Capítulo 21: Bela e Nublada
*ALERTA DE GATILHOS: PROCESSO DO LUTO, DEPRESSÃO, AFEFOBIA E SOLIDÃO.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: CAP 21: Bleeding Out - Chance Peña
Ele se distinguiu reflexivo durante dias após aquela mensagem.
Franco empenhava-se ao máximo em não meditar naquele bilhete, se distraía com algumas pinturas feitas por si em telas vazias ainda guardadas, descrevia seu dia a dia no inseparável diário e recolhia folhas secas das flores que começavam a murchar.
Esforçava-se em excesso na intenção de conseguir manter uma rosa-vermelha solitária com vida no vaso, segundo os ensinamentos repassados por Gaya.
Entretanto, inexistiam espelhos pela casa inteira. Ele havia guardado todos por baixo da escada, num minúsculo armário usado como depósito.
Os reflexos tornaram-se pesadelos desde o dia em que as águas do Rio Brede levaram seu pai e seu rosto refletido na face do Sr. Callahan o perturbou durante o funeral, onde na cabeça do Gregori aquilo representava o seu futuro. E o jovem temia profundamente a morte.
Às vezes, no ínterim de seus diálogos noturnos com a amiga, mal se concentrava nas palavras da menina e sua audição permanecia em silêncio, num vazio. A casa insistia em transferir uma sensação esquisita — consequência das lembranças com seu pai — e se submergia referente aos mesmos sentimentos pela sua avó. Embora se conservasse amando-a após a partida.
— Poderíamos chamar alguém para construir uma claraboia no seu quarto. Assim, assistimos às estrelas cadentes correrem entre as nuvens.
Gaya finalmente poderia dormir na casa de Franco sem receios. Ambos compartilhavam a mesma cama gigante e mantinham um espaço entre eles, delimitado por uma almofada.
Deitados de barriga para cima, com uma única diferença de Gaya com os joelhos erguidos, encaravam o teto escuro e imaginavam a visão do céu noturno e encantado por estrelas.
— Você sabe que elas não servem para realizar pedidos — seu rosto encontrou com o dela.
Na noite, o azul de seus olhos reluzia como a lua e os dela como o universo.
O quarto estava calmo, iluminado pela janela descoberta das cortinas, morno e da rua podia se escutar os grilos escondidos nos arbustos. O ambiente cheirava a amaciante de lavanda, pois naquele dia, Franco havia recolhido as roupas de cama da lavanderia.
— Eu acredito. Ainda acredito.
Virou-se, deitou-se de lado para o jovem amaldiçoado e apoiou sua mão direita sobre o travesseiro, próximo da bochecha.
— Você acredita. Mas com o tempo, há coisas que deixei de acreditar por me aceitar realista demais, entende? Acho que, quando perdemos muitas pessoas, apenas crer não é o suficiente. Apesar de acreditar em Deus e sua existência, penso que Ele seja mais real que estrelas cadentes a realizar desejos — parecia um pouco revoltado.
— É... — suspirou até libertar o ar — Consigo lhe entender.
— Não só perdi pessoas para a morte. Também perdi você — as sobrancelhas de Gaya sobressaltaram. — Por um tempo — os lábios entreabriram.
Gaya tocou a almofada, acariciou e imaginou ser o Gregori, já que não podia tatear sua pele.
— A morte e a distância para mim são irmãs, Gaya — também se virou para a Demdike. — Mas ainda me sinto aliviado porque estás viva e acho que se eu te perdesse para sempre, eu... — a voz se dissipou, Franco engoliu cortando a garganta e espremeu as pálpebras.
Suas escleras moveram-se nervosas e desviaram do olhar dela, quando a admirou.
Naquela noite e as demais que a jovem optava por dormir em sua casa, Franco considerava dormir com luvas e temia tocá-la enquanto dormia.
— Shhh... — o acalmou. — Estou aqui — as sobrancelhas caíram e sentiu pena ao testemunhá-lo inquieto.
— Até quando você estará aqui? E-eu não quero interromper seus caminhos, Gaya, mas te desejo próxima de mim, mesmo distante — involuntariamente encostou o rosto na almofada e derramou uma ínfima lágrima no tecido. — Quem sabe podemos construir uma claraboia, eu passe a acreditar em estrelas cadentes e aceite a morte como o destino de todos.
— Sempre estarei ao seu lado, Franco. Não precisa temer. Nada nos separará.
No final do mês de março para início de abril, no findar do inverno congelante de Rye, época em que os habitantes se recolhiam no calor das belas residências floridas, cobertas abaixo da neve, Franco sentou-se no sofá e encarou a parede por minutos.
Estava hipnotizado pela pintura desgastada, iluminado pela claridade externa que transpassou a janela, mirou as luvas visíveis que relutaram e encaixaram em suas mãos, visto que nem aparentavam que ainda cabiam desde os sete anos.
Suas mãos até aquele instante eram medianas, apesar da sua atual idade, assim como o seu tamanho que se igualava ao de Gaya.
E então, interrompeu os olhos anestesiados na direção da parede, de modo a escutar batidas na janela.
Ele se animou ao levantar-se do estofado, acariciou aquecendo os braços cobertos por uma blusa de lã com as mãos e correu para atender a garota de gorro vermelho na porta.
Gaya trazia alguns doces, salgados e uma gelatina de amora que aparentava ser saborosa.
Balançando a cesta com as comidas, ela se alegrou e implorou para entrar, intencionada a aproveitarem o início de abril com o inverno que permanecia até o florescer da primavera.
Franco fechou a porta, a viu pôr a cesta sobre a mesinha de centro, também retirou o gorro, colocou-o na pequena mesa, arrumou os fios do cabelo crespo que exibiam um charme único e o fez apreciar o perfume de suas madeixas escuras.
— São para mim? — apontou com o indicador e se arremessou no conforto do assento. Gaya enlaçou os braços, sorriu debochando e apreciou o garoto. — O quê?
— Presente de aniversário atrasado, Franco. Pensou que eu esqueceria?
Uniu-se a ele no acolchoado e manteve uma distância considerada pacífica.
— Acreditei que aquela flor se referia ao meu presente. Aliás, a coloquei pregada em meu diário como um agradável registro do meu retorno. Por infelicidade, perdi pessoas que amo, mas ganhei uma nova família. Quem sabe as suas mães me adotem, hein?
Lançou uma piscadela e a fez revirar as escleras com profundidade que mal se podia enxergar a íris.
— Se sou trabalhosa, imagine você! Nunca em terras britânicas, Franco. Nem ouse em forçar adoção. A propósito, pensando bem, até que seria bom — riu. — Jamais ficaria sozinho nesse lugar estranho e assustador — seu corpo e lábios estremeceram ao observar as paredes mofadas. — Lembra quando nos conhecemos? A suposição do vampiro?
— ele confirmou com a cabeça.
— Foi estranho — resmungou.
— Agora possuo a certeza. Olhe para você! Pálido, nas vestes escuras, nunca lhe presenciei usar qualquer roupa alegre, um floral ou estampas divertidas.
— Ah, Gaya. Faça-me um favor — as escleras giraram intolerante.
— Franco, se não fosse tão belo, juraria que se assemelha ao Nosferatu. Suponho que precise sair ao centro de Rye e pegar um pouco de sol, você não acha? Precisa urgentemente de vitamina D.
Franco conteve a gargalhada até libertar no momento em que foi comparado ao vampiro de 1922. A imagem da criatura esguia e cadavérica surgira em sua memória e lhe chateou.
— Ótimo saber que me considera bonito — esticou-se para alcançar a cesta. — Porém, não tão encantador como você — ela rejeitou o elogio e considerou uma bajulação a respeito do ocorrido com a flor.
— Está me cortejando? Não acredito nisso... — pôs uma mecha crespa por trás da orelha e olhou para as pernas, desconcertada.
Franco costumava ser bem explícito acerca dos elogios.
— Prefiro não expor tanto assim — suas bochechas ruborizaram. Ela o achara encantador naqueles cabelos acobreados despencados na testa. — Somos amigos, lembra? Foi apenas um sincero elogio — a desmanchou.
Quando Franco pegou a cesta, expressou estranheza ao avistar a gelatina de amora. Repugnava alimentos um pouco gosmentos, e Gaya, impaciente, a apanhou da cesta entre resmungos. Nunca testemunhara ninguém se queixar por isso. Fora estar levemente entristecida por notá-lo desviar de seu leve interesse.
— Não me diga que o seu paladar continua o de antigamente.
— É... continua — riu sem graça.
— Gelatina de amora se inclui numa das comidas mais saborosas, em seguida de um chá quentinho. É claro — negou Franco, com a cabeça, junto a uma careta desagradável. — O quê?! Jamais expresse uma coisa dessas. Te adorava bem antes de declarar que detesta chá. Dizer uma tolice dessas é um completo desastre. O cúmulo dos cúmulos, Franco! Você não é britânico de forma alguma.
— Calma lá e veja pelo lado bom. Se gosta da gelatina, pode ficar com você, certo? Respeitando nossas individualidades, desaparecerão discussões bobas como essa.
— Pois prefiro discutir — brincou. — Gelatina é saborosa demais!
— Está bem. Mas discuta sozinha, porque continuarei vendo o que você trouxe além de gelatina.
Ao abrir pacote por pacote, se alegrou com o que ela havia trazido além das degustações anteriores. Algumas bolachas salgadas, doces açucarados e uvas frescas roubadas da videira do final da rua, na frente da casa trezentos e noventa, residência de uma idosa fanática religiosa, uma conhecida amiga da falecida Moniese.
Franco se deliciou com cada uva, como se saboreasse a última comida existente no mundo, além de se lambuzar na companhia dos doces cobertos por uma fina camada dos cristais de açúcar. Era apreciável de ver.
Gaya degustava a gelatina de amora acompanhada por uma das bolachas e no ínterim da ação, lembrou de uma específica pessoa:
Tem se comunicado com o Dr. Kai durante esses dias? — o questionou e falou de boca cheia. Sem dúvidas as Demdike reprovariam.
— Apenas num único momento. Rejeitei as demais ligações — Gaya arregalou os olhos e se engasgou com a bolacha.
Logo após, tossiu, bateu o punho fechado contra seu peito e retomou o fôlego. Jamais concordaria que o amigo rejeitasse auxílio psicológico.
— Calma Gaya. Precisa me entender. Eu não quero envolver o Dr. Kai em minhas dificuldades. Ele possui a vida dele, a família... Não pode girar em torno de mim e eu não posso obrigar as pessoas a estarem comigo por vinte e quatro horas do dia.
— Franco, é o seu psicólogo! O compromisso dele é lhe conceder bem-estar mental! Nunca deveria rejeitar a ajuda do Dr. Kai — o interrompera.
— Mas eu já recebo de vocês e é suficiente. Óbvio que não deixarei em últimas prioridades, mas agora, não quero interferir na vida do Dr. Kai.
— Tudo bem sobre o Dr. Kai, mas é óbvio que não! Não somos profissionais especializadas em cuidar da saúde mental de um adolescente que carrega traumas desde a infância. Sou só a sua amiga, assim como a minha família. Correspondemos às suas amigas e nossa função é oferecer apoio para aceitar cuidados necessários e evitar que os problemas prevaleçam no futuro. Seria tão bom que retornasse ao psicólogo com mais frequência, Franco. Tente ao menos uma vez insistir num diálogo com o Dr. Kai e retomar a consulta de anos antes. Você pode piorar.
— Preciso pensar bastante. Fracassei em sustentar a mesma segurança de anos anteriores.
— Se me permitir, posso te levar até o Dr. Kai. Nada se resolve apenas com Deus. Precisamos fazer o que no fundo queremos para nós. Recordo-me que pediu no nosso último Natal, ao Papai-Noel, que desejaria cessar seu sofrimento. Que pudesse ser "normal", embora seja. Se ainda possui esse desejo, busque o Dr. Kai. O "milagre" na qual tanto se espera, não cai do céu à toa.
— Não adianta falar, Gaya. Só irei quando me sentir pronto novamente para me consultar. Acho que sei bem o que fazer, não é?
— Foi apenas um aviso amigável. Todos querem que esteja bem.
— Mas eu já sei de tudo o que me fala. Não preciso de mais cobranças porque fui cobrado demais pela minha avó.
Franco não queria chegar nesse ponto da conversa que antes era agradável.
Ele andava mais reflexivo e à medida que o frio de Rye prosseguia ao lado externo, Gaya e Franco insistiram pela última vez numa conversação aprazível entre ambos.
Bem após o desconforto sentido pelo jovem.
— Me perdoe por agir assim — abaixou a cabeça. — Fiquei tão preocupada e acabei sendo invasiva.
— Não, tudo bem — não conseguiu piscar ao conversar. — Eu só preciso respirar um pouco, pintar um pouco. Sozinho por um breve tempo. Respeitar meu luto — se esticou no sofá. — E quando eu estiver mais seguro, Dr. Kai me ajudará, ou talvez outro psicólogo caso ele esteja ocupado com outro paciente.
— Confio em você. Confio em suas decisões — sorriu acolhedora e fora correspondida.
Dos projetos de viagens incertas longe de Rye e sonhos um tanto impossíveis, ele se sentiu ansioso ao esconder o decisivo pedido feito pela sua avó.
Disfarçando seus pensamentos incessantes que o perturbavam, ele removeu os óculos na intenção de limpar as lentes na roupa de frio e focou nela, apesar de avistá-la embaçada, ao semelhante tempo que a jovem o admirou em segredo.
"Tão bela até em minha visão nublada".
Até aquele momento, a única iluminação do ambiente nasceu da alva e externa paisagem nevoenta, além do silêncio ensurdecedor que emanava.
Todavia, o barulho da brisa uivante rompeu o vazio e soprou na fresta esquecida da janela.
Sem perceber, Gaya se aproximou um pouco mais dele e fez seu coração disparar. Ele, naquele instante, se encontrava incomodado com os grãos de açúcar espalhados na blusa de gola alta, ao invés da presença dela. Aceitava a confiança depositada em Gaya.
Como de costume, suas luvas ficaram pegajosas em circunstância do suor nas mãos trêmulas e idealizou inúmeras situações com ela.
Gaya, por sua vez, também se via ansiosa, porém, muito além que o próprio amigo. Sua escassa respiração a constrangia e ele mal percebia. Os pés nas meias coçavam para se libertarem da peça quente, atormentados pela emoção que emergia.
Uma construção amistosa de anos tornou-se algo identificado conforme o princípio do que se diz o amor. Simples, inocente, fiel e verdadeiro. Franco não se manifestava como qualquer menino que Gaya tivesse cruzado na escola ou na vizinhança.
Representava ser o seu melhor amigo que sempre confiou, buscaria defendê-lo em todas as situações e mesmo que em algum dia se apaixonasse por outro alguém, certificava que Franco seguiria ao seu lado até o fim, como na conversa sobre estrelas cadentes e claraboia.
Franco para si transformou-se idêntico a um diamante. Valioso e frágil. O oposto.
Enquanto ao jovem, ela representava uma personificação celestial.
Tão divinal quanto um anjo, quase que inalcançável e devoto por inteiro à sua existência. E essa devoção o incentivou a acreditar que sem Gaya, tudo o que conseguia compreender como colorido, perdia-se caso houvesse um afastamento em qualquer ocasião de suas vidas.
Embora não dependesse de sua companhia, na hipótese de que algo catastrófico lhe ocorresse, toda sua fé trilharia em direção ao fim.
E com reflexões simbólicas para os dois, aos poucos, após Franco recolocar seus óculos junto à face, redirecionado a apreciar os mínimos detalhes de Gaya, aproximado, ele percebeu que ela agia da mesma maneira e desistiu em recuar contra o que a Demdike estava prestes a realizar.
Era perceptível ouvi-los compartilhar o similar hálito cálido que fluía de suas bocas.
No limite onde o ar se misturava no ambiente gélido da casa, eles se entreolharam, contudo, de um modo diferente.
Se encararam conforme curiosos que nem sequer haviam percebido o sentimento edificado durante os tempos e suas estações.
Os lábios de Franco mantiveram-se secos, entreabertos e se empenharam em recarregar o insuficiente oxigênio nos pulmões.
Gaya parecia inquieta, ausente de expressões e mergulhou suas mãos no sofá que cheirava à naftalina.
— Eu... — ele sussurrou nervoso.
— O quê, Franco? — reagiu da mesma maneira.
Umidificou os lábios com a língua, fixou seu olhar insondável de encontro à delicada boca do amigo, seus pequenos sinais e imaginou encostá-los como alguém em que nunca imaginaria aflorar determinada afeição.
E de repente, logo que um fio do cabelo de Franco caiu sobre os olhos, imobilizado na frente do ser divino, insistiu em permanecer no mesmo estado no momento em que a viu colocar a mecha por detrás de sua orelha.
Num choque visceral, uma energia inexplicável percorreu seu corpo e Franco notou com sutileza as pontas dos dedos — indicador e polegar — agarrar a sua mecha e se encostar na sua testa.
Consistia na segunda vez que Gaya se aproximava intimamente após o precedente abraço.
Ela não sentia a temperatura de sua pele só por intermédio de seu delicado toque, mas apreciou a maciez de uma pequena parte da madeixa acobreada do jovem Gregori que suspirou e desejou beijá-la.
Quanto mais ela se aconchegou a ele, o âmago do pobre vulnerável palpitou em ansiedade. E posterior a qualquer atitude, ela resolveu questioná-lo, preocupada com o que ele sentiria:
— Deseja que eu interrompa por aqui? Deve estar incom...
Ela sussurrou, se pôs um pouco distante do garoto que negou com a cabeça e acolheu suas ações.
— Não. Não diga mais nada. Estou controlando meu nervosismo referente a isso e confio que seja o primeiro passo para tudo.
Sorriu tímido, a interrompeu, baforou contra o rosto dela e fez perder a insegurança em tomar qualquer decisão.
— Eu ansiava por esse momento com você, Gaya. Não imagina o quanto. Só desconhecia como reagir.
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