Prólogo


*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, ASSÉDIO MORAL, BRUTALIDADE, DISCURSO DE ÓDIO E CONTRA MINORIAS, MORTE, RACISMO, SANGUE E VIOLÊNCIA VERBAL.

13 de Março de 2019: Um dia antes da Lua Crescente

Somente restaram saudades.

O sino da igreja tocou de modo ininterrupto, capaz de ensurdecer qualquer pessoa curiosa e disposta a se aproximar para testemunhar. Os olhos atentos e apavorados do público ao observar aquela cena, como uma multidão ofegante e desesperada pelo sossego que com tardança regressaria, o frio e pavor na espinha similar ao doloroso arrepio de uma corrente elétrica, o estômago embrulhado por aquele momento desagradável, o suor escorrendo pelas testas em puro nervosismo, provocaram sentimentos angustiantes.

A maioria se manifestou estarrecida, ocultando as bocas com as mãos, surpresos pela tamanha coragem.

Semelhante a uma tragédia teatral aos olhos dos que de certa forma foram culpados pela imediata decisão.

O ar frio e sombrio emanou por toda a cidade, deixando a maioria da população apática e sem energia. Poucos bradaram na direção da figura principal e imploraram por calma ao tentar evitar que lágrimas rolassem.

O olhar daquele rapaz se manteve em emergência, porém nunca conseguiriam ver de aspecto nítido. Jamais poderiam permitir fluir em suas peles o medo de quem sustentou tamanha vulnerabilidade.

Tendo em mente, obras de fantasia que fizeram parte de sua infância, as músicas apreciadas pelas amáveis vozes femininas cantadas na frente da lareira, o perfume das colecionáveis folhas secas — belas flores no cativante jardim —, a pele reluzente da amada moça e o paladar aguçado pelo doce Gelatto¹ de chocolate com raspas de amendoim feito pelas marcantes mãos de seu saudoso pai, passaram naquela cabeça confusa prestes a tomar uma destemida e arriscada escolha.

Embora considerassem a atitude de forma covarde, não foi nada menos que um destemor movido pelo excesso de emoções.

Então ela surgiu, bem antes que pudesse se despedir, mas despontou em raios entre todos, disparada para inquietar ainda mais a alma perturbada na torre, tornando um infortúnio. Logo após todo o caos experienciado entre os falsos homens de Deus e as temerosas revelações na casa onde habita o Pai.

Mesmo que jamais fosse o objetivo, Gaya implorou à distância desejando criar asas e voar em direção à Franco, porém não teve a mesma permissão anterior.

Era tudo desigual, o céu não estava grato com os presentes, o sol se recolheu em desafio e as nuvens uniram-se em misericórdia ao lamentar pelos dois apaixonados importunados pela aflição.

Europa (Pendle - Lancashire, Inglaterra): 1347 à 1612

Mal sabiam que tudo aquilo fazia parte de uma duradoura maldição. Tão distante quanto a chegada do triunfo final.

Os últimos suspiros, os olhares assombrados e bocas entreabertas dos cidadãos apavorados, desejando arderem no lugar das antigas inocentes, tiveram uma parcela de responsabilidade sobre o que chegaria no futuro a se tornar o grande ápice dramático.

Como tempos anteriores, o momento transmitiu a mesma atmosfera artística de Giovanni Canavesio, talvez um desastre digno de ser reproduzido através da melancolia de Michelangelo ou a essência de William Bouguereau.

E naquela ocasião, na visão de todos os julgadores, ele era a própria representação de Judas Iscariotes ao sofrerem influências do além e do sagrado. Mas bem antes disso, do que se aguardava, as responsáveis pelo destino do intitulado "Judas" pelos seus irmãos em Cristo, eram somente mulheres.

Talvez um tremendo engano.

Desse modo, com o surgimento da grande peste na Europa no período da Baixa Idade Média, dentre os demais nobres que desfrutavam das melhores regalias, a minoria da população da época escapou com vida da enfermidade.

Mesmo com a visita dos emblemáticos médicos da calamidade — trajados em capas escuras e máscaras em formato de bicos curvilíneos de pássaro — não obtiveram sucesso no tratamento, pois cada paciente levava poucos dias até perecer.

Devido à aflição dos nobres e o clero em decorrência dos alarmantes números de finados — em maioria pobres serviçais sacrificados para os servir —, surgiram frequentes rumores em vilas próximas a Pendle, uma das únicas localidades em domínio da clerezia, na qual um grupo de mulheres católicas da mesma família curaram mais de cinquenta vítimas da peste com o auxílio da "magia".

Conforme a pressão da igreja, em peso, pertencentes à linhagem Gregori, que a posteriori ocuparam a determinada terra britânica, Roger Nowell, o temível juíz da paz² no período, em imediata autorização mediante um extenso pergaminho escrito em tinta bordô e o selo do brasão do magistrado marcado na escritura, determinou a investigação e caçada instantânea em oposição às denominadas 'bruxas'.

Sem triunfo, de início as tais curandeiras escapuliram entre os dedos do clero. Entre os pensamentos dos perseguidores, de alguma forma elas se ocultavam de modo sobrenatural ou eram muito mais inteligentes ao se disfarçarem entre eles.

Não envolvia magia, se tornavam invisíveis ou algo semelhante.

As bruxas de Pendle, mulheres negras retintas, marginalizadas pelos fanáticos católicos, apenas demonstravam experiência quando se referiam ao tratamento de doenças com o auxílio da natureza e manipulação de ervas medicinais.

Diferente da igreja que patenteou sua fé e cura no Deus temível, cristão e oscilante, as bruxas de Pendle entregavam-se ao universo e dele consumiam total conhecimento transmitido pela Mãe Terra, em prol da saúde de sua comunidade e oprimidos.

No entanto, a omissão não duraria por muito tempo.

***

Em 1612, o princípio do caos e tempos infernais, iniciaram a perseguição repressiva a favor da captura das Demdike, com destino ao princípio do julgamento das curandeiras acusadas de maneira injusta pela suposta morte de dez habitantes em Pendle pelo condenado uso de "bruxaria", quando na realidade, as vítimas faleceram em decorrência das enfermidades.

A maioria delas foram curadas durante o período da peste bubônica, ainda pondo em risco a integridade e vida das bruxas.

Auxiliar mortais carregaria um preço.

No futuro, em praça pública da cidade moldada em balbúrdia, elas foram expostas severamente amarradas por cordas enroladas com brutalidade em seus pulsos e que evitariam a fuga, exceto uma delas: Jennet Demdike.

A última da árvore genealógica Demdike, crendo bondade do clero, posterior ao fatídico dia, entregou um depoimento crucial que custou a vida de toda a sua família.

***

Durante uma calorosa reunião da cúpula católica de Lancashire, antes do fatídico julgamento, os sacerdotes superiores discutiram sobre o próximo plano da caçada contra as bruxas.

Entre xingamentos, um completo escarcéu, um conjunto de homens idosos bradavam até analisarem a possibilidade de guiarem-nas entre o fogo e a forca. Era estarrecedor escutar os servos de Deus planejando apagar um dos mandamentos mais fundamentais para o cristianismo.

De maneira repentina, entre a gritaria e salivas imundas que saltaram entre os dentes apodrecidos, foram surpreendidos por uma inocente garota de nove anos em vestes humildes e cabelos crespos amarrados em tranças, invadindo o grande salão na presença de sentinelas, alegando ter provas que as mulheres perseguidas eram de fato bruxas.

Ao carregar consigo um robusto livro intitulado como "Guia do Poder Natural", acanhada, Jennet entregou oscilante as escrituras para o bispo Caraveckio da família Gregori, que se animou com a 'prova dos crimes', além de indicá-lo ao local do esconderijo.

O maquiavélico superior, possesso por um imensurável sentimento de soberba, confiou ser a fiel representação de Deus na terra.

Considerou poupar a vida da ínfera³ garota que se voluntariou em troca de se manter viva, ao se opor contra a própria família.

Sempre sórdido como em toda a sua existência, vangloriou-se sobre a subjugada menina e exaltou seu olhar astuto além de intimidador ao experimentar o bizarro poder de dominação por cima das vítimas. Em consequência, a ingênua e lastimável criança tornou-se uma traidora.

No fundo, Jennet acreditava estar socorrendo-as de alguma maneira. E assim, após presenciar a captura de suas parentes, obteve a triste chance de testemunhá-las morrendo enforcadas como evidência de sua deslealdade.

O julgamento se tornou um entretenimento aos residentes de Pendle.

Os pais levaram as crianças para presenciarem a partida das bruxas como uma forma de divertimento com o sofrimento das pobres mulheres.

Era tudo mórbido conforme um enterro, mas o público se agradou em ver cada uma das curandeiras subir no patíbulo⁴ junto aos seus pés e unhas sujas de areia escura, até se atentarem ao estalar da madeira com o peso de todas num mesmo espaço, posicionadas de costas e direcionadas à forca.

As bruxas observaram os respectivos olhares sádicos e empolgados com o destino na qual seguiriam.

Aceitaram o indevido fim.

Percebendo que cada uma delas fixou um olhar temeroso em todas as direções, todos se mantiveram em silêncio e o único barulho destoante na grande praça pública passou a ser um insistente pigarro de um enorme homem amedrontador que caminhou entre eles até o púlpito.

Com toda a população ansiosa diante ao patíbulo de madeira colocado abaixo dos pés das Demdike, como doentes para avistá-las se debater suspensas pela corda, alguns lançaram contundentes pedras na direção das desprotegidas mulheres e demais objetos que as pudesse ferir para se principiar o julgamento.

O homem descomunal era um carrasco.

Imóvel e encapuzado por um couro desgastado, o algoz portava um grande machado lapidado em ferro e o sustentava nas desmedidas mãos envoltas por correntes oxidadas como indicativo de ameaça. Fedia a suor, esterco e encontrava-se coberto por sujeira.

Quando observou o céu com desconfiança, previu uma coletânea de nuvens se aproximar e transitou pela sua cabeça que Deus as castigaram.

Idêntico a um orgulhoso assassino, suas pesadas e encardidas mãos coçaram a cada segundo em que as guiava entre gritos e empurrões para o mais próximo da forca, fazendo algumas tropeçarem e cortarem os dedos.

Enrolou as cordas imundas nos pescoços das mulheres, pressionou as duas palmas e seus dedos para puxar cada uma delas, e amarrou em uma firme superfície, alimentando o desejo de vê-las sufocar.

Tão sádico, como uma repulsiva besta apreciando a tortura, seu olhar opaco e execrável avermelhou-se estimulado, seu sangue ferveu, além de sua ilusória paciência, quando o único objetivo daquele menosprezável homem consistia em apagar o último e comovente brilho clemente dos olhos de cada uma daquelas inofensivas mulheres.

Confiava em satisfazer sua ânsia ao trucidar as amáveis e proclamadas filhas da natureza.

***

Os representantes da família Gregori, Nowell e Chattox, juízes, membros do clero e figuras superiores orgulhosos em cultuar a morte das bruxas de Pendle, ouviram aterrorizados uma estrondosa voz arranhada e pressionada pela corda que estrangulava a garganta da sábia Elizabeth Demdike.

Abruptamente despencou do céu um enorme raio cortando o chão conduzido por um tremor, anunciando um presságio. Enquanto gotas gélidas de chuva começaram a cair em seus olhos escuros, encharcaram e limparam suas vestes sórdidas, além dos cabelos platinados, os responsáveis pelo perecimento das curandeiras carregariam por todos os seguintes séculos a impetuosa maldição que se eternizaria em Pendle, a despedida das Demdike:

— Vislumbrem, seus hipócritas! Estão presenciando? O céu clama por justiça! — esforçou-se para aclamar as nuvens cinzentas que anunciavam a hora de partir, enquanto as demais bruxas gargalhavam orgulhosas.

Suas palavras soaram como resistência, rompendo o fio entre a vida e a morte.

Bruxas! Bruxas! — o povo ecoou.

Matem as bruxas! — homens cuspiram o desejo.

Não se podia avistar a presença dos pássaros e nem das plantas. Todos se encontravam cercados por grandes muralhas de tijolos, equivalente à Muralha Aureliana de Roma, além das bandeiras erguidas com os brasões correspondentes a cada família nobre na igreja.

Esses mesmos aristocratas assistiam o julgamento de camarote, degustando vinhos ardentes, se alimentando com frutas frescas, carnes de cordeiro e porco, uma mistura do sabor com o fedor nauseante do esgoto ao ar livre, visto que toda a magia do período medieval se perdia com a miséria crua e a podridão exposta, semelhante a um completo e desastroso espetáculo teatral.

À medida que se desencadeou as primeiras palavras do bispo, Jennet tremeu apavorada, se arrependendo em silêncio pelo o que fizera outrora.

As mulheres martirizadas mantiveram os olhares exaustos e opacos para a criança, correspondente a um indício de misericórdia, a favor de seu ato inocente e impensável.

E com essa atitude, a menina se ressentiu até não suportar mais.

Enquanto Caraveckio apanhava e segurava um extenso pergaminho com as duas mãos, ecoando todas as acusações listadas que determinava a sentença das Demdike, a garota se desmoronou ajoelhada sobre a lama, esmurrou o solo úmido querendo perfurá-lo por arrependimento, respingou a terra em seu rosto conforme vociferava e clamou por perdão em responsabilidade pelo finamento da família.

Era apenas uma criança perdida em suas decisões e devido a isso, encaminhou a sua parentela inteira destinada aos braços da morte.

— Embora nos joguem em covas ou nos queimem após o último suspiro, seremos sementes e brotaremos como raízes firmes pela nossa Mãe Terra! Comemorem enquanto há tempo, família Gregori! Nem o seu Deus será capaz de salvar — pálido, similar a um cadáver, o bispo entortou os lábios em fel⁵, ciente que as seguintes palavras viriam análogas a uma adaga.

Caraveckio chacoalhou o pergaminho com a mão, demonstrando fúria e medo.

Sem dúvidas considerava que algo estranho viria em sequência das incriminações listadas por ele e os demais membros da cúpula católica de Lancashire.

— Cale-se, bruxa imunda! Não ouse afrontar os discípulos do Pai! — interrompeu-na aos gritos roucos, chocando o povo atento. — Queimem no mais profundo inferno! Enforquem as malditas servas do Diabo, agora!

SALVE O BISPO! SALVE O SENHOR DEUS E JESUS CRISTO! — a população vibrou em conjunto.

O bispo, degradado a um dos dedos tortos e necrosados em decorrência de uma bactéria, apontou para a corda da matriarca e determinou ao carrasco que aguardava ansioso para sujar as mãos com as vidas a serem ceifadas.

Porém, a tragédia em família fora marcada por algo apavorante e dito pela grande e poderosa anciã.

Enquanto a idosa ditava as últimas palavras, em coro, as demais bruxas de Pendle entoaram uma bela canção:

Caso o céu tornar-se escuro,

Saberão que sobreveio a hora da minha partida,

E assim, renascerei em ares.

Arrebatada até os confins do mundo (...)

Ao puxarem a precedente corda de uma das bruxas, o canto perdeu sua primeira voz, prosseguindo das demais que partiam sufocadas, distantes do chão.

Silenciando em sequência cada uma que harmonizou o belo cântico, por fim, chegou em Elizabeth, na qual findou o vazio:

— Em nome da imponente Madre Mortem, aqui presente e coberta em pérolas de lágrimas oriundas do altar anil, eu, Elizabeth Southerns Demdike, amaldiçoo todos os filhos homens sanguíneos da linhagem Nowell, Chattox e Gregori.

Todos os homens presentes e responsáveis pela decisão no assassinato das curandeiras, esbravejaram e ergueram-se dos imponentes tronos de prata perante fúria para que cessassem as palavras da anciã, antes de concluir a condenação dos tempos.

— Até o último descendente masculino que ousar desencontrar a paz. Assim seja, Madre Mortem — selou a emissão.

Os homens da cúpula de Lancashire falharam por não impedirem a maldição emitida. Superior à sentença sobre as bruxas, declarando o poder das mulheres proclamadas pelo universo.

Não era o fim das Demdike e nem das demais linhagens amaldiçoadas. A igreja igualmente choraria sangue como castigo.

Conforme Elizabeth assegurou: "seremos sementes e brotaremos como raízes firmes pela nossa Mãe Terra".

Ao ultrapassar séculos, lá encontravam-se eles, pondo um término em todo o rancor, convertendo cinzas em pétalas.

Talvez, a condenação pudesse ser rompida em um futuro ato de aliança entre rivais, um sentimento mais profundo que o ódio na qual motivou a desgraça. Uma provável reparação.

E assim, o cálice seria derramado, os vitrais iluminariam corpos de dois amantes que um dia decidiram pôr um ponto final em conflitos antepassados.

Nada se assemelharia a antes. Tudo se transmutaria coincidente à lua em suas fases, até o último bater das asas de uma borboleta calar todos os santos.

¹Gelatto: A palavra italiana é traduzida para o português como "Sorvete", mas elas são usadas tanto pela gastronomia quanto pelo 'marketing' para falar, ou intuir alimentos diferentes;

²Juíz da Paz: Os Juízes da Paz são juízes leigos competentes para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar processos de habilitação, sem, contudo, ter caráter jurisdicional;

³Ínfera: Que fica por baixo. O mesmo que inferior;

⁴Patíbulo: Cadafalso; um palanque ou estrutura de madeira que se usava para executar os condenados à morte;

⁵Fel: Expressão de amargor, de sabor amargo, azedo; azedume. [Figurado] Comportamento, sentimento ou estado de espírito que denota amargura; ressentimento.

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