Capítulo 33: Metamorfose da Flor

*ALERTA DE GATILHOS: AFEFOBIA, RELIGIÃO E TRAUMAS PASSADOS.

*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: The Curse - Agnes Obel

17 de Maio de 2011: Lua Cheia

Ao avançar no ritual, logo após Gaya ingerir o chá e começar a se magnetizar com o grande cedro — permanecendo com as mãos apoiadas na casca áspera —, a anciã ostentou o livro aberto na página dos ritos com as duas mãos servidas como apoio, ergueu o queixo enrugado, inclinou levemente a cabeça composta pelos cabelos prateados para trás, além de elevar as escassas e finas sobrancelhas brancas num olhar soberano e com sua boa visão aos noventa e um anos — diferente das demais idosas que conservavam a mesma resistente existência —, Anika Demdike emanou uma tremenda e notável calma ao evocar o espírito da Mãe Terra com sua imponente e fervorosa voz capaz de estremecer o mundo.

Quase como um abalo sísmico, a mulher de orgulhosa idade seria hábil de dominar o cosmo inteiro com seus planetas únicos e assimétricos, além das consideráveis e pequenas estrelas a olho nu:

Rêyaonva, namiakik djôtikyz yziak, iknae djôtrêyacank kôiakyziak djôtiá.

(Oh, Mãe Terra, eis-me aqui.)

Por ininterruptas vezes, a idosa guiou as demais bruxas para lhe acompanharem na evocação, exceto Gaya, que se mantinha concentrada na forte comunicação com o cedro, de olhos apertados.

Suportava os arrepios como sucintos eletrochoques percorridos de suas mãos até a ponta dos pés frios pelo solo.

Todas concentradas fielmente no ritual, se conservaram assim durante uma hora.

E desse modo, logo que completaram os ditos, um silêncio imersivo e ensurdecedor tomou conta do ambiente ainda fresco pelo alvorecer.

Embora o canto dos pássaros e a agitação das pequenas e vívidas folhas das árvores, fragmentasse a quietude.

E então, atingiu o ápice do momento em que a Mãe Terra se comunicou através da avantajada árvore, quando a energia do universo foi transpassada gloriosamente para a mais nova curandeira.

A segunda fase, que simbolizava a consolidação da fidelidade, ocorreu no ínterim da remanescente manhã.

Posterior ao primeiro ciclo do rito, assim que o sol se tornou ofuscado pelas nuvens turvas e cinzentas, a eleita sentou-se no chão em pose fácil, tocou a terra para que a extensa árvore conduzisse sua energia ao corpo, na intenção de prepará-la para as cerimônias finais e ela fora abençoada no decurso de toda a manhã pela divindade.

E durante a etapa, a bruxa iniciou um jejum até o final da proteção, que resultou no princípio da tarde.

Alcançando o entardecer, o terceiro estágio da cerimônia que dura um dia integral, quando o sol pesou na pele e aqueceu as cabeças das bruxas presentes, passou-se o jejum temporário.

A proclamada serva da natureza se alimentou apenas com comidas orgânicas. Na permissão e designação pela Mãe Terra até se manter abrigada no interior de seu lar, na ausência do contato com os demais indivíduos.

Enquanto isso, as outras curandeiras misturaram o sangue entregue pela elegida e fundiram com água morna, a fim de conservá-lo até o anoitecer.

Na chegada do crepúsculo, a jovem Demdike encaminhou-se novamente na direção do jardim com as solas dos pés preenchidos no chão, para mais um processo de aceitação e apreciação do despertar das flores noturnas.

Como de costume, todas cantaram aquela similar canção de séculos, porém sem instrumentos para a acompanhar.

A dádiva da família, o hino de orgulho, no intuito de manifestar as flores da estação que desabrocharam em sinal de assentimento.

As flores eram o espelho da eminente entidade e caso elas se despertassem, seria declarada a aprovação para receber o seguinte sacrifício de sangue.

No quarto passo, com as flores ansiosas pelo rito final e a estonteante lua cheia erguida bem no topo de suas cabeças, as Demdike formaram um pequeno círculo no solo, rente ao cedro, junto às pedras obsidianas. Gemas de coloração preta responsáveis por oferecer proteção e energia espiritual para a bruxa posta no arco.

Além das velas amarelas de sândalo¹, que personificam a terra e o poder imaterial.

De feitio a cumprir a celebração, Gaya tornou-se despida por inteiro, coberta por seus cabelos volumosos ainda soltos e exposta fisicamente para o mundo, como um reflexo da coragem e rompimento do tabu referente ao corpo.

Posicionou-se inclusa no arco e em suas mãos foi entregue o ínfimo frasco de vidro transparente em formato de losango que possuía seu próprio sangue menstrual misturado na água tépida².

Na companhia do processo, Gaya apresentou-se em êxtase, movida ao extraordinário momento, fora de seu respectivo corpo físico, levitou como uma folha ao cair de seu galho, apartada das irmãs e fora dominada pela divindade.

No entanto, quando a lua se pôs direcionada e iluminou o cativante jardim, o último ciclo fora alcançado no instante em que Anya Demdike trouxe consigo uma bucha vegetal.

Além de uma mediana bacia de madeira composta por água morna, pétalas de rosas azuis e óleo de sândalo.

Assim, entregou para a anciã, sua bondosa e admirável mãe.

Como um batismo, Gaya fora banhada da cabeça aos pés pela avó, sentiu a água fluir acima de sua evidente pele que transmitia força e longevidade, presenteando a sensação mais inigualável do mundo.

No ápice em que suas mães declamavam a mesma língua de outrora e isolavam a jovem com perfumados incensos de sândalo, logo que a matriarca concluiu o ritual, com Delphine e Anya, as três iniciaram a dança circular — costume de suas falecidas descendentes.

Na qual se elevavam na ponta dos pés e flutuavam como o vento.

Elas movimentaram braços e mãos como o balançar das ondas, rodopiaram com os olhos fechados enxergando o universo com suas mentes e sorriram graciosas através de seus lábios envoltos pelo toque sutil da lua cheia.

Comemoraram antes de unirem-se em diferentes vozes e proclamaram incontáveis vezes a próxima e célebre cerimônia final:

Reya kôrêyagykikz gykiak namiakik djôtikyz yziak iakunkrêya yziak onvaiak

muiádjôtiak iknam djôtiá.

(O império da Mãe Terra agora vive em ti.)

Ao acompanhar o decisivo rito, quando as curandeiras cessaram a dança e aguardaram por uma resposta, de repente, sem qualquer expectativa, Gaya experienciou pela primeira vez um arrepio na espinha.

Daqueles que estremecem a principiar da sola do pé e emergem todos os pelos de seu corpo, até o último fio do cabelo.

De modo sobrenatural, o brilho intenso do luar dirigiu-se à jovem moça levemente insegura e assim, ela ouviu e apreciou um sussurro indecifrável aos demais mortais da terra, uma fleumática canção, mais bela e emocionante que o cântico das bruxas de Pendle.

De imediato, miúdas e sinceras lágrimas tomaram conta de seu rosto pelo excesso de emoção ao compreender de onde surgiu o sonido.

Ninguém sequer solucionaria esse mistério que para as Demdike tratava-se do amor entre a criadora do cosmo e tudo o que o constituía:

"Te concedo a celebrante vida próspera, como a vivacidade dos céus, a aura solar, a resplandecência da lua, a pureza do ar, o esplendor do fogo, as entranhas do mar e o reverdecer da terra.

Filha, glorificada com o similar nome de sua Mãe, preservarei até o seu último e magnânimo suspiro, o espírito da metamorfose que hoje habita em ti. Proclamo à toda criação, acima dos que crescerão odiosos ladeando teus ombros, que nasceste para resguardar o poder sobre o mundo".

¹Sândalo: É uma planta medicinal muito utilizada para ajudar no tratamento de doenças;

²Tépida: Sinônimo de morno.

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