Capítulo 23: Solidão dos Amantes
*ALERTA DE GATILHOS: CAPÍTULO LIVRE DE GATILHOS PESADOS.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: In Between Breaths ‐ SYML
Franco encontrava-se deitado, composto em suas roupas semelhantes às do seu armário. Assim como as peças sóbrias que transmitiam luto eterno, as vestes sintonizavam com o quarto, o único cômodo estável na residência com pintura atualizada em tons terrosos.
Fora o porta-bilhetes, havia quadros feitos pelo próprio rapaz, inspirados no barroco de Johannes Vermeer e Artemisia Gentileschi. O jovem estudava arte por conta própria, visto que suas pinturas extraíam a árdua melancolia nos detalhes e a sensualidade em seu imaginário católico.
As espessas cortinas de verde musgo bordadas com o brasão dourado de sua família e o teto de estrelas brancas pinceladas após a conversa da claraboia, registravam aquele sutil dormitório.
Franco, repousou a cabeça apoiada por cima do braço direito, sustentou o telefone sem fio na mão esquerda, relaxou as pernas cruzadas e os pés compostos por meias de lã.
Encarava o teto ao dialogar com Anya e explicava a situação na qual se encontrava. Nitidamente sobre o caminho que trilharia a partir daquele instante.
— Também é sempre agradável lhe escutar, Sra. Anya. Torço que a Sra. Delphine e Anika estejam bem. No entanto, só liguei para avisar sobre um determinado afastamento meu, uma escolha minha e por um longo período.
Anya desistiu de interrompê-lo e concedeu a oportunidade dele se elucidar.
Porventura pensou que o jovem se mudaria de país ou algo quase considerável ao seu ver como normal. Porém, as posteriores decisões de Franco seriam capazes de lhe causar um breve espanto.
Ela escutou atenta cada palavra do rapaz, seus ombros tensos demonstraram um pouco disso e deixou a moça surpresa com o destino.
— Sra. Anya, os breves tempos afastados da Gaya surgiram por sinceros motivos. O primeiro, eu admito que sou inteiramente apaixonado pela sua filha. Algo que, na minha visão, deve ter sido perceptível nesses anos.
Permitiu escapar um meigo sorriso por meio de seus lábios, confiante de seus sentimentos por ela. Ao mesmo instante, Anya ergueu as sobrancelhas e assentiu, visto esperar que isso pudesse acontecer.
— Contudo, infelizmente desacredito que durará para sempre, pois o próximo passo da minha vida impede que eu pense nela. Mal sabe o quanto é torturante me afastar.
Ele descansou suas palavras por segundos, simbolizando um respeito pela história entre os dois.
— E segundo, embora seja estranho digerir, e-eu...
Engoliu seco após gaguejar, coçou o queixo e preparou-se para as seguintes explicações.
No fundo, no mais escondido de sua alma, chegara a questionar se a escolha fora pressionada pela sua avó que inexistia na sua presença.
Como Moniese mesmo tendo partido, ainda o manipulava?
— Pretendo me entregar ao sagrado. Dedicarei minha vida em prol de me transformar num futuro padre. Portanto, queria muito que a Gaya compreendesse antes da minha partida ao seminário. Me frustrarei ao deitar a minha cabeça no travesseiro durante todas as noites e pensar que segui sem ao menos explicar sobre a minha consagração.
Os olhos de Anya quase se lançaram distantes, desacreditada nos caminhos daquele antigo e saudoso pequeno garoto tímido que brincava com sua filha ao decorrer da infância.
Além de inseguro devido aos traumas, crescera, se tornou um rapaz independente e agora decidido em ser um representante de Deus na terra.
Dessa maneira, Franco daria prosseguimento na linhagem familiar de séculos anteriores. O sonho de Moniese traçaria os primeiros passos vagarosos e se ainda estivesse viva, subiria na principal torre da igreja de Rye e tocaria o sino em ato de celebração.
Fracassara com o filho e após ser enterrada a sete palmos do solo, tudo se consumaria. Talvez não tenha obtido a honra em descansar eternamente e vagaria pela terra como um espírito obsessor, a fim de perturbar a consciência de seu neto.
— Gostaria de conversar com a Gaya? Espero que ela compreenda sobre o que dirá — Anya perguntou preocupada e refletiu no que a filha pensaria.
Em razão de Franco estar atraído por ela, Gaya provavelmente sentia a mesma emoção pelo jovem Gregori.
— Ah, como eu adoraria, Sra. Anya. Me confortaria escutá-la e quem sabe, ela me entenderá? Ultimamente evitamos contato, mas não conseguirei partir sem ouvi-la pela última vez.
— É evidente que minha filha lhe entenderia, querido! Cresceram juntos e quando tomar o seu destino ela aceitará de forma sábia. Gaya também é compreensível, aliás, assim espero, por ser o jeito que a criamos, mas acredite em mim — se comoveu com o jovem Gregori. — Por isso, aguarde um pouco, pois irei cham...
Inesperado, Anya avistou Gaya na escada, imóvel e mantida num transe que congelou seus braços e pernas. Havia reagido dessa maneira a partir do primeiro momento em que sua mãe o respondeu.
Questionava-se referente ao que dialogavam e o suposto futuro de Franco.
Embora desejasse ao máximo manter uma comedida distância entre eles, evitou que ao se encararem de novo as coisas se intensificassem além do normal.
Anteriormente estava tão focada em suas apostilas, que num passe de mágica todos os regulamentos e matérias de cada estudo decorados na memória, evaporaram.
Segurando o telefone próximo da orelha, Anya interrompera a chamada ao notar ser observada pela filha e libertou uma risada nervosa:
— Sol! — surpreendida, Anya exclamou o apelido de Gaya e se confundiu por inteiro até sussurrar. — Filha, o que faz aí? — afastou o aparelho do rosto, cobriu com a mão a entrada de voz que o permitia escutá-las e continuou a cochichar — É o Franco e ele quer falar com você.
As sobrancelhas uniram-se e suplicaram a aproximação dela.
No momento, embora Anya acreditasse que ele não a escutaria, Franco sorriu nervoso ao ouvir Gaya pelo lado oposto da linha.
Ela pensava que a técnica exibida nos filmes de investigação policial daria certo. Porém, tapar o telefone com a mão, ainda assim permite que a outra pessoa escute.
— Nem pensar, mãe! Explique que estou bastante ocupada. Depois conversarei com ele.
Nervosa, Gaya escapou de qualquer contato com o rapaz, estremeceu ao imaginar o olhar de Franco na direção dos seus, o perfume de seus cabelos, o tão desejado beijo. Ele se tornara um jovem subitamente atraente.
— Mas vocês precisam conversar com urgência! Jamais me colocarei entre um assunto que ambos deveriam resolver sozinhos.
Gaya insistiu negando com a cabeça e o dedo indicador, ao ponto de se ajoelhar, implorar por misericórdia e torcer para não receber o aparelho em suas mãos.
— Por favor, mãe — sussurrou alto.
Enquanto isso, Franco desanimou por completo. Nunca imaginaria que Gaya rejeitasse sua presença, visto que se preparava para se afastar da bela moça.
— Diante disso, deixarei que o procure ou ele virá até você. Repense e faça ao menos um sacrifício para escutá-lo, bem antes que seja tarde demais e se lamente por toda a sua vida.
— Mas mãe...
Após a reclamação, Anya desistiu de persistir nela, retomou a ligação e observou Gaya voltar até o quarto. Na opinião da mãe, tornou-se uma atitude vergonhosa, contudo, a jovem até então se sentia despreparada para encará-lo.
Talvez, caso ocorresse, a mistura por meio dos dois se igualaria à aliança arriscada do caos. O autocontrole de ambos sucumbiria para sempre.
— Infelizmente está bem ocupada, Franco e... — fora interrompida.
— Sra. Anya, não se explique. Escutei o que a Gaya havia dito ao fundo e tudo bem. Como ela falou, depois conversaremos em algum momento. Desacredito que será agora e lamento por isso, mas seguindo o desejo dela, manterei o afastamento. Espero que nossa conversa não seja quando eu estiver na igreja, cumprindo minha função de padre.
— Franco, caso aconteça, sem dúvidas Gaya insistirá em lhe procurar. De uma coisa tenho a certeza: mesmo que evitem aproximação, acredito que os caminhos se unirão para que o reencontro se concretize. Estão marcados até o final e não há escapatória para o que se definiu — talvez tenha se referido a algo que permanecera durante séculos entre os dois.
Chegou a ser um pouco assustador quando se deve refletir sobre o que Anya queria dizer.
Soou desafiador ao rapaz. Apesar do distanciamento, eles se interligaram. Não deveria carregar para um lado romântico quando se envolvia o passado das famílias rivais. E era isso que aterrorizava a consciência do futuro e jovem sacerdote.
— Não tenho tanta convicção disso, Sra. Anya. Mas deixarei a Gaya pensar melhor.
Afobada, Gaya adentrou em seu quarto, deu a volta na cama e abriu a janela, de modo a observar de longe o lar que pertencia ao seu amado Franco.
Era segura na maioria das ocasiões, porém arruinava sua postura no instante que recordava dele. Embora o pobre homem fosse como qualquer mortal existente no universo, ele desestabilizava o interior de sua alma entregue à natureza.
Logo que franqueou sua janela e presenciou a única ventana¹ acesa da residência, ela inspirou a brisa fria do que se considerava a noite e aguardou ansiosa em vê-lo surgir.
No entanto, Franco prevaleceu deitado e reprimiu um sentimento que gostaria de manifestar nos últimos dias até sua ida ao seminário.
De imediato, ele desejava tratar e fazer sumir a sua fobia ao toque para poder senti-la segurar pela primeira vez as suas mãos e trocar carícias por intermédio dos lábios de ambos que se conservavam virgens.
Um aguardava pelo outro, como a ansiedade das flores ao serem aquecidas pelo sol do verão. Uma desejada e aguardada carta trocada há distâncias entre um casal remoto e apaixonado, na qual nunca se viram pessoalmente.
Se completavam similares a um complexo quebra-cabeças de mil peças e acreditavam que suas emoções se tornavam mistérios indecifráveis, conforme a existência de universos paralelos ou questionamentos como: "aonde iremos assim que partirmos?".
Um dia posterior à recusa de Gaya, ele compreendera por inteiro como sua amada se sentira com o afastamento. Em seu âmago, julgava ser adequado aguardar o tão esperado reencontro.
Ao despertar exausto e solitário consoante ao habitual, Franco apanhou seu diário e caderneta antiga por debaixo do travesseiro, com a mão esquerda grafou na primeira linha, seguiu com as demais, descreveu como acordara e a sensação de viver ausente dos membros da família.
Sua alma dolorida devido ao triste passado, ecoava num grito intrínseco em seu físico e ansiava receber um aconchego.
Apreciava junto ao coração carregado de saudades a foto do pai guardada no meio de uma das páginas, com Callahan acomodado numa das poltronas, rabiscando um esboço de seu filho ainda recém-nascido num bloco de papel.
Ele removia as luvas de modo a sentir mais uma vez a textura envelhecida das folhas pregadas no caderno de colecionador.
Se esforçaria para conquistar mais algumas, a fim de complementar a coleção. Quem sabe no seminário existissem árvores diferentes das que se encontrava em Rye?
Até então, sentado na beira do colchão, sempre encarava a janela e cultuava a paisagem nublada matinal das cinco que sumia com o regresso do sol às sete da manhã.
Como jamais se arriscou em comprar roupas após herdar a herança, costumava reaproveitar as vestes do pai que se encaixavam adequadas no corpo não tão considerável magro e uma das peças favoritas tratava-se do pijama longo acinzentado do Sr. Callahan.
Sentia-se confortável no conjunto, perambulava pela casa junto a uma xícara de leite na mão esquerda e na direita um jornal impresso que destacava as notícias de toda a Inglaterra, entregue através da caixa de cartas presente na porta pelo entregador.
Até se deparar com um dos anúncios postos entre as divulgações de residências dispostas à venda. Referia-se ao almejado fusca preto de 1972.
O anúncio de venda de automóveis usados aguçou seus olhos lacrimejantes e expectou pelo sonho a ser realizado.
Na cabeça do rapaz já se imaginava conduzir o carro por toda Rye, com seu cotovelo apoiado, encostado na janela, experienciando o vento soprar em suas madeixas e contemplar "Bohemian Rhapsody" em memória de seu pai.
Além de viajar até Londres na companhia de Gaya que iria cantarolar em seu ouvido.
Contudo, a sua idealização final não se passava de expectativas.
Portanto, tão apressado como os meses do ano que decorrem sem ao menos percebermos, Franco se organizou na intenção de seguir até o local listado no anúncio. No jornal dizia que o carro se encontrava em Winchelsea, bela cidade conjunta à Rye.
A beleza de Winchelsea não deve ser comparada com a de Rye. Ambas são dignas de receberem elogios.
Ele considerava a cidade como o lugar em que desejaria conquistar uma casa e caso não tivesse escolhido o seminário, se espelharia e viveria semelhante ao seu próprio pai: um pintor autônomo e satisfeito pela sua arte.
Quando se viu preparado, caminhou na rua de seixos e rejeitou em observar a janela aberta do quarto de Gaya. Sentia-se envergonhado por se humilhar.
Assim que embarcou no primeiro ônibus que encaminhava até a cidade vizinha, Franco carregou consigo uma bolsa de alça transversal contendo todas as documentações necessárias para a aquisição do automóvel.
Por fim, realizaria um de seus grandes objetivos.
Ele se acomodou na terceira cadeira ao lado da janela do veículo, achegou a cabeça, apreciou a paisagem das árvores de Rye e chorou junto ao seu silêncio. Desacreditava em tudo o que havia ocorrido.
Seus olhos se fecharam e impediram as demais lágrimas de escorrerem pelo rosto.
Ainda permanecia com os óculos na face, seus punhos fecharam-se num pesar e seu semblante transmitiu sofrimento acumulado por anos.
Fungou o nariz, enxugou os resquícios de lágrimas presas em seu queixo por intermédio das costas da mão esquerda ocultada pela nova luva e seu olhar tornou-se vermelho diante da emoção.
Cumpria enfim o que seu pai planejava bem antes de ser carregado pelas águas do Rio Brede.
Durante o momento em que Franco partiu em direção à Winchelsea, Gaya recebera a ligação mais aguardada de toda a sua vida. Os caminhos de ambos fluíam como a brisa que beija as folhas de outono.
O telefone tocou várias vezes e ninguém atendera.
Anya e Delphine seguiram para a floricultura no domingo, pois precisavam de mais dinheiro e Anika fazia compras na feira orgânica semanal de Rye, onde se armam inúmeras quitandas no meio da praça principal da cidade com verduras e hortaliças ausentes de agrotóxicos.
Em geral, a matriarca demorava horas se ocupando.
Desse modo, perturbada devido ao barulho do telefone, Gaya levantou revoltada da cama, resmungou e bateu os pés no chão em cada passo. Desconsiderava atender telefonemas.
— Vovó! Onde a senhora se encontra?! — o telefone lhe desestabilizou. — Ah, meu Deus, me esqueci da feira de orgânicos! — Gaya sempre acordava cedo para acompanhar a avó durante as compras. Receava a idosa perambular sozinha pela cidade.
Pura teimosia da matriarca.
Ela o apanhou, junto a uma das pálpebras pregadas pelo sono, esqueceu seus cabelos arrepiados, o pijama longo com estampa de borboletas, o encostou no ouvido e surpreendeu-se pela notícia.
— Bom dia! Desculpe o incômodo. Falo com a Srta. Demdike? — uma voz grave e feminina transmitiu animação à jovem que despertara do sono.
— S-sim, está falando com ela. Ah, ótimo dia para você também!
Confundiu-se muito mais, gaguejou, respondeu fora de ordem e seguiu com um bocejo.
— Brilhante, senhorita! Sou Lilian Russell, vice-diretora da Academia Real de Música de Londres e ligo para lhe comunicar referente à sua classificação em nossa instituição. Sendo direta, sua nota avaliativa se encaixa na "Aprovação A".
Ela estremeceu.
— E o que isso significa, senhora? — a voz enfraqueceu e sua mão tremeu ao segurar o telefone.
— Significa que lhe queremos fazendo parte da academia. Ficaremos felizes em finalmente lhe receber!
¹Ventana: Sinônimo de "janela".
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