Capítulo 3: Carvalho de Neve
*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, GRAVIDEZ, MORTE E PROCESSO DO LUTO.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Moments - Alexis Ffrench e I'd Rather Go Blind - Etta James
Seguindo o infortúnio, não se passava na mente das pessoas que uma das Demdike havia sobrevivido e sido "poupada" pelo clero.
Mesmo que a maior parte tivesse sido executada em local público, a única responsável por entregar toda sua família fora favorecida com vida próspera, mas até então, conviveria com pesar da traição.
Dessa forma, Jennet Demdike conservou-se aflita, aguardou que todos retornassem para suas casas e subiu tropeçando no grande palanque de madeira na intenção de tocar as peles gélidas e pálidas de suas parentes, tal como um ato de despedida.
Sua alma fora devorada pelo luto.
Aos prantos, suas lágrimas confundiram-se com a chuva que persistiu chocar contra sua face. As gotas incessantes limpavam a sujeira daquele ocorrido.
Cada uma delas depararam-se arroxeadas, junto aos pescoços fraturados em decorrência da violenta corda. Aquela situação transformou-se na sua penitência emocional e eterna: a imagem da família executada como um fantasma de seu passado inconsequente.
Contudo, não atrasou seu tempo em profundo luto e solidão no segundo em que conheceu durante a sua mocidade um bondoso flautista disposto a trilhar seu percurso até um distanciado interior da Inglaterra, a fim de escapar da perseguição dos europeus opostos ao seu povo marginalizado, sendo ele também um homem negro.
Jennet e Boris Kalitch apaixonaram-se pela primeira vez ao se esbarrar durante os saraus¹ comemorativos de Pendle, posterior ao julgamento das bruxas. Solitários naquele ambiente hostil, ambos formaram uma aliança profunda, um laço impossível de se romper.
Logo que ele propôs fugir do povoado durante a noite, entre as árvores altas que sacudiam agitadas com a chuva violenta, temendo maiores e frequentes perseguições promovidas pela igreja aos designados "hereges²", ela considerou escutar, enfim, o próprio coração. Mas interiormente, num vazio perpétuo, torturava no respectivo consciente a sua findada culpa da juventude.
Por consequência, entre águas cortantes que despencavam do céu, os amantes cumpriram seus instintos e deslocaram-se furtivamente numa carruagem de madeira deteriorada guiada por dois cavalos com destino a Rye que se mostrava um vilarejo.
Mais distante daquele lugar, em simultâneo, o bispo Caraveckio, apoiando o "Diabo" em seu ombro direito, esforçou-se movido pela ira e almejou caçar incansavelmente os traidores da igreja.
Ao alcançar a nova localidade ainda sendo erguida pelas pequenas casas de pedras e telhados de madeira, ambos edificaram um lar único, na qual poderiam chamar de seu.
Enquanto Boris orgulhava-se de seus antepassados, fazendo parte da resistência do seu povo, conforme um sentimento de revolta ao longo dos anos, Jennet renunciou repentinamente às suas origens.
Desejava esquecer quaisquer tristezas de Pendle. Não poderia prosseguir se martirizando.
Por mais que ela rejeitasse suas raízes da natureza que vinham durante suas ações diárias, a relação da terra consigo consentia que o sangue Demdike circulasse entre suas veias até o seu último suspiro.
Depois de um tempo, logo que se sentiram capazes de expandir os cômodos da casa construídos por Boris e se estabilizaram sossegados erguendo a morada na futura Rua Mermaid, como fruto da paixão e amor verdadeiro, Jennet concebeu gloriosamente gêmeas idênticas. Frutos do pós-infortúnio.
Não demorou muito para que as duas crianças manifestassem os "poderes" das falecidas bruxas e parentes. Jamais haveria como escapar da resistente identidade.
Quando um bebê descende da árvore genealógica bruxa, os sinais primordiais de que o universo escolheu aquele pequeno ser para proteger e receber o mesmo em troca no futuro, subsistirá sendo a eficiência em interpretar a linguagem das plantas e animais, podendo expandir em novas habilidades, descobertas durante o crescimento caso não as renegue.
Os sucessores das Demdike e demais, adquirem determinadas maneiras de comunicação, um sonido floral, o primeiro indício. Na qual as plantas executam um rútilo chiado melodioso, similar aos cânticos de minúsculas fadas. Além das flores regozijarem o canto de suas favoritas bruxas.
As ações estimulam o florescimento delas e vivificam a confiança entre humanos e natureza. E dessa maneira, as gêmeas repararam-se em prováveis futuras curandeiras. Entretanto, Jennet se recusou a aceitar, crendo que tudo se repetisse e manteve suas filhas em segredo, visto que seus vizinhos se apresentavam em maioria como católicos fanáticos. Temia testemunhar a repetição daquele pesadelo passado.
Agora, com suas filhas.
No tempo em que as gêmeas cresceram, cada uma seguiu a orientação pela qual escolheram. A primeira priorizou deixar a mercê sua histórica descendência. Não estava disposta a seguir como bruxa. Porém, a gêmea secundária, Tove Demdike, insistiu em proceder com os costumes até transmitir sabedoria às suas futuras gerações.
Com a morte de seus pais e o distanciamento da sua irmã para um país longínquo, se mantendo na residência da Rua Mermaid, Tove concebeu quatro filhas do seu profundo amor por um padeiro inglês.
A última delas — a caçula —, Coco, deu à luz a duas meninas, sendo a segunda a repassar fortemente os aprendizados da Mãe Terra para as amáveis sucessoras: Calico.
Gerada de Calico, Calisto foi sucedida. Do ventre de Calisto nasceu Zahava, e de Zahava, Lilis amanheceu como o sol avivando o mundo no específico choro de bebê.
Sem exceções, eram mulheres abençoadas pela natureza, presenteadas como dádiva por uma vida prolongada e preenchida de vitalidade, conforme a retribuição pelo amor ao espírito da terra.
Lilis Francis Kalicth Demdike, respeitável arquiteta ecológica, selada e igualada a uma afronta contra os costumes da época por se formar entre homens brancos, casou-se com Kaia Vance, um aclamado e brilhante bailarino britânico e de um benévolo vínculo afetivo, em 1920, os célebres "Anos Loucos" e período da Era de Ouro em Hollywood, rodeada por borboletas, nasceu em vinte e dois de maio Anika Demdike, semelhante ao sopro vital da paz.
Anika, em sua juventude, era uma fascinante garota negra retinta, idêntica aos seus pais e antepassados, possuidora de um admirável e sublime olhar castanho escuro, de formato amendoado, inesquecíveis cabelos crespos às vezes escondidos por turbantes de diversas estampas, alguns com variados significados importantes para si.
Eleita por mediação do universo, Anika evoluiu proporcional a seus ensinamentos, estimou-se amante da natureza demonstrando sua fidelidade e amor.
Porém, desconforme às plantas, a jovem bruxa alvoreceu suas potentes habilidades com os animais e de seu apreço pela fauna, graduou-se como médica veterinária pela Universidade de Cambridge no ano de 1944, período da Segunda Guerra Mundial.
Até se mostrar rendida afetivamente por Callum Grover, um respeitado biólogo e professor de Harvard que compareceu na Inglaterra na intenção profissional de palestrar durante a Semana de Biologia na instituição britânica, na qual Anika se mostrou presente.
O rapaz havia participado do conflito e se tornou um dos mínimos soldados negros a sobreviver. Contudo, como resquícios de sua integração no conflito de anos, o jovem norte-americano havia perdido sua perna direita ao se aproximar acidentalmente de uma mina explosiva, utilizava uma prótese para sua mobilidade e convivia com os traumas psicológicos do pós-guerra, mas ainda estava disposto a trabalhar com sua formação e longe de sua terra natal.
Naquela época, a saúde psicológica de ex-combatentes da guerra não eram assuntos priorizados.
Callum fixou diretamente seus olhos em Anika e a notou no auditório, atenta em seus ensinamentos. Padecido pela jovem, se declarou de imediato, rendido pela beleza e imponência da bruxa que surgiu o convidando para um repentino jantar a dois em sua residência após a sequência de palestras na semana.
Ela se encantou pela timidez do professor.
— Quanta coragem em me convidar para sairmos, Srta. Demdike. Pensarei em qual comida levarei — Anika estava de pé e inclinada para ele, apoiando as mãos espalmadas na mesa.
O professor se inquietou na cadeira por trás, nervoso pelo convite.
Estavam em sala de aula, compartilhando olhares amorosos.
— Já tenho algo em mente para jantarmos, Sr. Grover — sorriu amável. — Deixarei as louças em suas mãos.
— Isso significa que... — abaixou a cabeça, nervoso ao pensar nas diversas intenções da bruxa.
— Significa que poderá dormir em minha casa. A rua é perigosa para pessoas como nós, Sr. Grover. Entende perfeitamente bem. E minha colega de quarto se ausentará por uma semana — piscou na direção dele e recolheu a bolsa no ombro, seguindo para fora da sala. — Até daqui a pouco! — exclamou sem olhar para trás.
— Até... — a viu desaparecer — ... Anika — finalizou suspirando.
(...)
Apaixonados, em breve tempo casaram-se e constituíram sua família residindo na casa dos antepassados da bruxa, até a chegada de sua estimada filha única em onze de agosto de 1969: Anya Grover Francis Kalitch Demdike.
Após a lamentável, repentina e traumatizante morte de Callum num trágico acidente de trem, Anika educou sua criança sozinha entre o luto pelo seu grande e eterno amor. Ainda restara a união dos dois naquela criança e as fotografias presas nas molduras de seu quarto.
E conforme prometido à natureza, a linda herança das bruxas de Pendle sucedeu repassando para a menina idêntica a sua mãe que principiou a ter apreço pela história familiar.
Enquanto o fruto do verdadeiro amor entre o professor e sua curandeira amadurecia, também vieram as paixões da juventude.
3 de janeiro de 1987
Os desmedidos sentimentos carnais durante sua mocidade a fez se enamorar por Jensen Harris, um marinheiro vivaz prestes a viajar a serviço para a Bulgária.
O casal se conheceu num clube de dança em Liverpool em 1987, entre baixa iluminação e calor ambiente emanado por jovens que buscavam aproveitar suas idades, durante a estadia da moça na cidade grande.
Jensen era galanteador, visto como um rapaz de palavras cativantes que sempre andava com um grupo de amigos. Anya, embora receosa, caiu sob os encantos, cedeu um beijo caloroso e responsável no homem que se apaixonou pela jovem de personalidade invicta.
Com um tempo, Jensen e Anya mostravam-se inseparáveis, fazendo os demais acreditarem que se materializavam como puras almas gêmeas. Porém, tudo mudou assim que a jovem Demdike descobriu em maio de 1991 que se modificaria numa mãe e que perderia a pessoa que ela acreditava mais amar.
Ainda na mesma época, a moça recebia o amparo de sua fiel amiga, Delphine Ann Hawthorne, geóloga diplomada e atuante no âmbito.
Anya sabia em quem confiar.
Ambas se conheceram brevemente e de repente na estação ferroviária de Rye em onze de agosto de 1983.
Anya partia ansiosa para Liverpool a fim de seguir a carreira do seu falecido pai, embora incerta em seus próprios objetivos. E Delphine, já graduada, fugia aliviada de sua família tóxica na intenção de vivenciar uma vida tranquila na pequena cidade, em busca de aperfeiçoar sua formação com estudos do ambiente e experienciar a tranquilidade, dois dias depois do próprio aniversário de vinte e três anos.
— Também escapando da família? — Delphine, entre a brisa que tocava seus cabelos perfumados, sorriu tímida ao testemunhá-la tremer e bater os pés no chão, aguardando a locomotiva.
O espaço não se mostrava tão barulhento como de costume, cheirava a natureza e ferro corroído.
Ao puxar assunto com a jovem desconfiada, Hawthorne notara que Anya não estava disposta a conversar e apertava os lábios, incomodada por esperar demais. Às vezes se esticava para enxergar os relógios nos pulsos dos demais e a cada conferida, o nervosismo aumentava como um furacão se aproximando e destruindo tudo pela frente.
Os olhos de Delphine brilharam encantados para Anya que buscava desviar da moça envergonhada por incomodá-la. Ainda relutava em sair da estação em busca de um hotel para passar poucos dias até encontrar uma casa para alugar, mas estava presa na paisagem distante da ferrovia e naquela jovem retinta cabisbaixa.
Na mão direita da bruxa, a passagem era carregada e na esquerda sustentava uma pequena mala composta por um cartão de felicitações preenchido por desenhos de pequenos balões e preso com os dizeres:
"Para minha aniversariante do dia, desejo toda sorte, segurança e sucesso do universo.
Com carinho,
Mãe Terra e mamãe."
A moça, curiosa, cerrou os olhos em busca de desvendar o que aquilo significava. Especialmente a "Mãe Terra".
— É o seu aniversário? — Hawthorne insistiu, mas fora surpreendida com a confirmação.
— Sim, sim — a Demdike voltou sua atenção para a companheira ao lado, sorriu desajeitada e se mostrou amigável. — Dezoito anos — ao informar a idade, não se expôs tão feliz como Delphine imaginava.
— Então... — traçou o olhar no chão, como se buscasse por algo, mas formulava palavras — meus sinceros parabéns! — concedeu a mão na intenção de parabenizá-la e fora retribuída. — Vejo que temos algo em comum para não sermos tão estranhas.
— Me desculpe, nã-não entendi — fez uma careta e se evidenciou confusa.
— Quero dizer que também faço aniversário em agosto. Aliás, no dia nove. Mas a data se foi, então... feliz aniversário para você! — apertou novamente a mão da bruxa que riu lançando a cabeça para trás.
— Ah, parabéns também! — enquanto se saudavam, balançavam as mãos empolgadas por descobrirem uma certa proximidade. — E não estou escapando da família, como havia questionado.
— O quê? — elevou as sobrancelhas.
— A pergunta que me faz antes de falarmos sobre aniversários — elevou os ombros e revirou os olhos em segundos, contendo mais risadas.
— Ah! Sim, sim. Lembro. Achei que estivesse passando a mesma situação que a minha, entende? — negou desentendendo. — Pais conservadores, imposições... não é sua vivência, certo?
— Não mesmo, mas me sensibilizo com você. Na realidade eu não queria sair de casa. É meu único lugar de conforto. Contudo, estou partindo para honrar meu pai, então... não encare como uma imposição. É um sonho meu, de verdade.
— Tudo bem.
O primeiro trem chegara na estação e faltava apenas o segundo, a locomotiva que levaria Anya para distante da pequena cidade.
— Então não és de Rye? Até seu sotaque é de quem vem da cidade grande — ajeitou a mala entre as pernas e enxergou passageiros adentrar o transporte, ao mesmo instante que outros saíam.
— Como eu queria..., mas não descarto a importância de Bristol em minha vida. Muitas pessoas achavam que eu deveria seguir para lugares festivos, regado a bebidas, drogas... as coisas que pensam sobre os jovens, sabe? Porém, eu quero a paz. Acho que posso encontrar aqui em Rye — respirou fundo e cruzou as pernas, além de se ajeitar no assento. — Isso soou um pouco sonhador, não é?
— Demais — riram. — Acho que alguém precisa colocar mais os pés no chão aqui em Rye.
— Foi isso que pensei — sorriu de canto e suas bochechas coraram. — E você? Está fugindo daqui? Não de casa, mas cansada da cidade?
— Se estudar biologia em Liverpool é fugir, acho que estou fugindo — riu anasalado.
— Liverpool, Liverpool... odeio o John Lennon. A cidade me faz lembrar dele — bufou incomodada. — Nada contra a cidade, pois ela é bem agradável. Porém... — respirou pesado — você entende. Não sei se concorda comigo.
— Temos mais uma coisa em comum. Também o detestava — bufou e tremeu os lábios.
— Isso é interessante saber. Ainda mais porque estou gostando de conversar com você e sinto ser uma pessoa de bom coração. Mas lá em Liverpool, só não entre nos clubes de dança. Você encontra um John Lennon encostado em cada bancada do bar. Mas aproveite bastante os tempos de estudo.
No fundo, o trem que levava a Liverpool se aproximava, dando tempo para Anya apanhar as coisas e se despedir de Hawthorne.
— Me deixou um pouco assustada, mas também gostei de conversar com você. Muito obrigada pelas felicitações, é... — apertou novamente a mão da não tão desconhecida, espremeu as pálpebras e visou recordar se ela já dissera o nome antes.
— Hawthorne — a bruxa pensou em ser um belo sobrenome. — Delphine Hawthorne. Com Ann no meio.
— Anya Demdike — as mãos aparentavam não se desgrudar.
O contato das peles era quente, macio e entre as duas sensações houve um choque de energias, algo como duas almas passadas se reencontrando.
Quando o transporte alertou de sua chegada e se formou uma fileira para entrar com auxílio do condutor, Delphine correu desesperada até a cabine de bilhetes, tropeçou nos próprios sapatos e voltou com uma caneta na direção de Anya que desentendeu o que estava prestes a fazer.
— O que, o que está planejando? — avistou a jovem se ajoelhar e escrever números por trás do cartão de aniversário.
Logo que voltou a ficar de pé, os olhos de Delphine brilharam para Anya que correspondeu da mesma maneira. Algo sussurrava para a Demdike que Hawthorne era iluminada e não poderia se afastar nem tão cedo de sua presença.
— Meu número de telefone — as sobrancelhas de Anya caíram encantadas. — Quando se sentir sozinha ou precisar conversar com alguém, já sabe para quem ligar — lançou uma piscadela. — Podemos falar mal do Lennon, compartilhar mais gostos em comum e quem sabe, se quiser, posso lhe visitar.
— Eu adoraria, Delphine com Ann no meio. Aliás, eu quero.
Com o retorno de Anya para a pequena cidade no exato dia da descoberta em 1991, elas se reencontraram e ao notar a solidão da amiga vivendo numa casa alugada atrás da mercearia no centro de Rye, as bruxas Demdike acolheram Delphine na residência e separaram uma acomodação para a jovem.
Com a repentina gravidez, logo que ligou para conceder a notícia ao seu companheiro que ainda permanecia em Liverpool, após Anya interromper forçadamente os estudos para cuidar da sua gestação, a reação que ela expectava tornou-se um completo luto.
A relação entre ambos era saudável, mas a distância e as ocupações, além dos sonhos, não eram compatíveis. Ela decidiu voltar para casa após descobrir a gravidez, buscou se comunicar por poucas vezes, contudo, as chamadas não foram retornadas.
Até que ela tentou pela última vez e foi finalmente atendida.
15 de Maio 1991
Três batidas na porta despertaram Anya do transe ao segurar o telefone entre as mãos.
— Desculpe lhe interromper, é porque estou fazendo biscoitos de laranja e pensei que iria querer — Delphine, escorada na porta, se atentou com olhares de ternura em Anya e apontou o polegar para fora do quarto.
— Obrigada, Delphine — sorriu agradecida. — Daqui a pouco estarei descendo para comer.
Delphine concordou veemente com a cabeça preenchida pelos cabelos castanhos e afinou seus lábios.
— Qualquer problema, saiba que estamos no sofá — sabiam que Anya não estava tão bem quando adentrava o quarto e fechava a porta.
— Tudo está bem — seus olhos serenos pelo momento indicaram esconder lástimas.
Números escritos e quase apagados num papel amassado foram discados e cada toque da chamada lhe causou apreensão.
Talvez ligaria do banheiro, pelo embrulho no estômago ou naquele ambiente que lhe concedia calma por instantes.
— Oi, é...
Sentou-se afobada na borda da cama em direção à janela repleta de folhas de faias preenchendo o peitoril, ansiosa em contar acerca da gravidez.
Seus pés e dedos inquietos na bota de pelúcia caramelo evitaram tocar o chão polido e suas mãos frias e trêmulas no telefone sem fio evidenciaram um específico medo.
O medo da rejeição pelo outro ser que carregava em seu ventre.
Já não havia sentimentos tão profundos como outrora, mas conhecendo Jensen pelos momentos passados em Liverpool, ele poderia ser um bom pai.
Poderia.
— Com quem eu falo?
Outro rapaz atendeu impaciente e a voz não era do Jensen.
Não se tratava da mesma voz aveludada que se encostava em sua orelha para se declarar em todo crepúsculo.
— Olhe só, eu não tenho tempo para aguardar retorno, estou ocupado — do outro lado da linha, o rapaz se esbarrou em uma cadeira ou algo semelhante.
— Jensen Harris — levou a mão para a testa e se sentiu tola. — Não, quero dizer, Anya Demdike. Quero falar com o Jensen — se confundiu, sorriu anasalado e coçou o cabelo crespo e raspado que ela mantinha com carinho.
Houve um silêncio cruciante naquela ligação.
Por um lado, Anya aguardava com ansiedade pelo telefonema repassado para quem ela buscava. Pelo outro, apenas se ouviu o respirar profundo do homem. Aparentava carregar o mundo nas costas e dores no peito.
Entre eles, na ligação, emergiu a sensação de vazio. A mesma sensação ao sentir que o corpo se preenche num eterno eco.
Um desgosto inimaginável.
— É alguma brincadeira sem graça?! — elevou a voz, fez a bruxa se erguer do macio e abrir a janela, permitindo a entrada da brisa primaverense.
Necessitava respirar melhor para o que viria.
— De maneira alguma! Quero e preciso falar com o Jensen para contar que... — chateou-se, próximo de perfurar o chão com os pés.
— Não tem como falar com ele porque...
Evitou, mas a jovem buscava pelo rapaz.
— Porque ele não está mais aqui — o tom se tornou silente. — Foi um acidente, ninguém da família sobreviveu e eu espero que não ligue mais para falar dele, moça.
A imagem do seu amigo e familiares logo que chegou ao hospital para o reconhecimento facial, torturava até aquele instante. Jensen e o rapaz se conheciam desde crianças.
Anya ficou imóvel e silenciosa até emitir palavras. Não conseguia mais chorar com o peso da notícia sobressaindo entre as lágrimas.
— Ele seria pai. E-ele... — as palavras que completaria sumiram junto ao seu olhar distante da paisagem à frente. — Como isso aconteceu?
Estava temeroso em contar.
— Deseja de fato saber? — queria entendê-la segura, embora nunca a tenha visto. — Precisa ser forte.
— É o que importa agora para mim. Já sou forte sozinha.
O amigo em luto recarregou os pulmões.
— Há uma semana, o Jensen, a mãe e o irmão mais velho viajaram para Manchester de carro no intuito de visitar o restante da família, antes dele seguir a serviço da marinha — a voz embargou. — Recebi a ligação do hospital em que eles estavam e saí de lá sem reconhecer o rosto do meu amigo. O veículo mal saiu de Liverpool quando o caminhão...
Anya o interrompeu.
Seu coração perdurou despedaçado. Pressentia que o chão havia aberto uma fenda e lhe absorvido até os confins da terra, o mais próximo do tórrido núcleo. A angústia fazia parte de um processo para alcançar a quietude.
— Não precisa me contar o resto. Acho que foi o suficiente — engoliu a dor interna rasgando sua garganta. Precisava ser forte para o ser que carregava. — O velório já ocorreu?
Precisava perguntá-lo.
— Sim, já ocorreu. Caso prefira, posso lhe informar onde foram enterrados.
— Agora não é necessário. Talvez amanhã. Não seria bom neste instante para minha gravidez. Preciso digerir melhor — acariciou a barriga que ainda não era evidente.
— Compreendo — já se expôs demasiado sensível, diferente de quando iniciou a ligação. — Mas como amigo dele, de peito aberto com minhas palavras, Jensen amaria descobrir ser pai.
Um dia após a comunicação, ele retornou a ligar para indicar o cemitério e lírios-brancos foram postos próximos da lápide de cada familiar.
Passando os dias, semanas, as flores permaneceram intactas. Quem frequentava o lar de descanso aos mortos para visitar entes queridos, acreditava serem flores trocadas em pequenos intervalos de tempo.
Contudo, flores entregues por bruxas como as Demdike, nunca secam.
(...)
Após a morte de Jensen, apesar de conduzir sozinha a próxima descendente das Demdike, a esperançosa moça vivenciava o apoio procedente de Anika e ademais de sua leal amiga Delphine.
A mulher de cabelo castanho escuro, longo e ondulado, notável expressão lúcida, sorriso cativante, olhos descaídos e pele rosada similar às incipientes nuvens do céu poente, expunha emoções profundas pela jovem bruxa.
A datar daquele dia, Anya havia feito a mais bela e melhor escolha de sua vida. Estava prestes a vivenciar a verdadeira felicidade após o falecimento de Jensen.
5 de novembro de 1991
Delphine, como uma boba, entregava-se por completo à gestação de Anya. Conseguiria substituir um dia inteiro trabalhando temporariamente na mercearia para prestar assistência à amiga e se mostrar participativa.
À medida que a barriga alargava, pesava as costas e inchava os pés da jovem bruxa no sexto mês de gravidez, transformando o período num dos mais cansativos e estressantes, as duas aproximavam-se emocionalmente cada vez mais, modificando os planejamentos futuros da amiga.
Com um tempo, ambas sabiam com maestria cada gosto particular das duas.
Delphine entendia que Anya amava filmes de terror e colecionava fitas cassetes numa caixa de madeira. Especificamente com lobisomens e vampiros. Anya sabia que Delphine apanhava pedras achadas em qualquer lugar para um dia montar um espaço só de estudo acerca de cada uma e escrever um guia informativo com todo o conhecimento adquirido.
Como resultado, um respeitável sentimento singelo aflorava em ambos os corações, semelhante ao despertar da primavera e Delphine estava se preparando aos poucos para contar a Anya sobre como ela se sentia e como a Demdike reagiria. Temia o afastamento, mas era necessário manter tudo explícito.
Os olhares das duas se entrelaçavam num desmedido amor, orgulho e afeição. Apesar de ter experienciado afáveis períodos na companhia de Jensen, jamais se comparavam aos adoráveis e inigualáveis minutos e segundos próximos à Delphine.
28 de novembro de 1991
A proximidade perdurou mais nítida quando ambas inauguraram sem delongas uma pequena e humilde floricultura no centro de Rye, um confortável e amável estabelecimento acentuado pelo bálsamo natural situado de frente para a praça principal que unia lojas, a segunda igreja do sino e a chamaram de Gaya.
Elas compartilhavam da mesma paixão pela natureza e estavam dispostas a investir num futuro confortável para todas.
— Podemos conversar por um instante? — Delphine, cautelosa, se aproximou de Anya que contava caixas sentada num banco giratório estofado e com rodinhas, sustentando a barriga já crescida.
Anteriormente distribuía algumas plantas suspensas pela loja.
— Quinze, dezesseis e dezessete. Acho que os primeiros vasos estão aqui — enxugou o pouco suor da testa e sorriu ao se atentar na Hawthorne. — Podemos sim. Com certeza — se dirigiu até Delphine através das rodinhas e apanhou as mãos da jovem que se arrepiou com o ato.
Amável, Anya acariciou os dedos de Delphine e os levou aos lábios, beijando.
— Não sei se percebe desde o dia que nos conhecemos, talvez sua mãe já tenha notado, pois Anika é bem observadora — Anya focava nos dedos da jovem e permanecia acariciando.
— Ela é mesmo — respondeu num sorriso.
— E ainda mais por estarmos aqui, entende? Construindo uma vida juntas, aguardando pela chegada do bebê, já compramos todo o enxoval, reformamos meu quarto para a criança, você conhece tudo sobre minha vida, meus gostos, até sobre o horário que organizo as plantas na vitrine, meus discos de vinis favoritos, a forma que amarro o cadarço do sapato e... — respirou fundo — sabe que eu...
— Que você é lésbica? — Delphine arregalou os olhos. Fora surpreendida — Enquanto estávamos assistindo "Um Lobisomem Americano em Londres", você caiu no sono bem na parte da transformação e falou enquanto dormia. Fiquei chateada porque não terminou de assistir ao filme comigo. Logo na parte da transformação, Delphine?
Transpôs os braços e virou o rosto até ser tomada pelas mãos de Delphine que tocou seu queixo e rotacionou novamente a face para sua direção.
— Me perdoe, Anya. Por favor. Podemos assistir de novo se quiser — a bruxa consentiu em silêncio. — Eu ia falar que te amo. Mas fico tranquila que não me odeia.
A Demdike expressou carinho entre o olhar brilhante que refletia a imagem de Delphine inteiramente apaixonada.
— Odiar você? Nunca que eu te odiaria! Delphine, eu sou bissexual, mas acho que não deixei tão explícito porque me entendi aos poucos — a jovem se agachou e apoiou os braços sobre os joelhos da gestante que acariciou os cabelos dela. — Tive medo de que não me aceitasse.
— É... e sobre eu te amar? — seu rosto iluminou e no exterior, pessoas passavam curiosas na frente da loja fechada, buscando entender sobre o que iriam comercializar. — Não sei se é recíproco — o olhar se entristeceu.
— Recíproco? — aproximou do rosto dela com dificuldade, separadas pela barriga. — Há quanto tempo estamos juntas? — Delphine apertou os lábios. — Cada detalhe entre nós sempre será precioso em minha mente. Creio que foi recíproco a começar no momento que nos conhecemos pela primeira vez. Quando retornei para cá você correu até a estação para me receber e eu só queria o seu abraço. Cada telefonema seu era confortante e sua voz me preenchia com paz. Eu sabia que não amava mais estar em Liverpool e tudo o que acabei conhecendo por lá — prendeu o ar ao notar as bochechas de Delphine se ruborizar.
— Não é possível... — sibilou.
— Eu estava presa numa relação sem sentimentos profundos até determinar o fim. E nesse fim, enxerguei uma luz. Sua face corria em meu rosto como chuva limpando a alma, minha mãe sempre dizia sobre como você reagia à minha presença e eu temia te contar, ainda mais após a morte de Jensen. Pois eu estava me sentindo culpada em amar outra pessoa depois dele.
— Acho que nunca é tarde para contar. Encontramos um momento ideal para isso — beijou um dos joelhos da bruxa. — Fico mais feliz ainda que nos enxergamos apaixonadas, com sentimentos sinceros, que não sou apenas uma amiga para estar ao seu lado quando você precisar ou para enfeitar estantes — riram em conjunto. — Sou feliz por ter sido recebida lindamente por vocês, o que não aconteceu com minha família logo que contei. Creio que não era minha família de verdade. E agora, estou construindo uma, com você, com a Anika. Entende que quero viver uma vida inteira ao seu lado, não é?
— Delphine com Ann no meio, eu quero envelhecer ao seu lado. Eu te amo além de outras vidas — docemente entregou um beijo delicado na testa da amada.
Anya e Delphine estavam aliviadas em se permitir ser quem elas sempre foram. Apesar das sombras que enfrentariam naquela cidade, se mostravam dispostas a nunca mais se separarem. Sustentando um laço inquebrável.
Com o tempo, próximo de totalizar os nove meses gestacionais, planejando surpreender a amada, Delphine a fascinou pedindo em casamento e excedeu de imediato a súplica de namoro. Não conseguia manter a relação em segredo. Se mostrava ansiosa para oficializar, assim como Anya que mal esperava pela iniciativa da companheira.
Anya deparava-se amando novamente e nesta oportunidade, sem incertezas, a pessoa certa. Contudo, o primeiro e glorioso beijo entre as duas sobreveio durante o inverno inglês, na praça principal da cidade, abaixo do antigo carvalho resguardado pela neve.
Delphine, apanhada pelo amor, posicionou suas duas mãos cobertas por luvas envolvendo o rosto de Anya e apreciou a face serena da amada.
O hálito frio que fluía de suas bocas quando inspiravam a atmosfera nevoenta, misturavam-se ao toque dos lábios macios e úmidos que despertavam em energia profunda. Uma mistura doce e amável, além dos desejos que fluíam entre elas.
Os pequenos flocos de neve caíram sobre suas cabeças preenchidas por gorros, no mesmo momento em que o bebê comemorou o lindo gesto ao remexer no interior da barriga escondida debaixo do tecido aquecedor de lã.
Jamais ocultariam o profundo amor. Seria necessário expor para todos que as duas de fato se amavam conforme qualquer casal existente em Rye. Sem mais segredos. Nada e ninguém conseguiria distanciar Delphine e Anya.
— Sentiu isso? — apoiou as mãos de Delphine sobre a barriga pontuda e sentiu o bebê chutar novamente.
— Minha nossa! Acho que ela nascerá com sua personalidade — os olhos de Delphine reluziram emocionados. — Será que vai gostar dos seus filmes de terror ou meus discos de vinis?
— Creio que a mistura das duas personalidades — entregou mais um beijo na amada.
— Então significa que... — os olhos brilharam.
— Que seremos ótimas mães, meu amor.
No primeiro dia de fevereiro, do ano de 1992, exata data do casamento entre Anya e Delphine, durante a cerimônia no cessar antecipado do inverno, apreciando o jardim multicor no interior da residência das Demdike, na qual o sol iluminava o casal de mãos dadas e os pássaros cantarolavam em glórias, as antecedentes e cruciantes dores do parto assomaram após ela mal sentir inicialmente a sua bolsa amniótica estourar e molhar a grama.
Anya, divina num vestido evasê bordado e branco como uma louvada deusa, notou que o ciclo gestacional fora findado.
A criança encontrava-se prestes a nascer.
¹Saraus: Conjunto de pessoas que se reúnem para fazer atividades recreativas como: ouvir músicas, recitar poesias, conversar, etc. Show ou concerto musical que ocorre durante à noite;
²Hereges: Que professa uma heresia ou pratica doutrinas contrárias aos dogmas concebidos pela igreja.
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