Capítulo 18: Coração de Porcelana

*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, HUMILHAÇÃO, VIOLÊNCIA VERBAL E FANATISMO RELIGIOSO.

*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Mountain Sound - Of Monsters and Men e Mad World - Demi Lovato

Passaram-se dez e cansativos dias entre oficinas de cenografia, ensaios dos estudantes escolhidos para viverem os personagens — fazendo o Professor Cameron escolher outra aluna que merecia muito mais o papel da Esmeralda e substituir toda carga horária de Gaya e Dane —.

E ao chegar à quarta-feira, todas as turmas e responsáveis dos estudantes confirmaram presença naquele auditório já enfeitado e complementaram o palco fora a peça por inteiro.

Incluindo os telespectadores naquela experiência.

Embora permanecessem por trás das cortinas, a controlar os movimentos dos tecidos com o uso de cordas, Gaya e Dane se apresentaram bem-vestidos para aquela ocasião.

Principalmente a jovem num vestido banhado em vermelho, como de costume, além de cabelos presos para cima que evidenciaram suas orelhas tomadas por brincos em formato de borboletas douradas.

Logo que a viu chegar para se reunir com o restante dos alunos que participavam da equipe, seus olhos brilharam encantados, mas queria manter sua postura de "somente colegas de turma".

— Vo-você está encantadora — desconcertado, ele tomou as mãos de Gaya para segurá-las e seus olhos piscaram rápidos como de costume.

Se mostrou ansioso diante dela.

Há tempos que não recebia um elogio tão sincero de outra pessoa, em especial do garoto que períodos atrás ela detestava se aproximar. Contudo, pesava em sua consciência insistir para uni-lo com Olivia que ainda aguardava por respostas.

— Muito obrigada! E você se mostra incrível nessa camisa escura. Realçam seus olhos — notara as pupilas dele expandidas e se sentiu culpada.

— Castanhos-acinzentados — complementou. — Mas está falando a verdade? — ajeitou a gola e pôs as mãos nos bolsos da calça social da mesma cor. Nunca recebeu elogios feito o que ela entregara pessoalmente.

— Estou. E mais uma pessoa também acha o mesmo.

O surpreendeu ao apontar para Olivia que o observou de canto, bem distante, evidenciou um sorriso tímido e escondeu uma mecha por trás da orelha. Havia entrado para os bastidores bem antes dos dois.

— A Olivia? — ela confirmou calada. — Nunca imaginei.

— Enquanto uns lhe consideram impertinente, outros se derretem por você — sorriu de soslaio. — Dramaturgicamente — levou o peito da mão direita à testa e fingiu cair aos encantos.

Dane riu anasalado e revirou suas escleras.

— E então? O que faço agora, antes de começar a peça? — arrumou os fios do cabelo para trás, esfregou os olhos para ver se amenizava os tiques e lambeu os lábios, talvez preparado para um primeiro beijo.

Gaya não sabia como reagir, pois não era boa em unir pessoas.

— Eu realmente não sei o que lhe dizer. Sou péssima em questões do coração — riu desconcertada e ouvira Cameron alertar sobre a organização de cada posição nos bastidores, pois a peça estava prestes a começar. — Talvez um beijo de boa sorte? Claro, se ela quiser — deu de ombros.

De repente, a garota se assustou ao vê-lo se aproximar da sua face. Estava apavorada em testemunhá-lo fazer o oposto.

— Ei, eu! Espere aí, o que está fazendo? — tornou-se confusa quando o notou abrir a boca tão próximo de suas narinas.

— Estou com mau hálito? Estou cheiroso? Me fale, temos pouco tempo para iniciar a peça — agoniado, Dane perdeu total noção, se declarou ansioso e espremeu os olhos para se controlar. — Acho que preciso ligar para o Dr. Herman ou Dr. Ka...

— Se acalme, Dane — segurou as mãos dele por segundos e Olivia observava tudo com desconfiança. — Você está muito cheiroso, seu hálito está incrível, parece que mascou cem gomas de hortelã. Vai dar tudo certo, confie em mim — insistiu em manter distância dele para não causar má impressão à Olivia.

Antes do elenco se reunir por trás das cortinas, Gaya se dispôs preparada segurando a corda que correspondia ao seu lado esquerdo, feliz por testemunhar Dane se aproximar de Olivia e em poucos segundos beijarem rápido conforme uma "boa sorte".

O que a fez se imaginar receber o mesmo ato do melhor amigo que se mantinha longe e seguia estudos no internato.

Nunca poderiam cumprir determinada ação carinhosa.

— Ei, Dane! Psiu! — ele se encontrava na sua posição, preparado para cumprir as ordens do professor.

Tomando a atenção do amigo, Gaya notara pessoas esquisitas na plateia entre a mínima abertura do tecido de camurça.

Apesar de todos estarem sentados, o casal avistado demonstrava ser mais alto que os outros.

A bela dama de preto, junto aos cabelos lisos e escuros, julgava o barulho dos demais presentes unida ao seu esposo que aparentava ter saído de uma película de terror dos anos trinta.

Instigavam curiosidade e ela mal sabia o peso que eles carregavam.

— É miragem ou aquele casal de fato existe no público?

Curioso, o jovem caçou pelas pessoas que ela havia estranhado, enquanto a Demdike esfregava os olhos com as costas dos dedos e se esforçava para enxergar com nitidez.

— Me vejo encantada com tamanha beleza.

— Qual casal? Delirou? — confuso, caçou entre a multidão e aumentou as chances de serem possíveis espíritos.

— Não estou, não. Aquele casal totalmente de preto e a dama como se estivesse em luto. Estou encantada por nunca tê-la visto. Ou agora enxergo coisas de outro mundo?

Dane revirou as escleras enquanto mergulhava no riso, entre o barulho da plateia ansiosa pela entrada do elenco.

— Você costuma julgar a família dos seus amigos dessa maneira? — Gaya entendeu de imediato.

— É s-sua mãe? — sentiu-se envergonhada pela situação e gaguejou.

De repente foram tomados pelo susto aos avisos sobre o início da atração.

— Cinco minutos, hein?! — o professor os alertou e avisou aos demais presentes por trás das cortinas à medida que cutucava o relógio de pulso — Cinco minutos, Demdike e Dawson. Qualquer atitude que saia do planejado, não receberão pontos.

— Professor Cameron é muito brincalhão, Dane — gargalhou em direção ao amigo e não temeu o educador que a mirou torto, prestes a contorcer o pescoço da garota. — Às vezes ele se esquece que a diretora... — em raios, a interromperam.

— Pontos mantidos — resmungou e deixou rastros do seu vulto que esvaiu ligeiro como vento.

O cenário estava pronto no palco, havia muito barulho dos convidados distribuídos nas poltronas, ansiosos para apreciarem a peça que se encontrava prestes a ganhar vida por intermédio dos alunos.

Além de terem contratado um pianista, violinista e demais instrumentistas para seguirem com a trilha sonora, o ambiente se estruturava com a iluminação fria e esverdeada, em sintonia com a atmosfera que buscavam retratar.

Assim, deram início a "Nossa Senhora de Paris", adaptada de Victor Hugo.

Havia mais uma cortina escura por trás das evidentes, ocultando os bastidores.

Porém, nos cantos, Gaya e Dane ficaram encarregados de manipular o tecido para possibilitar a entrada do anfitrião. O próprio Professor Cameron.

Ao decorrer da apresentação, ambos continham as risadas, imitavam as falas que já conheciam, reviravam os olhos quando o personagem Claude Frollo tomava sua parte a recitar absurdos, o que despertava memórias em Gaya com relação à avó de Franco.

Bem próximo do fim, quando haviam se passado horas e eles já não suportavam o abafado odor de tecido velho daquelas cortinas, Dane considerou cumprir algo que melhoraria o humor deles, principalmente sabendo que Gaya detestava passar despercebida em qualquer canto.

No fundo, ela desejava ser notada de alguma maneira. Afinal, se tornou responsável por fazer o Professor Cameron acrescentar oitenta pontos para todos nos bastidores.

Na elevação do salve de palmas, quase semelhante à chuva forte despencando dos céus e assobios de todas as partes, o elenco que se reunia por trás da cortina voltou a aparecer com a abertura dos tecidos de veludo, caminharam para frente, e agradeceram tamanho carinho e atenção que fora concedido por quem apreciou a peça teatral.

Então, aproveitando que as cordas foram presas num gancho da parede e notando Gaya desanimada, além de exausta pelo peso exercido em horas, Dane correu em direção a ela — usufruiu da ovação e atores que se emocionaram em admiração pela plateia inteiramente de pé —, a puxou pela mão, guiou entre o elenco e irritou o Professor Cameron:

— Não acredito que fez isso, Dane — sibilou próximo ao ouvido de seu amigo, desconcertada por avistar a imensidão de pessoas no anfiteatro.

— Aproveite os primeiros momentos de fama, Gaya Demdike — seu braço a juntou consigo. — Fizemos parte disso.

Sorridente e sem se importar com os olhos cansados de tanto piscar e ombros que saltavam involuntários, Dante entregou um mero beijo na bochecha da jovem que derramou lágrimas ao perceber que os demais no elenco se espremiam neles e os juntaram naquele momento.

Ela sentiu que não poderia desistir dos palcos. Havia nascido para conquistá-lo.

Vinte e nove de março.

Era domingo ensolarado com a migração prematura das belas andorinhas que partiam das áreas verdejantes de Rye até Dover — cidade localizada no Sudeste da Inglaterra — e mesmo assim, Gaya Demdike despertou apavorada após um pesadelo.

A Demike se avistou disposta a impedir que seu inesquecível amigo despencasse de um penhasco ocultado por uma névoa constante, que igualmente inviabilizava o agitado mar a chocar contra as rochas.

No instante em que ela ofereceu sua própria mão na intenção de que ele a agarrasse, Franco, sem piscar seus marcantes olhos azuis que no momento se encontravam opacos, despencou do alto penhasco e se alinhou ao vazio da dor.

Despertando-a.

Anestesiada, desconhecia o que aquilo significava. Muitas vezes sua avó dizia que sonhos ou pesadelos nem sempre simbolizavam que algo poderia de fato acontecer. Em boa parte, um provável medo oculto, a insegurança em perdê-lo efetivamente. Embora nunca ocorresse.

Ao pôr os pés no carpete quente, tranquilizando a mente, encarou seu reflexo no espelho e presenciou a mudança de aparência após anos. Não se tratava da mesma menina de antes.

— Você cresceu como uma oliveira, hein? — tocou o indicador no espelho e contornou a mandíbula. — Enquanto ele... — o olhar tornou-se perdido entre o reflexo e alcançou o piso. — Ele deve estar melhor que as antigas árvores mortas. Assim espero.

Tudo era muito infantil anos antes. Não existia o sentimento de pensar em alguém e sentir borboletas no estômago. Eram somente brincadeiras, birras, sapatilhas e canções da terra.

Gaya cresceu tão rápido que mal percebeu as canções da terra se transformarem em canções de mágoas e saudades de um amor não correspondido.

Desconhecia se ele ainda persistia frágil, infantil ou amadurecido.

A desfrutar dos seus resquícios de vida.

Contudo, ela sentia que as atuais canções estavam incompletas. Alguns trechos só poderiam ser completados caso o visse mais uma vez.

No mesmo dia, logo que desceu a escada, Gaya se deparou com a anciã que cantarolava aquela mesma canção familiar indo em direção ao jardim para mais um dia de plantio.

O ambiente simbolizava um lar dentro de uma casa e a jovem sentia que precisava de conselhos ou tirar conversas guardadas.

Enquanto Anika enchia o regador com a água da torneira próxima da janela da cozinha, Gaya vestiu sua jardineira, botas amarelas de borracha e seguiu para próximo de sua matriarca. Logo que se aproximou dos lírios, ela se incomodou devido ao barulho delas, oposto às demais vezes sendo amavelmente recebida.

Desconfortável, a garota cobriu as orelhas e esforçou-se para evitar o zunido como uma terminante frequência capaz de ensurdecer. Significava que as flores se aborreceram com algo.

— Por que age assim, Sol? O que falam? — Anika fechou a manopla da torneira e preencheu o regador até o último nível.

Expressando confusão, jamais vira a sua neta naquela situação, mas estava curiosa, predisposta a saber o motivo dos lírios reclamarem.

— Não sei ao certo. É semelhante a um zumbido irritante, como o barulho da turbina de um avião — permanecia com as mãos vedando as orelhas, aumentou o tom de voz, fez Anika gargalhar, o que deixou Gaya chateada. — Do que ri, vovó? — se intrigou.

— Não importa, querida. Venha. Hoje plantaremos alecrins, tudo bem? — Gaya desentendeu, mas aos poucos o zunido diminuiu, quando Anika fechou os olhos e conversou com o vento. — Mãe, lhe atenderemos. Sem desapontamentos e incertezas, nossa aprendiz se libertará das próprias inseguranças. Compreendo, enfim, a partir dos lírios e estou ciente sobre o que devo fazer.

Os olhos cansados de Anika se abriram em meio às rugas e ela sorriu no sentido da neta que ansiava por uma replicação.

— E então, vovó? O que a Mãe Terra quis dizer?

Anika caminhou até uma das mesinhas de madeira postas na lateral do cedro, apanhou um saquinho com grãos de alecrim, retornou também na companhia de uma pá menor e buscou com os olhos por espaço no solo para semear.

— Vovó? Pode me explicar sobre o que ela lhe falou? Está me deixando nervosa — esfregou uma mão suada na outra, o interior de Gaya esfriou de tanta ansiedade por aguardar pela decifração.

— Foi um pesadelo, querida? O da noite anterior?

— Ah, pesadelo! — ainda organizava a cabeça para responder de maneira ideal. — Sim, vovó. Mas como sabe disso? Em nenhum momento o mencionei — coçou a cabeça, confusa.

— Lírios se irritam por tudo e não sabem falar direito. Sempre agem assim. Por isso que plantaremos alecrins. Essas flores mimadas — por fim, resmungou.

Sem dificuldades, Anika se ajoelhou no chão, o limite entre terra e grama, e rejeitou apoio da neta.

Começou a cavar numa área vazia no meio das alfazemas que se aproximavam de brotar e jogou poucas sementes de alecrim.

Seguindo do solo, a anciã uniformizou com a pá e continuou a explicar o motivo em plantar a erva e a manifestação dos lírios para a neta.

— Os alecrins são apropriados em afastar os pesadelos que interfiram na sua jornada como bruxa. Manter nossa ligação, compreende? — a jovem concordou. — Não que você seja obrigada a se tornar uma curandeira ou manter nossos costumes, entretanto, é importante fortalecer seu contato com a natura e dela iremos adquirir vitalidade e alegria. Além de ser uma dádiva de séculos pela nossa família. Por isso, entende o porquê de sua avozinha aqui nunca ter adoecido?

— Só entendo agora.

Gaya agachou e acompanhou o cultivo dos alecrins com bastante atenção. Seus ouvidos mantinham-se conectados aos ensinamentos de sua estimada avó.

— Sempre prossegui ao lado da Mãe Terra. As antigas civilizações a todo momento andaram conectadas com a natureza, em conexão espiritual. Não me recordo de nomes, pois a mente está fraca, porém, aprendi que se formos fiéis e respeitáveis com a fauna e flora, seremos presenteados com vida longa e próspera. Infelizmente nem todos pensam assim. — Contudo, como boas Demdike, fazemos a nossa parte. Daqui até o fim.

Ao terminar de enterrar as sementes, Anika olhou na direção dos lírios que se depararam calmos e respirou fundo.

Observando a neta, ela pôs sua enrugada mão direita acima do ombro dela e evidenciou compaixão.

— E os lírios devem pensar que seu pesadelo sumirá com um pouco de perdão. Se em qualquer ocasião remoeu alguma situação durante anos, minha amável Sol, sabe bem o que deverá ser feito. Os lírios se chateiam fácil, porém são sábios.

— Considera certo ser pacífica, vovó? Mesmo depois de tudo o que passamos?

— Sentimentos ruins corrompem nosso corpo e alma. Ouça sua voz interior e da nossa Mãe.

— Sendo assim, creio que alguma coisa pode melhorar.

As palavras sábias de Anika serviram conforme um impulso para a garota abençoada pela Mãe Terra sanar suas dúvidas e tentar entrar em paz com quem habitualmente inspirou a guerra.

Acreditando que obteria ademais uma resposta referente ao menino que conviveu perpetuamente em suas memórias, talvez tentar uma reconciliação em nome de sua família, Gaya deixou Anika continuar o plantio, aproveitou a ausência das mães que se encontravam no trabalho e pôs uma roupa aceitável, apta a seguir até a residência dos Gregori.

Ao fechar a porta da casa de maneira silenciosa, ela caminhou calma pelo chão de seixos e sentiu as pedras pelo interior da graciosa sapatilha vermelha cintilante, em meio a quietude da rua.

Contudo, cada passo era interminável e aniquilante.

Pondo-se bem na frente da porta dos Gregori, ela pressionou a campainha e aguardou por poucos minutos.

Jurou também ter visto alguém por dentro da residência que espichou através da cortina da sala e desapareceu conforme um fantasma.

A espera de minutos pareceu ser longa quando se aguardava para tentar uma possível reconciliação.

Porém, de repentino, logo que tudo se esfriou, Gaya escutou a maçaneta da porta se mexer, seu coração bateu inúmeras vezes e a incentivou a acreditar que escaparia por intermédio de sua boca.

Talvez se referisse ao Franco.

Fez bastante tempo que jamais o via e seria o momento ideal para vê-lo e obter conhecimento se continuou sendo o mesmo garoto que lhe visitou após fugir do internato:

— O que você faz aqui?!

Se decepcionou ao presenciar aquela mesma mulher, agora com os fios prateados entre os ruivos. Moniese envelheceu assustadoramente, como se algo lhe sugasse.

Fisicamente destruída, ela pôs as duas mãos na cintura e aguardou pela resposta de Gaya.

A jovem, por sua vez, se empenhou em respirar fundo, junto ao nó gerado em sua garganta e a respiração tornou-se enfraquecida.

— Sra. Gregori, compareci a-aqui... — Gaya gaguejou, Moniese entortou os lábios, estreitou seu olhar na direção da Demdike e lhe causou insegurança.

Gaya nunca se sentira assim, tão vulnerável na presença da Gregori.

— Disposta a resolver as desavenças referente às nossas famílias. De início, quero lhe pedir desculpas por aceitar o Franco em meu lar naquele dia e...

— Calma lá, garota — a interrompeu e deixou a menina boquiaberta para prosseguir com suas falas. — Recuso qualquer lamentação vinda de você. Até porque se nos pedissem perdão, poderiam começar pela remoção dessa detestável maldição que caiu por cima de toda a minha linhagem.

Sua voz arranhada e fraca tentou ao máximo transmitir superioridade acima de Gaya.

— E como possuo a certeza de que em tempo algum avistou o meu neto e considero apropriado que seja assim, veio até o meu espaço na intenção de encontrá-lo e se deparou comigo — riu e debochou da Demdike. — Então, passar bem. Caso venha até mim de novo, que seja para dizer que a maldição cessou. Nada, além disso.

A imobilizando, Moniese virou de costas para ela, na finalidade de trancar a porta. Entretanto, fora impedida pela mão de Gaya, que paralisou a ação.

Entre o olhar furioso contra ela, a Gregori notou a delicada mão da bruxa e a retirou com agressividade. Contudo, desejava esmagar os dedos da garota sem piedade.

— O que pensa que está fazendo, sua maldita bruxa?! Pousando essas mãos imundas num local sagrado! — esbravejou, preparada para destilar o seu veneno. — Saia logo daqui!

— Se fosse sagrado, aquelas flores e suas folhas não estariam murchas semelhantes à sua alma podre, Sra. Gregori. Vim em busca de "assinar um tratado de paz" entre nossos familiares, situação que minhas mães e minha avó nunca conseguiram por sua culpa. Tomei coragem para encarar essa sua face aterrorizante, suportei os seus xingamentos até findar o meu limite e não acredita que poderíamos determinar uma trégua nessa relação conturbada? Mas jogar sujo comigo ao retirar minha mão de sua porta de forma agressiva, eu poderia lhe denunciar por isso.

— Denunciar? — Moniese gargalhou como deboche e a desafiou.

— Sim! Com toda certeza farei!

— Como me denunciaria se não possui nenhum poder para fazer tal coisa, sua bruxa asquerosa? Não és nada diante de mim.

Encheu as bochechas com mais insultos.

— E agora que amadureceu, posso fazer o que eu bem entender! Não será a polícia, juiz, seja qual for a escória que exista, que me punirá. E nem uma maldição! Só o Altíssimo, maldita Demdike! Exclusivamente Ele!

Apontou os dois dedos indicadores para os céus e prosseguiu com suas ofensas.

— E nunca tocará no meu neto e nem irá revê-lo comigo ainda aqui. Esse sempre foi o seu objetivo e eu farei o máximo no intuito de destruí-lo.

O clima tenso preparado pela mulher, contaminou a alma bondosa da menina.

— Referente a minha alma, se ela está podre, é porque vocês, servas de Satanás, me enfraqueceram e sugaram toda a minha juventude — junto aos seus quase sessenta anos, ela omitia deter essa idade.

Não é possível que estou escutando isso... — murmurou baixinho.

Desgastada ao tentar iniciar qualquer diálogo decente, ela se estressou ainda mais quando Moniese de repente cuspiu em sua sapatilha. Um ato repugnante e frequente pela última descendente dos Gregori.

Gaya observou ausente de reações o seu par de calçados, voltou seu olhar inexpressivo a ela, que exibia um sorriso amarelo e escuro para a Demdike, recarregou as emoções trancafiadas por muito tempo em seu interior e estufou o peito:

— Recorda da decisiva coisa que o seu neto lhe confessou na frente de todos os vizinhos que observavam, Moniese? — ela naquele instante se igualava à Moniese, referindo-a pelo seu próprio nome e desarmou a senhora. — Lembra, não é? O quanto aquilo lhe machucou profundamente e dava para te sentir exalar medo e decepção.

— Não sei do que está falando, sua vag...

A Gregori começou a estremecer, seus olhos se arregalaram e foi possível notar na escuridão de suas pupilas que ao menos dessa vez uma lágrima escorreu pelo seu rosto.

— Mas fora aquilo, sem dúvidas, o Franco queria expressar além das iniciais verdades. Não expôs, visto que jamais possuiu coragem, pois desejava se distanciar de você. Tanto que no presente não se situa sozinha só porque ele foi obrigado, e sim por ele almejar em se afastar da avó que constantemente o tratou com desprezo, inferioridade e nojo após traumáticos anos. Apenas o recolheu em sua vida a fim de acompanhar diante de seu olhar vazio, se em algum momento o Franco sucumbiria devido ao infortúnio. Você crê, no fundo, que também passou a ser amaldiçoada, no entanto, a sua condenação, Moniese Gregori, é testemunhar as pessoas que alega amar, morrerem em sua presença. Na prática, unicamente pensa em você e se agrada à medida que fazem o que determina.

Cale sua boca — murmurou sem mexer tanto os lábios.

Moniese se conservava com a referida expressão, petrificada pelas declarações de Gaya, a bruxa que ela frequentemente detestou. Numa fração de segundos, jurou se vingar dela. Apenas restava idealizar um plano para cessar a vida da Demdike.

— E tudo o que lhe rodeia emana a mesma energia da morte. Espero com imensa vontade que o Franco não permaneça afetado por isso, porém, em relação a você, Sra. Gregori, eu tenho certeza. Nem o mais experiente padre poderia lhe libertar desse espírito impuro, porque de certa forma já nasceu assim, cresceu assim e morrerá assim. Infelizmente, nem Deus poderá mudá-la. Desejaria por imenso que nossas famílias se acertassem, pois, esse tremendo ódio por nós se iguala a uma dívida histórica a ser paga. Entretanto, como prefere dever, nunca conquistará sossego. Por isso, só peço que, logo que partir, as flores que jogarem em seu túmulo não murchem. A natureza não detém a culpa pelo que se tornou.

Suas irrevogáveis palavras serviram conforme uma sentença final acima da avó de Franco.

De súbito, surgiu uma resistente ventania, o céu prevaleceu azul e Moniese sentiu um grande calor emergir em seu corpo. Seu coração principiou a bater acelerado e ela chegou a pensar que estaria prestes a estourar por dentro.

Uma forte e fina dor no peito tomou conta da Gregori e arrebatou a inteira atenção de Gaya.

Seu olhar enfraqueceu aliado à expressão sofrida e fez a garota vê-la revirar as escleras quando inesperadamente se desesperou ao presenciá-la cair desacordada no chão.

Aparentemente frágil, como uma porcelana.

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