Capítulo 5: Pétalas Vermelhas

*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, SOLIDÃO, RACISMO, HOMOFOBIA, ABUSO PSICOLÓGICO, RELIGIÃO, MISOGINIA, ASSÉDIO MORAL E VERBAL.

*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Einaudi: Campfire Var. 1 - Day 7 - Ludovico Einaudi

6 de Abril de 1999: Três dias antes do Último Quarto Crescente

Mantendo uma conversação apreciável entre os dois, ele observava agoniado através da janela, despistou seu olhar na direção de Gaya, nervoso e ansioso temeu o retorno de sua avó. Era o que ele repudiava presenciar naquele momento, quando ao menos pôde desenvolver um diálogo com outra criança na qual mal conhecia.

Agora, ela se tornaria uma amiga.

O sol rompia e seria possível apreciar seu "adeus" por detrás das chaminés presentes nas demais casas vizinhas.

A brisa do entardecer soprava nas benévolas faces das crianças empolgadas devido aos assuntos referentes ao ano letivo de Gaya, além de gostos peculiares do menino Franco:

— Então o Isaac, o metido a valentão da minha classe, zombou do meu cabelo, da minha pele... Eu me encontrava nervosa com esse idiota e o presenteei concedendo um belo soco naquela boca estúpida. Não suportaria aquele menino detestável quieta — riu encabulada e Franco II escancarou o olhar e desatou os lábios em fascínio. — Mas já escutei várias besteiras dele, recebi um pente por cima da minha carteira e chegou no meu limite, entende? Acho que ele mereceu, porque eu não sou...

— Não é o quê? — ele não entendia a gravidade da triste experiência de Gaya, nem mesmo ela.

Geralmente suas mães interviam e no fim de uma certa noite, quando ela desceu alguns degraus escondida para apanhar biscoitos, notou que ambas choravam comentando sobre o ocorrido na escola e os demais que já sucederam. Embora as Demdike conversassem com a filha sobre o assunto, alimentassem e construíssem a própria defesa dela, a criança se mostrava um pouco inocente.

— Você não entenderia, garoto — seu doce semblante se despedaçou ao recordar do dia.

— Tudo bem, eu respeito caso não queira contar — quis confortá-la e ela recuperou seu sorriso. — Mas me diga: o que aconteceu após isso? — indagou curioso, apoiou seus cotovelos sobre a janela, além das mãos seladas e sustentou o queixo em concentração.

— Ah, pois bem! A diretora Margot me dirigiu até a sala superior, ofereceu alguns sermões que invadiram um ouvido e saíram pelo outro, telefonou para minha mãe e me fez aguardar por poucas horas naquela tediosa poltrona.

— Qual das mães? Continuo confuso sobre a quem se refere — coçou o couro cabeludo.

— Minha mãe Anya. Porque minha mãe Delphine levou minha avó na feirinha de orgânicos.

— Aaah! — entreabriu os lábios. — Agora entendi. Pode continuar a contar.

— Então quando ela compareceu furiosa, pensei que receberia um puxão na orelha, até assisti-la me defender. Foi sensacional! — ele permaneceu boquiaberto e possibilitou escapar um sorriso satisfeito na sequência. — "Minha filha deveria ter esmurrado ainda mais. O correto seria convocar os responsáveis desse garoto por tal conduta repreensível!" — Gaya esforçou-se em imitar fielmente a Anya, reproduziu seus gestos e permitiu o Gregori gargalhar pela hilária interpretação. — Agora sei que tenho o aval das minhas mães para quebrar os dentes de qualquer um que me enfrentar. Mas foi surpreendente ouvir da minha mãe Anya, pois ela costuma ser mais racional.

— E de fato eles são idiotas! Aliás, uns bobalhões! — resmungou pela revolta. — Jamais se importe com eles. O seu cabelo é esplêndido! Nunca presenciei nenhuma das meninas da Rua Mermaid com madeixas tão magníficas quanto às suas — os olhos de Gaya brilharam, tímida pelo elogio.

— Ah! Sinto-me lisonjeada, garoto de nome estranho. Agradeço — encolheu os ombros. — A beleza é um registro de família. Minha mãe Delphine sempre afirmou — demonstrou orgulho numa expressão meiga. — E você? O que faz enquanto não se apoia na janela?

— E-eu? Hum... Vejamos... — encontrava-se pensativo.

Junto aos seus pequenos dedos, o menino coçou a ponta do nariz que se modificou rosado, conforme suas bochechas.

— Pratico pintura junto ao meu pai. Desejo me transformar num pintor assim como ele e meu antigo avô Michelin. Hoje, graças a ida dele à cidade na intenção de comprar alguns materiais, implorei que trouxesse mais um pincel, porque o meu de tão frágil se partiu ao meio. Acredito que a madeira era falsificada. Apesar disso, conseguia contornar os detalhes numa certa precisão. E durante o tempo que não estou pintando, aproveito as saídas do meu pai para recolher estas folhas secas.

Apontou na direção de algumas folhas caídas no vaso de uma papoula-vermelha.

— Minha avó só me determinou apanhar as folhas secas e deixar as pétalas em proveito de misturar com adubo em nosso jardim. Porém, costumo colecionar folhas murchas de diversas espécies. Geralmente quando removo as luvas antes de dormir, amo experienciar a textura considerando desenhá-las. As adquiro dia sim e dia não, pois todas morrem com facilidade e minha avó supre constantemente com novas flores. Além de que, o meu pai traz outras folhas deste tipo cada vez que retorna.

Franco rogou à Gaya tendo em conta que o aguardasse por um momento, correu até o quarto, recolheu uma caderneta velha na qual se situava guardada embaixo do travesseiro e levou consigo, apto a mostrar sua coleção de folhas.

O garoto folheou múltiplas páginas rabiscadas até alcançar o acervo de folhas e exibiu com orgulho para Gaya.

— Olhe aqui, estas são as folhas secas. As que estão nas últimas páginas se aproximam do processo, em especial a do pinheiro. Demorou bastante para eu conseguir uma folha de pinheiro. A textura delas assim que amarelam, transmitem satisfação. Se desejar, experimente! — ofereceu a caderneta à menina, empolgado e ansioso com sua possível opinião, observando-a atender a sugestão. — O que achou?

— Hum... sutilmente áspera — sorriu leve e agoniada ao tocar. Gaya admirava muito mais a natureza viva. — Mesmo amareladas, continuam belas. Pensando bem, é interessante sentir a textura. Pode acreditar.

— Quando ela entrar no processo, pode voltar aqui para sentir com mais atenção. Claro, assim que minha avó não estiver presente.

O menino recolheu a caderneta, a deixou no dormitório e retornou aliado a um sorriso estampado no rosto. Nunca havia exibido seu mostruário de folhas secas a ninguém que não pertencesse à sua própria família. Uma criança solitária que despertava agora ao construir sinceras amizades. Era tudo o que mais sonhava.

Gaya se mostrou meditativa e fixou o olhar contra a papoula-vermelha. Franco II considerou meramente peculiar, como se a garota se deparasse imóvel no tempo. Mal possuía a consciência que a pequena bruxa se atentava ao que a flor exteriorizava. Igualava-se a uma súplica de adeus.

— Se eu lhe revelar algo inusitado, ficará chateado? — negou com a cabeça e esperou pelo provável segredo, sem entender do que se tratava.

— Suponho que não, mas seria melhor não motivar o suspense.

O que escondia?

— Esta flor — apontou para a papoula — falou comigo — incrédulo, ele riu conforme a última reação nervosa. — Digo com seriedade, tolinho! — a respeitou e se manteve sisudo assim que a encarou impaciente. — Mas o que ela me contou é tão triste...

Franco inclinou-se atento à flor, curioso com a incomum fala da pequenina.

— Este vaso se assemelha a um cemitério. Ela tem consciência que as demais flores morreram aqui. Pressente que será a próxima, pois a cuidadora nunca irá valorizar sua beleza, sua presença e esquece do quão é importante. Caso possa colocá-la junta às outras flores da casa, talvez jamais vivencie tão solitária assim que chegar a hora de partir — Gaya observou a flor tomada por um olhar triste, vago e opaco. — Igualmente nota a ausência das abelhas, das gotas de chuva...

O garoto encantou-se com as palavras de Gaya sobre a papoula. Era admirável e ao mesmo instante melancólico. Mal sabia que a jovem Demdike sustentava a capacidade de interpretar a natureza.

— Por que me diz isso? Como se compreendesse a flor? É um pouco bizarro, não acha? — ela respirou fundo numa inquietação, com pesar às súplicas do fragmento natural e revirou os olhos devido à inocente ignorância de Franco II.

— Porque consigo interpretar o que elas me falam. Diria ser idêntico aos barulhos das fadas em filmes de fantasia. Um pequeno, agradável e insistente chiado. Às vezes comunicam-se através do vento, sendo uma das formas mais complicadas para compreendê-las, e é necessário se concentrar na melodia da brisa, na qual cada entoação corresponde em diferentes palavras. Segundo as explicações da minha avó Anika.

— Estranho... eu apenas sei que as folhas morreram porque estão secas — brincou e apanhou um sorriso dela que revirou as escleras mais uma vez.

Enquanto se encontravam fielmente focados na conversa sobre a triste papoula, bem no início da alameda, distorcendo a flora da Rua Mermaid, em passos apressados como se chutasse o chão, quase topando os pés nos seixos, a figura de silhueta sombria e assustadora, emergiu similar a um perturbador pesadelo.

Surpreenderam-se com o atordoante regresso de Moniese.

O garoto congelou por medo, arrependido por não perceber a volta. Gaya tratou de se afastar imediatamente da abertura e temeu a velha ranzinza. A avó se aproximou, recarregou sua fúria e pavor próprio, teorizando o que aquela menina havia proferido ao seu neto enquanto se situava fora. Em reação, incomodada na presença da Demdike, a Gregori se pôs à frente da janela, similar a um obstáculo entre as crianças, no mesmo instante em que a jovem bruxa apanhou sua bicicleta desconcertada, apressada e testemunhou seu novo amigo desaparecer por dentro da casa.

— Foi um grande prazer conversar com você, Franco! — exclamou em despedida no exato segundo que subiu na bicicleta e nem sequer recebera um "Até breve!" equivalente a um retorno.

A idosa estreitou seus agressivos olhos azuis orientados à Gaya, entrelaçou os braços e a cercou, salientando a falsa superioridade.

— Jamais... — ergueu o indicador. — Repito. Jamais ouse dirigir qualquer palavra imunda e venenosa na direção do meu menino, está ouvindo bem, garota?! — a Demdike recuou receosa, esquivou-se de discussões e voltou para o sossego de seu lar.

Moniese empinou o nariz bem antes de entrar. Havia passado a tarde marcando presença no médico particular, na intenção de cumprir consultas referente ao estado de saúde do seu coração. Conforme ele dissera, poderia passar pouco tempo com vida.

Devido aos estresses de anos, sua alma amargurada e desprezível era de fato a cereja do bolo. Ela costumava acreditar que as Demdike lançaram outra maldição e dessa vez sucedeu caindo sobre si.

O cúmulo de toda sua vivência, manifestou-se ao se deparar com a jovem bruxa conversando junto ao seu neto. Unicamente o que restava para despertar mais ódio.

Ao ultrapassar a porta, Moniese pôs sua bolsa pendurada no gancho de entrada pregado na parede que perdia as lascas de tinta e seguiu em passos maçantes até o quarto do seu "querido" neto.

Franco localizava-se deitado de barriga para baixo sobre o colchão, rabiscou uma das páginas limpas da caderneta fina de couro e traçou algo semelhante à papoula.

Ambicionando se aproximar do pequeno Gregori, a avó acomodou-se na ponta da cama, expeliu sua respiração pesada e analisou atenta os traços formados pelo garoto:

— Querido, podemos conversar? — numa voz arranhada, transmitiu pavor ao invés da calma, ela apoiou suas mãos meramente enrugadas por cima da perna do menino, que reagiu com temor, retirando-a ao possuir a percepção que nunca deveria ser tateado sem seu consentimento.

Em seguida, ele aprovou com a cabeça e presumiu por uma repreensão.

— Quero lhe pedir, com imenso carinho, que não mantenha nenhum contato com aquela menina.

Franco II fechou a caderneta, comportou-se sentado na cama, se pôs sustentado por cima de suas pernas dobradas e refletiu sobre qual pergunta faria. Intrigado, ele ajustou os óculos no rosto e estreitou as sobrancelhas curiosas.

— Mas vovó, o que ela fez de mal? Consegui uma amiga após tempos e agora me pede afastamento? Não entendo — coçou a cabeça embaralhado.

— Um dia compreenderá, meu bem. Porém, agora somente imploro que se distancie. Suplico — uniu as mãos conforme uma reza. — Não são boas pessoas. São perigosas, disfarçam com maestria numa fisionomia inocente e temo que façam algo de errado contra sua própria vida. Nunca entenderá e nem tão cedo a agressividade dos fatos, meu amor. Elas cometem atos condenáveis aos olhos de Deus.

— Como o quê, vovó? — o garoto insistiu. — Aquela garota possui um bom coração. Eu acho.

Moniese se empenhou em manter a calma e assimilou que possivelmente essa seria a hora exata para que o pequeno Franco II adquirisse ciência referente à rivalidade entre famílias. Entretanto, explicou da forma na qual visualizava toda a situação.

— Elas são bruxas, querido. Bruxas! Responsáveis por dizimar em séculos passados os nossos parentes distantes. Além de praticar heresia em manter a audácia ao frequentar a mesma igreja que eu. Mas o único propósito delas, continuará sendo nos assassinar — assustou-se com as declarações da avó, mas a considerava dramática demais com suas acusações. — Servas do demônio, adoradoras do Diabo e capazes de lançar maldições irreversíveis contra nós, meu pequeno anjo. Por isso quero lhe preservar seguro ainda em vida. Preparo há tempos os caminhos em que deverá seguir para se conservar vivo.

A forma em que Moniese esforçava-se em convencer o Franco II de suas malucas convicções, tornava-se assustadora à quem observava numa percepção externa.

Envolvia uma relação abusiva da matriarca sobre o neto, sem anular o antigo vínculo autoritário da própria ao seu filho. Ela visualizava o garoto como um querubim corrompido pelo mundo.

Nem sequer havia cessado sua destilação de veneno, ainda insistia em propagar ódio sobre as curandeiras, amedrontando o pequeno inocente.

— Além disso, aquelas duas bruxas casadas é um comportamento absurdo e repugnante! Onde já se viu?! Deus somente aceita a união amorosa entre homem e mulher, querido. Precisa entender isso antes que seja tarde demais e tomar cuidado com o que verá lá fora. O mundo é perigoso e anjinhos iguais a você, podem se corromper no futuro. Sem mencionar essa mere... — nem mesmo esgotando da podridão disseminada ao encontro do seu neto, Moniese deixou escapar por um triz através de seus nocivos lábios, um xingamento inadmissível contra uma das Demdike.

Em relação a pessoas idênticas a Gregori, não há espaço no céu e muito menos no inferno. Obviamente, almas perversas e equivalentes à dela são sentenciadas a viverem aprisionadas na terra, sem hipótese de julgamento, piedade ou descanso. Sua alma consistia fétida e ocultava a criatura asquerosa que habitava por debaixo de sua pele.

— ... Infame, que foi abandonada pelo pai da menina, deixando mais nítido que mulheres são como demônios — sua boca encheu-se de perversidade e mentiras.

— Mas vovó, a senhora é uma mulher, esqueceu? — refutou de maneira inocente. — Ou quer dizer que a senhora é semelhante a um demônio, assim como elas? — seus pequenos olhos piscaram inquietos.

— Que tremendo absurdo, Franco! A que ponto ousa menosprezar sua própria avó e mencionar este ser maligno com seus ingênuos lábios? — se contradisse e o deixou envergonhado. — Há uma grande diferença entre mim e elas. Sou uma dama de bem, regida pelos céus, sigo as doutrinas do Senhor. Porém, no outro extremo, existem as malditas bruxas que se dirigem contra o nome do Pai, e agora surge essa pirralha proveniente das profundezas do inferno para perturbar a sua cabeça.

Franco se preencheu de aversão ao ouvir Moniese relatar em sua concepção sobre as Demdike. De fato, as curandeiras se mostraram em oposição ao que a Gregori de meia-idade costumava pregar.

Jamais existiram pessoas tão bondosas similares a elas em toda a Rye. Não foi à toa que a natureza as escolheu. 

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