para dizer adeus.
─ VI ─
Os olhos de Augusto marejaram quando ele viu o carro conhecido parado de frente a pensão. Encarou Tia Cida, que estreitou os lábios em uma feição entristecida. O menino negou com a cabeça, murmurando "não" diversas vezes.
Seus pais saíram do automóvel com suas típicas roupas caras e olhares superiores. Augusto abriu a portinha do balcão e correu para o lado de Cida, que o colocou protetoramente atrás dela.
— Augusto. — a voz de sua mãe ecoou no salão da pensão. Augusto sentiu vontade de chorar, mas não por saudade e sim por desespero. — Meu filho, olhe como cresceu em apenas um ano.
— O que fazem aqui? — perguntou ríspido. Sua mãe se afastou um pouco, assustada com aquela reação.
— Viemos levá-lo para casa. — seu pai disse e Augusto negou.
— Estou em casa. Aquele lugar nunca foi meu lar. Era frio, triste e cruel. — disse sem pestanejar. Uma coisa que Joaquim lhe ensinou era a nunca sentir medo. — Aqui é alegre, quente e ensolarado. Eu gosto daqui. Gosto da praia. Gosto de Tia Cida.
— Augusto, creio que precise pensar. — seu pai falou e o menino negou.
— Eu já pensei. Por um ano inteiro. Eu gosto daqui. Eu quero ficar. — insistiu e viu sua mãe abraçar o marido e chorar copiosamente. Doía ver ela daquela forma, mas ele queria permanecer no que havia se tornado seu lar.
Ele queria permanecer ao lado de Joaquim.
— Cida, nossos quartos estão prontos? — a mulher gorducha assentiu e seu pai fez um rosto desgostoso. — Pois cancele. Iremos embora imediatamente.
— Mário! — a esposa falou em total desespero. Seu pai se afastou dela, ignorando suas lágrimas e se aproximando do filho.
— Você jamais foi meu filho. É um erro cruel que o destino me proporcionou. — falou de modo maldoso. Augusto sentiu as lágrimas descerem de seus olhos, sem saber o que dizer. — Esqueça sua herança ou seu sobrenome. Fique nesse lugarzinho nojento e morra sozinho.
Cida o abraçou protetoramente, deixando que o menino chorasse em seu ombro. O homem puxou a esposa para fora dali, que ao menos fez contato visual com o filho. O barulho do carro veio segundos depois e em seguida, Joaquim entrou na pensão e correu na direção de Augusto, que se agarrou a ele de maneira frágil.
— Tudo bem. Você foi forte. Vai ficar tudo bem. — Joaquim murmurava por cima dos soluços de Augusto. — Você tem uma família. Tem a mim e a Dona Cida. E toda a Ilha de Tamaris.
O menino soluçou mais uma vez. O preço da liberdade doía-lhe a alma.
─ VII ─
Augusto riu com certo gosto do mulato travesso que agora tinha um uniforme do quartel no corpo e fazia poses para o namorado. Joaquim havia aprendido a ler e a escrever, logo se enfiando no exército da cidade e conseguindo um emprego digno. Augusto, por outro lado, após passar pela situação desastrosa com seus pais, resolveu seguir o ramo da educação. Rapidamente, conseguiu um emprego na escola local e vivia cercado de crianças que o adoravam. Não era o futuro glorioso que planejava a alguns anos atrás mas a felicidade que lhe trouxe era algo insubstituível.
Ninguém imaginava sobre a existência do relacionamento de Joaquim e Augusto. Para todos, eles eram bons amigos, apesar dos boatos que eram desmentidos por Cida. Apesar de só poderem se beijar de janelas fechadas, a alegria permanecia entre as quatro paredes no fim do dia. Augusto aprendeu que não havia nada de errado com ele. Que não havia nada de errado com o amor. Joaquim, por sua vez, amava incondicionalmente aquele "menino da Capital" que adorava falar bonito. De certo, eles eram um casal muito diferente do tradicional da época, contudo, havia tanta paixão que isso não os diferenciava de ninguém.
— O que achou? — Joaquim rodopiou no quarto com seu uniforme. Augusto tirou os olhos das provas de suas crianças e sorriu discretamente. — Está olhando para o Capitão da Ilha de Tamaris.
— Oh, que status belíssimo. Combina perfeitamente com você, meu amor. — falou e Joaquim sorriu orgulhoso de si mesmo. — Então, Senhor Capitão... o que me diz de uma pequena comemoração a dois?
— Acho perfeitamente aceitável. — falou e Augusto o encarou com a sombrancelha arqueada.
— Quantas palavras bonitas.
— Posso sussurrá-las em seu ouvido, meu querido Professor. — sugeriu. Augusto deixou as provas de lado, tremendo levemente com a proposta.
— Uh... bem, eu adoraria isso.
Joaquim enlaçou a cintura de Augusto com as mãos e beijou-lhe o pescoço. O uniforme do quartel rapidamente foi ao chão, assim como as roupas do Professor. Como se fosse a primeira vez que faziam isso, amaram-se intensamente. Eram como o Sol e o Mar, que não conseguiam ver pois as cortinas tampavam a visão, porém, que assim como o casal, também beijavam-se, formando o alaranjado pôr-do-Sol na praia onde tudo havia começado.
Os sorrisos brotaram em seus rostos. Fosse um momento belo, que marcaria uma vida. A tempestade em suas almas se dissipava, convidando-os a continuarem sua jornada de amor. Eles ficaram em seu esconderijo e amaram-se mais um pouco, para logo esperarem pela alvorada, onde enfrentariam a realidade do mundo. No entanto, ambos se sentiam livres para continuar.
Talvez aquela relação não fosse perfeita a olhos distintos, mas ali, enrolados nos lençóis, eram apenas eles e seus sentimentos entrelaçados com suas respirações.
Os sussurros dos amantes viajaram pela brisa suave e fresca da Ilha de Tamaris, o lugar que recebia todos aqueles necessitados de um lar.
☪ ─ Notas da Autora: Espero que tenham gostado da trajetória de Augusto e Joaquim. Tive que encurtar muita coisa pois o máximo era de 6000 palavras, mas caso em um futuro próximo queiram uma long da história dos dois, é só pedir.
Obrigada por ler e até uma próxima vez! <3
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