Capítulo 12: Memórias de Campo-Santo

*ALERTA DE GATILHOS: AFOGAMENTO, SÍNDROME DO PÂNICO, ANSIEDADE, LUTO, MORTE.

*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: To Build A Home - The Cinematic Orchestra, Patrick Watson e Bohemian Rhapsody - Remastered 2011 - Queen

— Se afaste... — ingeriu mais água e suas bochechas inflaram perto de estourarem, embora ele insistisse em cuspir para fora, de modo a esvaziar e recuperar oxigênio — ... Franco! — seus lábios se tornaram um pouco arroxeados pela temperatura após a despedida do sol. — Busque ajuda, agora!

A boca fora preenchida mais ainda com o balançar do rio, enquanto tentava desprender-se de uma planta enroscando com as batidas de seus pés.

Ao enrolar mais em sua perna, a visão embaçou entre o ambiente externo e a escuridão das águas que antes eram lúcidas.

O garoto tomou uma iniciativa involuntária naquele momento tão traumático. Não refletia se salvaria o seu próprio pai. Jamais compreenderia o que aconteceria dali para frente.

Em sua cabeça, apenas implorou aos céus que o Criador desistisse de carregar o seu maior companheiro até os braços da morte.

Inaceitável.

Junto às mãos trêmulas, como se perdesse todos os movimentos, retirando apressado as luvas que demoravam a soltar, elas se encontraram naquele instante em exposição, na qual a esquerda exibia a superficial cicatriz, uma dolorosa marca física e sentimental.

Ele ofereceu a mão cicatrizada ao pai, clamou no delimitado tempo para que o Sr. Callahan a agarrasse e o observou se debater pela vida.

O coração do filho palpitou numa arritmia cardíaca incontrolável, capaz de lhe provocar sérios problemas. O olhar lacrimejante vociferou em agonia, os lábios depararam-se secos e seu estômago embrulhou prestes a colocar toda a comida para fora.

Franco torceu em se manter resistente na exata ocasião em que seu pai carecia de ajuda.

— Pai, pelo amor de Deus, agarre minha mão! Pai... — seus olhos azuis arregalaram em pavor e se desvencilharam de si. — NÃO POSSO LHE PERDER, POR FAVOR! — os gritos do menino ecoaram e assustaram as aves apoiadas nos galhos das árvores.

Era assustador e melancólico. Porém, alguns moradores saíram das pequenas casas na intenção de se informar sobre o que ocorria.

Assim como na sóbria pintura de "Narciso", porém muito mais trágica e desesperadora, o olhar cansado de Franco confundiu-se entre seu respectivo reflexo ondulado.

Ele havia caído em espaço e tempo, no vazio, na escuridão da ocasião, imobilizado, amedrontado pela sua imagem espelhada nas movimentadas águas, invisibilizando a terrível cena de seu pai a sucumbir enquanto as últimas e pequenas bolhas emergiram consoante a uma partida.

Qualquer pessoa poderia jurar que o menino se despediu friamente do Sr. Callahan. Entretanto, mantinha-se hipnotizado. Conforme uma aceitação da morte, mas não se referia a isso.

Ao sair do transe imersivo, aprisionado em seu próprio físico, o garoto derramou pesadas lágrimas ácidas capazes de perfurar o mais impenetrável ser.

E dessa forma, ao permanecer sem se levantar das margens preenchidas pelo então relvado frio, desaparecia a imagem de seu pai arrastado pela correnteza.

A planta desenroscou de seu corpo, o fez sumir na escuridão turva do rio e suas mãos ainda persistiram despidas, oferecidas à figura paterna que não se encontrava mais por ali.

Imóvel, ele ainda tremia e evidenciava espasmos.

Desconhecia o que fazer.

Uma parte da sua vida havia cessado naquele ambiente. Seus olhos se imobilizaram até o sistema nervoso corresponder com apenas um deles, na qual a pálpebra estremeceu, além das minúsculas veias vermelhas que surgiram quando o olho direito principiou a secar. Sua boca encontrava-se aberta, abalado pelo destino de seu grande amigo.

Franco sangrou por dentro.

Logo que fora sobressaltado por algumas pessoas que o questionaram sobre o que ocorrera antes, seria possível ainda avistar bem distante o corpo dele boiando e deslocado em direção ao Rio Brede, até compreenderem que aquele menino havia corrompido todo o seu chão.

Para Franco, as estrelas despencaram do céu como no livro de Apocalipse, as nuvens sumiram apagadas pela tristeza, inexistia o perfume das folhas trazidas ao retornar à casa, o sabor adocicado da maçã, o encostar no ombro semelhante ao sinônimo de apoio...

Testemunhara seu fim de mundo.

Desse modo, habitava um vazio. Nem mesmo existia a partir daquele dia a sobremesa favorita que somente o seu pai conseguia fazer.

"Como existir sem ti, meu pai? Como?"

Nunca realizariam as viagens ao som de Queen, no fusca preto de 1972, com as janelas de vidro abertas num certo limite ao decorrer da melodia reconhecível e afável das notas iniciais de um piano. Uma das frestas acompanhada de seus braços dançantes, feito ondas, balançando na parte e no ritmo mais agitado de "Bohemian Rhapsody", enquanto o seu pai sorria utilizando óculos no estilo Ray-Ban de lentes verdes — no modelo aviador —, como o Sr. Callahan se idealizava durante os sonhos arruinados pelo rio.

Nada tão doloroso que perder de repente, sem nenhuma preparação, a pessoa que se ama.

Como viveria agora? Era o seu pai bem ali, carregado pelas águas, sem ao menos descansar a sua cabeça no travesseiro após um nostálgico: "Boa noite, filho. Nos veremos amanhã".

E o amanhã jamais regressaria.

Foi então sustentado pelos braços por dois senhores de idade, devido à ausência da força que o estremecia, tendo suas mãos a permanecerem molhadas que Franco manteve sua visão ainda inerte.

Não conseguia sentir o toque das pessoas. Se manteve anestesiado por inteiro, por culpa da perda. Sua mente sustentou os resquícios da aproximação com seu pai.

Seu corpo não estava ali e sua consciência cravou uma lápide.

Sucedia no dia do aniversário do pai e a data tornou-se um desmedido luto.

Soluçou sem provocar barulhos, engoliu as lágrimas, o excesso de saliva, à medida que um dos homens ligava para a ambulância no intuito de buscar assistência pelo que acabara de acontecer.

Com o Sr. Callahan, havia perdido um grande fragmento de seu espírito. Uma parcela da sua razão para viver. O Gregori encontrava-se morto em vida, apesar de ser tão jovem.

Por alguns instantes, o menino observou o piquenique até então no relvado, junto ao seu olhar deprimido, num brilho desorientado entre o escuro proporcionado através da dor.

Porém, suas escleras se moveram bem no instante em que as luzes da ambulância refletiram em seu rosto destruído e o sonido quase atordoante da sirene fez a sua mente girar, esforçando-se a evitar um provável desmaio.

Pois, insistia em presenciar pela última vez o corpo do pai.

Ele despertou seus sentidos quando assistiu aos maqueiros deslocar o corpo do Sr. Callahan que agora deparava-se ocultado por um extenso plástico opaco e cinza, após o recolherem das águas.

Permanecia sendo o seu querido pai naquela maca, por dentro da coberta oposta ao lençol de linho que ele costumava usar durante as noites de sono.

O filho desejou avistar os socorristas o reanimar e fazê-lo acreditar que tudo se passou de um susto. Mas a realidade era pesada e dolorosa.

Após guardarem o cadáver no veículo, aproximaram-se cautelosos do menino e fizeram breves e comedidas perguntas de modo a obterem informações. O carro de seu pai perdurava no local, continha todas as documentações e auxiliou no processo.

E ao obter conhecimento de onde o garoto residia ao se atentar na conversa, um dos moradores na presença da esposa se ofereceu para deixá-lo em casa, temendo que retornasse solitário.

Logo assim, o menino conduzia em suas mãos a cesta com comidas já frias, apoiou no colo ao adentrar o carro dos estranhos e se manteve em silêncio ao decorrer do percurso.

Apenas tocou a testa na janela de vidro e escapou dos olhares preocupados do homem pelo retrovisor.

Fora tudo o que sobrou.

Regressando ao lar, Franco entrou pela porta, permitiu cair a cesta no piso, acompanhado de seus joelhos chocados no chão, desabou em mais lágrimas que molharam a madeira, onde formou pequenas e transparentes poças que significaram muito para si.

Lavava a alma da dor e saudade, ajoelhado e padecido em posição misericordiosa. Refletiu que talvez tivesse sido melhor partir no lugar de seu pai.

Havia saído de casa na companhia de seu primeiro amigo e retornado sem a existência dele. Um imersivo vazio, um buraco em seu vigor. Penoso ao adolescente tomado pelos medos.

Ainda naquela exata noite, a notícia referente a morte do Sr. Callahan se propagou por toda a Rye, despertou os curiosos insensíveis e reaqueceu a maldição lançada pelas Demdike.

Tendo consciência da lamentável informação, Franco manifestou-se outra vez recolhido na residência das curandeiras que forneceram apoio ao jovem na mesma noite, enquanto Moniese situava-se prestes a deixar o hospital e voltar para sua residência nos próximos dias.

Segurando as luvas em suas mãos, ainda impedia o contato próximo após a situação experienciada. Seu olhar espelhava o desgosto.

E mesmo após receber o apoio, inseguro, proibia que qualquer pessoa lhe tocasse. A imagem de seu pai se afogando torturava como parte da sua rotina.

De segundo a segundo, Franco se martirizava em decorrência da cena. Embora desejasse esquecer, seu cérebro correspondia em contraposição e era compreensível.

Aquele momento fez com que a Gaya amparasse o amigo.

Às vezes ela se ausentava das aulas e oficinas de teatro para lhe fazer companhia, enquanto a Moniese se mantinha distante, organizando suas malas para retornar ao lar.

Foi também o período na qual o garoto desabafou doloroso em seu diário e exaltou arrependimento por não salvar o pai.

Rasgava algumas páginas, as amassava frustrado com suas mãos como uma forma de descontar sua tristeza e desabava em melancolia assim que encarava as folhas secas.

Devido ao regresso de Moniese à Rye, que coincidia de fato a uma pacata cidade, o semelhante temor que Franco suportava se reaproximou, porém, surpreendendo a todos, ela reprimiu seu passado perverso num semblante angelical, em oposição aos anos anteriores.

A mulher, condizente à faixa dos cinquenta anos, alegava querer entregar empatia ao neto, mas também separar seu cotidiano em prol do luto. Como usar trajes escuros por toda a semana, sem exceção; trancar-se no quarto, acender uma vela todos os dias na finalidade de suplicar em oração pela alma de seu falecido filho, implorando à Santa Maria que intercedesse durante a caminhada ao céu.

Demonstrava ser uma nova criatura, quase banhada por água benta e coberta por orações poderosas. Mostrava-se por fim concedendo um bom tratamento ao seu respectivo neto, ao similar instante em que levantava dúvidas sobre sua verdadeira índole.

No dia vinte e cinco do mês de abril, numa sexta-feira trovejante, Franco Gregori Callahan I, reputado como Sr. Callahan, pai, artista, um filho que nunca recebera o amor genuíno de sua mãe, partiu numa cerimônia solitária aos seus poucos familiares e membros da igreja que o sustentava no seminário: um caridoso bispo, dois padres esguios e carrancudos da capital, sua mãe Moniese Gregori e seu único filho, Franco Gregori Callahan II.

Nem sequer Guillerma esteve presente, sendo impedida de aproximações. Contudo, distante, a jovem mulher não suportava a notícia e sofreu por descobrir que seu ex-marido havia falecido.

Ainda construía muito amor pelo Sr. Callahan. Fruto de todo o passado com ele.

O padre católico responsável pela ocasião celebrou o rito fúnebre, enquanto a mãe do falecido choramingou sob o véu escuro e transparente, fora o guarda-chuva da similar cor numa falsa tristeza, conforme uma atuação teatral.

Diferente do garoto que prevaleceu em silêncio, sem derramar suas sinceras lágrimas, suportando a dor que carregaria por toda a eternidade, contido num terno escuro molhado pela chuva.

Do céu acinzentado, Deus visualizava um ponto ruivo entre guarda-chuvas pretos envolvendo a cova que abraçou o caixão.

A chuva o banhou de todo sofrimento. O céu chorou com o Gregori e o compreendeu.

Durante o derramamento das flores brancas sobre o caixão blindado do pescoço para baixo, Franco observou a face pálida e azulada de seu pai, como se repousasse nas nuvens, mas o restante do seu corpo se deparava inchado.

Por um segundo ele jurou ter avistado a sua jovial face espelhada no cadáver, porém, espremeu os olhos em pavor até retomar ao rosto real de seu pai. Não havia como acordá-lo feito em seu aniversário.

Adormecia para sempre.

A atmosfera do Cemitério de Rye, sem dúvidas, formou os resquícios do período da praga, além do clima frio e tristonho daquela sexta-feira.

Logo que a terra foi lançada na cova, o menino sentiu-se desconfortável, sufocado, fazendo-o desatar o nó mal feito da gravata e lançá-la na grama do local:

— Eu não preciso disso! Eu... — seu olhar passeou pela terra que escondeu o rosto do pai e desistiu de completar suas palavras. — Só aprendi a amarrar esta merda porque ele me ensinou!

Esbravejou e assustou o padre, os poucos membros católicos e sua avó que entortou os lábios.

— Ele me prometeu que ensinaria o nó borboleta! ELE NÃO ACORDA MAIS! — berrou, agarrou os cabelos e suas lentes embaçaram com a neblina, além de estarem molhadas. — Me enterrem com ele! Vamos lá! Me enterrem!

O padre se aproximou de Moniese, explicou que a cerimônia precisava encerrar e o bispo se mostrou como o único preocupado com o garoto.

O que está fazendo, Franco? Se recomponha — a avó resmungou, sibilou e mirou seu neto de soslaio.

— Encerre a cerimônia, Padre Milo. É demais para o garoto — o bispo interviu e se importou com o jovem desesperado.

— ELE NÃO ACORDA MAIS! Ele não... — sua voz falhou.

Para a surpresa de sua avó e dos demais, Franco fugiu em prantos da cerimônia, direcionado à casa das Demdike — sem ao menos pedir a permissão.

Enquanto a chuva caía se enfraquecendo após se apartar do cemitério, seus pés esforçaram-se exaustos de modo a correr até o lugar em que desejava chegar, prestes a formar calos em seus calcanhares e sua face tristonha evidenciava sua profunda dor.

Comparecendo esbaforido, suado por dentro, externamente molhado da cabeça aos pés, em busca da amiga ao ser recebido pelas Demdike, no instante que a viu descer através da escada, pisando com cautela em cada degrau, a primeira coisa na qual pensou fora em receber um abraço. Seria necessário o amparo com enlace.

— Franco, eu sinto tanto... — vestida numa jardineira vermelha e pantufas, Gaya perdeu o ar ao notar o desespero em seu amigo.

Doeu em todas vê-lo contorcer a expressão ao permitir o choro.

Transformou-se num momento ideal para sentir o apoio mais intrínseco das pessoas que confiava. Mas infelizmente, ainda inseguro, decidiu somente externalizar o que reprimia.

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