Capítulo 34: Memórias Shakespearianas
*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, RECORDAÇÃO DO LUTO, PENSAMENTOS MELANCÓLICOS E DISTANCIAMENTO FAMILIAR.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Wicked Game - Daisy Gray
Me acomodei encostada no cedro naquelas tardes maçantes, selei meus olhos e notei os pensamentos vagos.
O tédio que sem dúvidas conhecemos.
Mas a minha memória me custou lembrar de uma das conversas que tive com o Franco em oito de abril de 2009, sossegados em meu quarto, quando os tempos eram profundamente bons.
Ah, e como eram bons...
Amava ouvi-lo falar sobre filosofia, literatura, assuntos que o falecido Sr. Callahan o ensinava em vida e o que fora repassado no internato.
Que Deus o tenha.
— O que é felicidade para você?
Ele me olhou imersivo e minhas mães nem sabiam que nos deitávamos no mesmo colchão quando todas se recolhiam nos aposentos.
Acho que já confiava dormir ao meu lado.
— Talvez vivenciar bons momentos? — confesso que fiquei receosa entre os olhos azuis que fitaram em mim.
Repousar ao seu lado me provocava ansiedade. Ainda mais ao sorrir amável e deitado em meu segundo travesseiro.
— Também — as sobrancelhas ondularam. — Queria mais respostas suas — arfou.
— Então as respostas estão contigo.
Odiava quando ele me fazia buscar por palavras que sempre estavam na ponta de sua língua.
— Me diga o que aprendeu sobre felicidade. Especialmente no internato.
— Explicação formal ou informal? — brincou comigo.
Entendia como me tirar do sério.
— Formal, por favor, Sir Gregori — tive que revidar, afinal gosto de contornar a situação.
Entretanto, minha seriedade rompia-se quando seu sorriso evidente tomava os lábios delicados antes de emitir seus conhecimentos.
Cada detalhe nele aniquilava meus pensamentos racionais.
Suponho que me apaixonei por ele não só pelas leves olheiras e côncavos fundos, fora suas pupilas que dilatavam ao me enxergar.
Franco era perseverante em suas ações, palavras, pensamentos. Irredutível, em especial, acerca de mim. O que me fazia suspirar.
— Formalmente, de uma lógica mais racional e Aristotélica, a felicidade é uma recompensa de nossas ações, assim como o nosso maior desejo. Tal qual aprendo a pintar porque no fim almejo ser um brilhante artista plástico — tão belo ouvi-lo falar rouco pelo silêncio da noite. — Compreende?
Ele se mostrava orgulhoso ao me explicar e eu possuía o prazer em escutá-lo. Assim como ele sentia.
— Até que você não está errado. Eu nunca fui uma boa estudante de filosofia. Fracassei em aprender.
— Bobagens, ainda me considero errado — bufou e revirou as escleras.
— Por quê? — me surpreendi.
Aquelas palavras martelaram a minha cabeça por segundos.
— Segundo Shakespeare, "é muito melhor viver sem felicidade do que sem amor".
— Com isso discordo de sua opinião. Aliás, de algumas. Não se pode ouvir as besteiras que Shakespeare emitia. Onde já se viu.
Entendo que ele havia chegado na fase de Shakespeare, porém, aquilo foi o cúmulo.
— É um raciocínio vago e pertinente apenas referente ao amor romântico. Há demais tipos de amores, Franco.
— Sim. Mas ainda não me descreveu sobre o que é felicidade para você. Porque para mim, ainda não encontrei. Diferente do amor. Amo pincelar um quadro, mas meus esforços não alcançam a felicidade, já que ela é uma recompensa de nossas ações.
Hoje posso confessar com deleite que Shakespeare estava muito equivocado, ou melhor, iludido.
Todavia, compreendi que aquele jovem triste pela vida, não havia evoluído na mesma situação que a minha e preferia inúmeras vezes receber amor, amar, ao invés de cultivar a felicidade.
Não importava qual.
Apresentava-se sobrecarregado pela ausência do bem-estar que sucede à felicidade, na qual o fez acreditar que o amor era mais necessário, quando para alcançá-lo, carecemos ser feliz.
Franco nem sequer apreciou de olhos fechados um chá de camomila ao longo do entardecer de outono, à medida que se inspira o agradável perfume relaxante da bebida.
Nunca conviveu no conforto de seu lar, abraçou apertado cada membro de sua família, visto que perdeu todos para a maldição.
Em época alguma prezou por um bom e saudoso blues reproduzido através do disco de vinil que rodava na vitrola durante uma noite de inverno.
Em nenhum momento conversou com as flores empolgadas pela primavera ou talvez recordado do meu inesquecível beijo entregue no canto de seus pequenos e macios lábios.
Franco não se encontrava satisfeito para amar. Nem mesmo ser amado.
Portanto, William Shakespeare, por onde quer que esteja, revirando-se do túmulo por lhe contestar neste instante, jamais lhe perdoarei em fazê-lo crer que seria melhor viver sem a felicidade do que sem o amor.
É indispensável obter felicidade para amar.
Sinto-me em eterno júbilo ao evoluir essa sensação de alegria.
Prosseguirei vivendo com este bem-estar, dispensarei no presente o amor romântico construído entre mim e Franco.
Todavia, me vejo comovida por ele, em não experienciar a similar emoção, quando nunca aprendeu como ser feliz.
Notou-se renovada, uma nova criatura possuindo o mesmo corpo, abaixo de sua divina pele retinta preciosa, como obsidiana marrom.
Gaya fora preenchida por todo o poder natural e agora descobria-se motivada em difundir sua aliança com a Mãe Terra, para quem sempre viveu sob o obscurantismo.
Não somente semeando seu afeto pelo universo, contudo, a transmitir sua única magia aos espíritos necessitados de estima.
Sabia que resultava na ocasião ideal em sua trajetória para modificar tudo em sua volta e traçar sua história.
A princípio, dividiu sua felicidade em dois fragmentos: deixar sua família, sua casa, Rye, e alimentar sua ambição em alcançar os respectivos sonhos, seu contentamento pessoal.
Amava tudo o que desapegava com um pesar no coração, logo sustentava a certeza de que suas diversas formas de amores ficariam bem, resultando no contentamento e na paz.
19 de Maio de 2011: Dois dias após a Lua Cheia
Ao amanhecer, nas seis horas matinais, num frio aconchegante de manter qualquer morador de Rye abaixo das cobertas, Gaya despertou, pulou do colchão e contrariou o desejo de quem adorava passar o dia inteiro na cama.
Queria aproveitar o clima fresco.
Aparentava animação em pegar o precedente trem da estação de Rye até a Estação de King's Cross, em Londres.
E logo que desceu depressa pela escada, ainda descalça tocando o piso gélido, foi sobressaltada pelas familiares que a presentearam com uma pequena coroa de flores-do-campo e energia aquecedora.
— Eis nosso raio de sol — Delphine bateu palminhas.
— Mas... Ma-mas o que isso significa?
Antes de descer o último degrau para a sala, Gaya apoiou-se no corrimão com as mãos rígidas, surpresa pelo pequeno e simbólico presente.
Boquiaberta, recebeu sorrisos amáveis das mais velhas Demdike emocionadas.
Aproximando da filha com a pequena coroa, Anya esbanjou seu amplo e cativante sorriso, pôs o adorno acima dos cachos de Gaya, arrumou-o com esmero para fixá-lo e beijou a testa da moça, enquanto as outras se confortaram em comoção.
— O que significa o presente? — insistiu entre o sorriso empolgado.
— Digamos que não foi um presente nosso e sim da Mãe Terra. Contudo, de toda forma consideramos igualmente como da nossa parte.
Anya concedeu dois passos para trás e admirou a filha com a coroa, junto às demais.
Estava vestida num pijama turquesa, ainda com os cabelos embaraçados, bagunçados, amassados pelo travesseiro e sua expressão sonolenta, tão linda quanto uma dríade.
— Conte a ela, querida. Conte como recebemos a coroa — as bochechas de Delphine ruborizaram e ela enlaçou as mãos para frente, animada.
— É uma ótima história para se contar aos próximos descendentes, hein?
Anika balançou o quadril para o lado e chocou com Delphine que retribuiu.
— Despertamos e contemplamos esta coroa sobre a janela até compreendermos que foi exatamente "Ela" quem enviou. Acreditamos que os pássaros participaram disso, porém, sem dúvidas foi por uma boa ação.
— Significa que está preparada para seguir mundo afora, Sol. Nossa mais nova curandeira — Delphine completou.
— E essa nomeação é a glória de nossa linhagem — a anciã tomou as palavras. — Caso queira um dia tornar-se mãe, assim como nós, esperamos que repasse as experiências adquiridas durante a sua vida, querida. Pois, como Elizabeth Demdike anunciou antes de se tornar uma borboleta: "seremos sementes e brotaremos como raízes firmes pela nossa Mãe Terra".
A matriarca se aproximou da neta e acariciou seus cachos.
— Ah, minha querida avó... — seu semblante piedoso iluminou ao admirar a idosa menor que seu tamanho.
— Voe, minha filha. O mais alto possível como um pássaro movido ao horizonte e fascine como uma mariposa lunar resplandecente que migra rumo ao luar. Plante e colha como as ascendentes fizeram para fortalecer o nosso presente — Anya finalizou, emocionada.
Todas a abraçaram coletivamente, em meio aos prantos de uma saudade antecipada.
A jovem bruxa de Pendle partiria para novos ares, se afastaria fisicamente de seu saudoso lar, das pessoas que amava, mas o seu espírito permaneceria perpetuado em Rye, onde tudo se originou.
Na qual a natureza é fiel ao seu benefício e sua constelação de aquário brilhou no céu místico e noturno, além dos ciclos passados.
Situava-se pronta, segurava com a mão direita a mala de rodinhas, uma mochila enorme apoiada nas costas e uma espaçosa bolsa na esquerda, prestes a percorrer a pé até um determinado ponto em que pudesse alcançar qualquer táxi.
Ausente de cerimônias, ela entregou um delicado beijo na bochecha de cada uma das bruxas, se encorajou para não cair em lamentações ou desistências e as reverenciou.
Foi por elas que não desistiu de tudo.
Por fim, estufou o peito, inspirou a brisa rarefeita da primavera, selou os olhos em obediência e libertou suas decisivas palavras para a atmosfera medieval de Rye:
— Prometam que estarão sempre aqui até o meu retorno — todas consentiram.
Anya encontrava-se abraçada com Delphine e Anika com as mãos unidas, encostadas por cima dos lábios franzidos, em gesto de oração. As três acalmaram a imensa melancolia dominante.
— Almejo retornar e presenciar que estão bem, vivendo cada instante como se fosse único, assim como sempre fizeram em minha presença. Anseio regressar sendo quem aspiro ser agora, revir à velha infância e quem sabe, se aquele alguém também voltar, sonho em reencontrá-lo, logo que o sustento em meu peito — inspirou pesado. — Portanto, minha felicidade será completa se estiverem ainda em Rye.
Gaya direcionou seu olhar para Anya e Delphine.
— Mães, continuem a se amar, ambas nasceram para se adorarem até o final dos tempos. Aqui está o fruto desse amor, seguindo outros caminhos, mas orgulhosa em ter duas mães como vocês. Se sou uma estrela, as duas são para mim como o universo. Maior que o sol e a lua.
As escleras delas se encheram de lágrimas ao sentirem-se gloriosas pela filha e de como a construíram.
— Nós te amamos além da vida, querida — a voz embargada de Anya fora acalentada por sua esposa.
— Não se esqueça de nos avisar sobre a estadia na capital, Sol — Delphine agiu levemente apática. — Sempre iremos nos preocupar com você porque te amamos, meu amor.
— Eu também as amo. Podem ficar tranquilas comigo, mães.
Dessa vez, Gaya encaminhou o seu olhar para a avó, que sorriu meiga como de costume.
— E você, vovó. A melhor jogadora de sinuca da Europa, a maior apreciadora da feira de orgânicos de Rye — a matriarca ficou sem jeito —, o que será de mim sem os seus ensinamentos? Preenchida por idade, mas permanece com a alma jovial, doce, unicamente um anjo. É a sua amável Sol quem ganhou um presente incrível quando teve a consciência de quem era Anika Demdike e a honra em ter a ciência que era a minha própria avó. Espero retornar e vê-la ainda de pé, com suas madeixas platinadas, as belas rugas que contam histórias, superações, sua risada envolvente e quem sabe bebermos juntas pela primeira vez.
O adeus pressionou o coração de todas, esmagados pelo pesar.
— Vó Anika, queria muito que a Mãe Terra lhe conservasse eterna, mas não posso ser tão egoísta quando em algum dia for renascer no espírito de uma borboleta. E por favor, aguarde pela minha chegada. Recuso que hoje seja marcado como a definitiva oportunidade em que lhe verei frente a frente. Quero manter a sorte em revê-la e dizer outra vez que te amarei até o infinito.
— Minha eterna primavera. Eu, sua avó, não viverei para sempre. Porém, os sentimentos nunca morrerão.
As declarações foram profundas na direção da anciã, na qual Gaya enfraqueceu a voz ao sentir que talvez aquele momento fosse o último a glorificar a fisionomia de sua matriarca.
De alguma maneira sentiu a dor de Franco, logo que o garoto partiu e não pôde despedir-se fisicamente de Moniese, e temia que o mesmo acontecesse.
Ela retomou a coragem, o fôlego, pediu à entidade que confortasse seu âmago, até fazer um último pedido e não menos importante.
— Se não for demais, caso o reencontrem, digam ao Franco que o amo e quero que seja feliz, como ele desejou para mim.
— E se ele vier a lhe procurar, filha?
Anya sentiu que ainda havia muitas coisas a se resolver.
— Fomos corajosos demais em priorizar nossas individualidades e conservar intacto a similar sensação de sempre, mãe. Não tememos o distanciamento ao passo que nossos espíritos se preservam conectados, não é? Com ou sem uma maldição.
O olhar passeou pelas paredes da casa.
— Por isso, deixo ao Franco Gregori as minhas emoções mais puras e fascinantes. Embora ele ressurja trajado como um padre, cultivarei o sentimento pelo homem que escolheu Deus e contrariou o mundo. Mas sei que ainda abraçado com a igreja, ele deve pensar em mim. E com isso, desconheço como, onde e quando. Contudo, iremos nos rever. Detenho a certeza. O reencontrarei e antes disso, pensarei apenas em mim.
Vestida parcialmente de vermelho, sua cor favorita, Gaya orgulhava-se com a pequena coroa de flores, sem se envergonhar de andar pela cidade e esbanjar a preferência da divindade natural pela sua pessoa.
Ela seguiu num sapato acerejado nos pés e nas exatas sete horas contadas em seu relógio de pulso, carregou as malas, acenou para a família com o peso da grande bolsa sobre seu antebraço e respirou pesado quando a imagem das Demdike sumiu ao decorrer do caminho.
Recuou em observar a casa dos Gregori ou algo semelhante. Estava disposta a trilhar o seu rumo sem recordar de seu amor e as lembranças traumáticas que a falecida Moniese cravou em sua consciência.
Agora tudo fazia parte de um agradável passado e, em simultâneo, angustiante.
Porventura respiraria confortável, sem que a sua garganta pudesse ser contornada num nó.
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