Capítulo 40: A Morte Macabra
*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, PÂNICO, MISOGINIA, BESTIALIDADE, VIOLÊNCIA FÍSICA E VERBAL, DECAPITAÇÃO E ASSASINATO.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Walking Through Morning Dew - Shana Cleveland
Era dia quinze de julho e o corredor do clube Vaughan, que era apenas frequentado por funcionários, fora preenchido por pessoas que incluíam clientes em torno de uma das salas.
Algumas funcionárias gritaram ao alcançarem a porta escancarada com luz acesa que refletia nas paredes externas.
Aparentava que a iluminação provinha do gabinete de Lillard e guiava os curiosos.
Gaya, impaciente por chegar atrasada, vinha para mais uma exaustiva apresentação em público e no fim cumpriria sua rotina no local restrito para sustentar as despesas da casa.
Precisava manter a estadia em Londres.
Suas escleras moveram ligeiras no alvoroço instigante, pessoas entravam e saíam feito formigas do ambiente, amedrontadas por algo.
— Quem fez isso com ela?
Um homem aterrorizado, como se testemunhasse um fantasma, disparou pela cantora e fugiu do corredor apertado por clientes que se desesperaram com o que enxergavam.
— Não pode ser! Meu Deus! — uma mulher esgoelou e os que sobraram no recinto mais movimentado se preencheram de intromissão.
Gaya empurrou algumas delas para alcançar e identificar o que se tratava.
Entretanto, seus olhos desejaram apagar aquela cena.
Foi extremo engolir o que testemunhou, pois sua vontade em largar todo seu jantar daquela noite, era imensa.
A Demdike se sustentou nos ombros de estranhos para não desmaiar ou gritar junto aos demais.
Sua cabeça doeu, girou, os lábios racharam de tão secos por aquele instante e suas lágrimas pesaram ao cair involuntárias.
Ivone Castrell, que se chamava Lillian McNeill para os mais íntimos, fora descoberta sem vida no escritório de Lillard.
Ou pior, uma parte dela.
Somente sua cabeça de feição aterrorizante com um bilhete na boca perturbou Gaya Demdike que se descontrolou e vomitou no sapato de um desconhecido ao seu lado.
Ivone, não era uma pessoa solitária como muitos consideravam ser.
Seus pais permaneceram no interior e ela passou parte da infância sendo protegida por eles até o momento que decidiu se mudar para Londres.
À procura de seus sonhos.
A mãe de Ivone rezava todas as noites para que o Deus que ela acreditava protegesse a filha.
Não pensava que a enterraria bem antes de partir.
Muitos pais de fato nunca se imaginam enterrar seus filhos. Em especial, quando desfrutam de sua juventude.
Gaya martelou mentalmente como Ivone de alguma maneira se parecia com ela.
Estavam no mesmo ambiente de trabalho, se empenharam para alcançar sonhos semelhantes e temia bastante em receber o similar destino de sua colega.
Com isso, a bruxa alimentou em silêncio suas quase certezas dos responsáveis por aquele crime brutal.
Gaya ansiava por justiça.
No mesmo átimo que ela buscou se recompor, dois policiais estranhamente chegaram tarde demais, seguindo de outros que obrigaram a retirada imediata dos bisbilhoteiros.
A jovem mirou bem para cada um deles que seguiu até o cômodo e exigiram a saída dos que prevaleceram inertes.
Até aquele instante esperavam dois peritos criminais que trabalhassem com o que restou dos vestígios maculados pelos intrometidos na cena do crime e o chefe da polícia encurralava Lillard que se mostrava inquieto.
Apesar daquela situação estar sob domínio das autoridades, tudo possivelmente seguia para o esquecimento, como um caso arquivado numa pilha de documentos empoeirados.
Porém, a família de Ivone jamais arquivaria a existência da cantora que merecia ser vingada e os responsáveis do crime teriam de cumprir cada ano sentenciado.
À medida que o corredor fora selado com faixas brancas e listras vermelhas por dois policiais à paisana que impediram mais intrometidos, ninguém que trabalhasse naquele local poderia sair dali.
— Bem disseram que ela não tinha uma vida consertada.
Um dos garçons riu com outros poucos funcionários que desonraram a imagem que sobrou de Ivone.
— Convenhamos que ela era uma qualquer, Barry — cotovelou o amigo e o primeiro confirmou com a cabeça.
— Todos sabi... — fora interrompido por um peso nas costas e uma pressão no pescoço.
Gaya chorava de raiva, suas escleras estavam em fúria quando partiu para cima do rapaz e o esganou com os braços.
Entretanto, fora apartada por um dos integrantes da banda e atraiu a atenção dos demais, incluindo os policiais que mal se moveram do lugar para apartar a briga.
Consideravam não chegar ao ponto extremo, então permaneceram em guarda por considerarem a agressão bastante fútil.
— Você, seu infeliz, não possui nenhum respeito pela falecida Ivone e quer dar lição de moral?
Logo que foi retirada, seu punho em força raspou o nariz do indivíduo, que fora puxado pelos colegas, sem reagir por temê-la.
Contudo, protegia sua garganta atingida pela jovem.
— Se acalme, Sol — o pianista se pôs na frente, acariciou os ombros e manteve a consciência da cantora em paz.
— Mas que maluca! Me solte! — relatou para se desvencilhar das mãos que o continham. — Me solte!
— Espero que, quando você morrer e em breve, seu espírito sinta a dor de ser comido e invadido pelos vermes, seu desgraçado! — bravejou sobre os ombros do amigo e amaldiçoou o homem sem nem perceber.
Bem na entrada, com o acúmulo de pessoas lá fora para entender o que ocorria no interior do clube, ainda furioso, o olhar da bruxa estagnou na presença de um estranho homem careca e severo que ao ser notado, tratou de escapar e sumir como fumaça.
Aparentava não desejar ser visto.
— Precisa se acalmar. Está tudo muito difícil e temos que pensar na Ivone — o amigo acariciou as costas dela e trouxe a atenção quando o garçom se distanciou. — Eles bem nos interrogarão para extrair qualquer informação e você sabe bem o que pensam da gente.
Assim como Gaya, o pianista, era negro retinto.
— É... — seu olhar se esvaziou ao recordar daquele trágico ocorrido. — Pela Ivone.
Ivone Castrell fora assassinada da forma mais monstruosa possível, um estranho surgiu e sumiu feito vento e ela ainda se conservava em fúria pelo desrespeito daquele ambiente com a vítima.
Gaya necessitava se afastar por uma semana daquele lugar e possuía diversos motivos para agir de tal maneira sem receber reclamações do administrador.
A morte desumana da cantora Ivone Castrell também despertou um tremendo pavor.
E se esse também fosse o mesmo destino de Gaya? Ela sentia que Castrell sustentou sua imagem para aqueles vermes até descartarem-na como uma carne imprópria e se não fizesse nada para evitar, tomaria o mesmo rumo.
Contudo, sentiu a necessidade de ajudar a solucionar qualquer indício e captar informações preciosas.
Lentamente, Gaya Demdike se tornava uma peça-chave e, em similar instante, um alvo ideal.
— Investigador Deangelo? — seus finos lábios foram escondidos pela outra mão que ocultou a leitura labial de quem o observava.
Numa alameda movimentada em Rye, bem apartada do centro, em dia nublado, alguém tão conhecido utilizava o telefone público sem usar as mesmas vestes de sempre.
Passava despercebido como qualquer pessoa.
— Quem deseja? — o rapaz respondeu do outro lado da linha e parecia ser jovem demais para sua idade através da ligação.
Também não costumava receber chamadas pelo telefone pessoal e isso o intrigou.
— Roman. Sou um amigo do Edmund. Ele deve ter lhe informado sobre eu vir a lhe contactar — não queria destacar o grau de importância do mencionado para o investigador.
Deangelo respirou aliviado.
Edmund se tratava de um bom amigo durante a época que trabalhava no departamento de polícia especializada de Durham.
— Agora compreendo.
O responsável pelo contato se mostrou impaciente ao aguardar o restante da resposta, mas Deangelo pensou no que poderia se tratar.
— Se trata de cartas manchadas ou rosas-vermelhas?
— Cartas manchadas. Eu acho.
Coçou a careca, os olhos se retraíram inseguros para o chão da cabine e voltaram para um ônibus a transitar na rua.
— Foi o que Edmund me informou para lhe repassar. Contei toda a situação e ele não hesitou em me entregar seu número — respirou mais um pouco. — Consegui muitas coisas durante um tempo com uma pessoa que infelizmente se foi com o que eu tinha para confirmar.
Se tratava de códigos que eram transferidos para quem buscasse entrar em contato com o detetive.
Cada um informa a gravidade do assunto.
Cartas manchadas significavam crimes propositalmente não solucionados e rosas-vermelhas para investigações acerca de relações extraconjugais.
Deangelo percebeu que entraria em algo sério.
— Na mesma noite que eu conseguiria mais informações, algo ocorreu.
O jovem rapaz precisava manter o contato em controle.
— Onde prefere que ocorra nosso encontro? — ainda suspeitava que poderiam interceptar a ligação. — Estou próximo de Chinatown e não fale mais nada.
Já havia lidado com algo semelhante.
— Podemos tomar um drink, comer algum prato artesanal e ouvir jazz durante a noite inteira — compreendeu que a ligação poderia sofrer alguma interferência de quem dominava o lugar onde o detetive se localizava.
Entretanto, Deangelo entendeu ser o clube de jazz em Soho, próximo de onde o investigador indicou estar.
— Combinado. Vejo-lhe mais tarde — desligou bem antes que o homem dissesse mais alguma coisa.
— Até.
A ligação fora encerrada e o contratante arrumou seu sobretudo no corpo, ajeitou os óculos escuros no rosto e seguiu até um hotel mais próximo, onde se instalava por enquanto.
Noite em Soho, bairro preenchido de pessoas em cada esquina para aquele dia tão normal que já estava próximo do fim de semana.
Muitos enchiam a barriga de bebida, os pulmões de nicotina e aquilo tudo incomodava a bruxa que chegou para mais uma noite de show no Vaughan desde o dia do trágico ocorrido.
Era muito recente.
Ela sentia que Ivone não havia partido em paz quando o clube se fechava e do escritório de Lillard uma sombra corria de um lado para o outro.
O vulto fez com que evitasse passar pelo cômodo e exigisse que o administrador se dirigisse até ela.
Mas naquele vinte e um de julho de 2011, Gaya Demdike cantava no palco insegura com o ocorrido e se esforçava para entregar uma apresentação em memória da colega de trabalho.
Um tributo.
Logo que Ivone Castrell partiu, Sol Basil havia atraído mais público para aquele recinto e isso de alguma maneira embrulhava sua barriga.
Como se desrespeitassem a falecida cantora principal da casa.
Porém, para quem apreciava a finada cantora, estar em frente ao palco, onde Castrell se entregava, representava a saudade por uma vida interrompida.
A Demdike ainda se culpava demais por tê-la deixado com aqueles velhos predadores e, no fundo, sabia que eles foram os responsáveis pelo ocorrido traumatizante.
Todavia, como provavelmente eram poderosos, tudo fora encoberto e caso não cumprisse sua visita ao primeiro andar, receberia o mesmo destino que Castrell.
Embora a casa estivesse lotada de clientes, entre as cabeças atentas para a banda, ela percebeu a presença do mesmo homem careca que notara no dia da morte de Ivone.
Ele estava lá e sua cabeça brilhava de tão pouco cabelo, se evidenciava inquieto de pé e procurava por alguém no mar de frequentadores.
Um dos garçons se aproximou educado para atendê-lo e o guiou até uma mesa de canto, bem no final do clube, quase escondido do público.
O desconhecido se acomodou culto, pôs uma mão sobre a outra disposta na mesa, se atentou no seu relógio de pulso escondido pela manga longa de seu sobretudo levemente molhado pela chuva que perdurava no exterior, mirou os lados em busca de alguém e Gaya regressou o próprio foco nos clientes que se derramavam em encanto bem próximos do palco.
— O que deseja, senhor? — o garçom se achegou no homem, curvou-se e apanhou o bloquinho de notas, além de uma caneta.
Prestes a anotar qualquer pedido.
— Espero por alguém — buscava pelo clube a presença do estranho investigador.
Não sabia como ele era fisicamente.
— Tudo bem — recolheu a caderneta. — Quando precisar, pode me sinalizar.
— Ah, espere só — evitou que ele prosseguisse. — Quer saber? Vou pedir uma Pink Lemonade¹ engarrafada — gesticulou.
— Tudo bem — listou o pedido e seguiu para trazer a bebida.
À medida que aguardava, ele apreciava a voz da cantora que o próprio já possuía conhecimento.
Não havia marcado presença no clube sem propósitos. Contudo, Gaya pensava que o estranho fazia parte dos membros que ela jurou serem culpados pelo ocorrido do dia quinze.
Enquanto o garçom demorou para buscar a garrafa, ele mal notou a chegada de um homem alto trajado por inteiro de preto, por trás, como um obsessor.
Parecia estar confuso se aquele era o responsável pela ligação desde cedo.
Até que decidiu se pôr ao lado dele para resolver qualquer dúvida, pois entre muitos naquele ambiente, o indivíduo estava solitário, disposto numa mesa com duas cadeiras.
— Sr. Roman?
Desconfiado, não concedeu a mão a ele, as uniu na frente e fez com que Kansas percebesse um leve espasmo nos ombros, quase imperceptíveis.
— Não o conheço — mentiu e temeu por sua vida.
Se evidenciava nervoso demais ao desviar os olhares com ele. Talvez estivesse ali para lhe assassinar entre muitos que não percebiam.
O estranho aparentava possuir um corpo atlético de nadador por baixo da jaqueta de couro escura, jeans comportado como peça inferior e uma camisa da mesma cor da jaqueta escondia um cordão de prata que portava algo pesado por dentro. E numa das mãos sustentava um capacete preto que refletia as luzes do ambiente.
Seu rosto transmitia uns vinte e sete anos, porém, sua idade era sete anos inferior a isso e para um profissional meramente experiente como ele.
Os fios escuros do cabelo curto ondulado caíram sobre os olhos acinzentados contornados por uma sombra preta fina que piscaram insistentes e ofuscaram naquele escuro compartilhado com variadas iluminações até arrumá-los para trás, num passeio das mãos.
— Conhece bem — puxou uma cadeira ao lado, sentou próximo e estendeu a mão para saudá-lo. — Cartas manchadas — mais um espasmo surgiu e Kansas mal se importou.
Era o que o detetive esperava.
— Me perdoe, pois temo tudo depois do que aconteceu, embora eu consiga me passar despercebido por aqui — o viu ajeitar a cadeira para sentar-se de frente.
— Não tem problema — removeu a peça de couro e arrumou na cadeira pelo local estar bastante abafado naquela noite. — Apesar do clube possuir uma fama questionável, ainda é seguro para se encontrar.
Virou e olhou para o amontoado de gente.
— Olhe para essas pessoas, se enfeitiçam com qualquer coisa — o jovem completou.
Contudo, seus olhos acelerados, apesar de cruciantes por não ter apreço pelo ambiente barulhento, encontraram a única pessoa que lhe fisgou a atenção.
Deangelo mordeu a bochecha quando notou Gaya cantar e focar na mesa que ele se situava, porém, não compreendia bem que o olhar dela fora fixado em Kansas que buscava pelo garçom.
— Está atrasando demais — a perna balançava nervosa por baixo da mesa.
— É... de fato — se afastou da atenção que dava para a Demdike.
— Eu pedi uma Pink Lemonade para nós dois e talvez queira pedir alguma coisa a mais — apanhou o cardápio abaixo do organizador de molhos. — Batatas, tortinhas doces, salsichas... O preço é salgado, mas posso pagar só esta noite.
— Pode ficar com a bebida, Sr. Kansas — pediu licença ao padre para tomar o cardápio. — E também deixe o consumo por minha conta. É melhor preservar qualquer rastro seu.
Seu tom de voz tenso assustou o acompanhante.
— Não pensei nisso — coçou a careca, preocupado.
O garçom retornou com duas taças e Pink Lemonade contido numa garrafa transparente.
Logo que o rapaz iria derramar a bebida no copo do investigador, ele se recusou gesticulando.
— Vou querer apenas uma garrafa d'água, por favor — sorriu receptivo para Kansas, que correspondeu.
— Agora mesmo — o garçom nem anotou e já disparou para buscar.
Quando o rapaz se distanciou e a música aumentou com o instrumental de piano, Kansas tomou a palavra.
Estava com medo de ter o mesmo destino que Ivone Castrell.
— Sabe, eu busquei por um tempo alguém que fosse confiável ao ponto de prosseguir comigo em descobrir o que vem acontecendo por longos anos acobertado por uma instituição que jurei lealdade por muito tempo, Sr. Deangelo — deu o primeiro gole.
Buscava soltar todas as palavras naquela mesma noite. Antes de apanharem-no.
¹Pink Lemonade: A bebida nada mais é do que um suco feito a partir do limão siciliano com suco de frutas vermelhas, no caso da receita tradicional, suco de cranberry.
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