Capítulo 11: Lástimas no Relvado
*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, AFEFOBIA, AQUOFOBIA, TALASSOFOBIA, SANGUE E MENSTRUAÇÃO.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Je te laisserai des mots - Patrick Watson e Absent Minded Solo - Gabríel Ólafs
Quatro anos se passaram após o inesquecível Natal junto às Demdike.
Na tumultuosa e almejada Londres, Moniese permaneceu afastada do mundo externo, em perfeito convívio com outros pacientes na reabilitação. Otimamente atendida, cumpria os horários de refeição, organização para dormir, atividades ao ar livre, além do tratamento psicológico intensivo.
Transmitia calma, lucidez ao tratar os residentes com simpatia, em especial os médicos. Se oferecia para auxiliar na organização dos quartos e aquela não aparentava ser a mesma Moniese de sempre. Tudo saía bem.
Uma nova criatura.
Em Rye, o ambiente transformou-se num sossego, como se um vendaval tivesse limpado toda a sensação ruim existente por lá. A ausência da velha Gregori — que nem era tão velha assim com seus cinquenta e três anos — oferecia uma mansidão à localidade.
Ocasionalmente, os únicos indivíduos que se preocupavam com o paradeiro da nobre matriarca, prevaleciam sendo as frequentadoras da Igreja de Santo Antônio, o sacerdote da congregação e suas vizinhas bisbilhoteiras. Mas naquela ocasião, ela demonstrava estar saudável, amável, consciente e arrependida de suas atitudes passadas.
Naquele período, com seus onze anos, Franco conservou sua amizade na companhia de Gaya. O laço encontrava-se intacto e fortalecido num nó que dificilmente desataria.
Ambos também portavam as mesmas idades, tomados pelas suas puberdades afloradas, rebeldia e questionamentos ao crescer.
Foi devido à sua respectiva idade, que Gaya, assustada e jurando morrer — entre os choros pela casa —, experienciou sua primeira menstruação, um ciclo profundo, significativo, marcante, sagrado e intrínseco às bruxas.
O despertar da vida, a ligação com a lua, descartava sua censura imposta pelos religiosos. O primeiro passo para a transformação de seu compromisso com a Mãe Terra.
Por um momento considerou sofrer uma hemorragia por culpa dos "estresses ocasionados pelas avaliações do colégio", até ser elucidada pelas mães e avó durante uma longa conversa bem-humorada sobre o que viria pela frente após o ocorrido e a importância do acontecimento para todas.
Quando uma Demdike atinge uma determinada fase de sua existência que lhe permitirá apartar-se de seu lar, do convívio mais próximo à natureza, onde seus pés jamais tocarão o mesmo chão na qual tenha pisado ainda criança — trilhando ao encontro do mundo —, é preparado um ritual que conecta o corpo das escolhidas com a natura, idêntico a um pacto eterno.
A Mãe Terra oferece plena e infindável vitalidade, até que suas proclamadas mulheres fortaleçam o vínculo natural.
O sangue, segundo impuro numa sociedade fundamentada mediante ao cristianismo, é venerado pelas Demdike. Desse modo, é cultuado o "Plantar a Lua".
Logo que a garota compreendeu sobre o que se tratava, apesar dos incômodos que os períodos concederiam, fortaleceu em seu ser a convicção que havia sido escolhida por intermédio do universo.
De certo modo, dominados pela juventude, eram adolescentes entusiasmados pela liberdade na rua, em companhia, entre dois. Quase inseparáveis.
Todas as tardes de março para abril, eles exploravam cada espaço de Rye.
Gaya pedalava com equilíbrio e levava Franco acomodado na mesma bicicleta bem antes que o sol se despedisse, até concluir o percurso na Praia de Camber.
Onde se pode admirar as belas casas modernas de alvenaria, apreciar a canção do mar e as gaivotas que partem em direção ao horizonte. Belos detalhes dificilmente encontrados no centro.
A garota naquele momento esbanjava sua beleza, complementada pelos seus magníficos cabelos crespos, volumosos e com essência adocicada semelhante a de amêndoas. Fora sua comunicação e esperteza que se tornavam maduras ao passar da idade.
Diferente de Franco, que não era ainda considerado o jovem mais cativante da povoação pelos demais adolescentes, em especial por sustentar próximo ao rosto os tão inseparáveis óculos arredondados.
Embora fosse um motivo insignificante considerá-lo assim por ser um mero acessório essencial em sua vida. Visto que sem eles, apenas enxergava irritantes borrões em longa distância.
Visualizado pelos adolescentes de sua faixa etária como um jovem puro de Deus, não era aceito como interessante para se paquerar.
A diferença destacável entre ambos se tratava do espírito extrovertido da garota e o semblante calmo e retraído do menino, quase desmotivador a quem se atentasse.
Eles passavam horas a se encarar, reverenciar o mar e rir dos estranhos que passeavam com os pés descalços na areia macia e fria. Fora os que arriscavam em se banharem nas águas salgadas.
E quando os jovens amigos encaixavam seus olhares em meio às conversas desajeitadas, demonstraram que um sentimento profundo emergia assim que um brilho ressaltou em cada esclera dos olhos dos dois.
Mostrou-se inexplicável como havia uma ligação imersiva por meio da leal amizade.
Franco se arrepiava por inteiro durante o curto espaço de tempo em que Gaya sorria e estreitava os olhos contra a claridade do sol. De fato, indescritível para a mente de quem permitiu acender sentimentos inéditos.
Ela, no que lhe concernia, sentia a necessidade de se aproximar do amigo, presenteá-lo com um abraço de apoio ou um aconchego. Sentia muito por toda a vivência dele.
As madeixas acobreadas do garoto viviam sempre perfumadas e aquele bálsamo permaneceria ao longo de toda a eternidade, conforme uma linda recordação, assim como os demais momentos marcantes de suas vidas.
Sempre que retornavam às suas residências, Franco passava horas a detalhar em seu diário — o presente de Natal das Demdike —, referente às ocasiões experienciadas na companhia da amiga.
Ele sorria ao traçar palavras amorosas acerca da bruxa.
E cada vez que se notava inseguro, alegre, decepcionado, acomodava-se no conforto de sua cama, puxava o objeto por debaixo do travesseiro e sacava da gaveta uma caneta com pouca tinta para traçar cada palavra que complementava seus pensamentos.
Desabafava intimamente com as aromáticas folhas.
As melhores e cirúrgicas declarações secretas à Gaya emergiram nas noites chuvosas, quando era impedido de apreciá-la através da janela. Relutava contra a saudade e o apego pela presença da bruxa.
"Hoje não pude vê-la como eu gostaria. Isso doeu tanto em mim e não imagino que Gaya sinta falta da minha presença, porque eu sinto. E MUITO!
Considerei fugir um pouco do tédio, subir a escada do quarto dela, somente para aniquilar minhas saudades que não suportam mais um dia sem estar por perto.
Não entendo se estou obcecado, dependente, mas quero vê-la a cada segundo.
É, acho que enlouqueci, ainda mais quando ela sorri. Senhor Cristo, me ajude!
Torço que amanhã, pelo menos amanhã, ela apareça na janela ou me chame para nos encontrarmos. Espero também que nunca leia isso."
Não possuíam consciência sobre qual o sentimento maior e existente entre os dois, pois nunca entregavam transparência nas revelações. Ainda eram bastante novos, aproveitavam o florescer e a resistência numa amizade de infância.
Tudo o que seria abominável pelos antepassados Gregori.
Da mesma maneira em que ele registrava nas páginas limpas, a vida grafava um destino para os adolescentes tão opostos quanto o dia e a noite.
Contudo, durante uma das idas à praia, na qual ambos se situavam sentados lado a lado numa mera distância, sujando as vestes com areia e avistaram senhores que insistiram em pescar nas águas calmas de Rye junto às suas varas de carretilha, de repente, desatento aos pescadores, Franco a encarou encantado, hipnotizado e permaneceu da mesma maneira por ínfimos minutos. O que inquietou a jovem.
Assim que ela percebeu, desviou o rosto dele. Seria de fato hilário a qualquer desconhecido que presenciasse a cena numa proximidade.
Seus olhos azuis depararam-se dilatados,
transpareceram um brilho profundo e insólito, semelhante às minúsculas estrelas numa galáxia, todavia, não era o mesmo fulgor de antes a transmitir das escleras.
Aparentou ser único. Idêntico a apreciar os planetas pela primeira vez por intermédio de um telescópio. E como dizem: ao se fascinar por alguém e contemplar a pessoa na qual possui um sentimento significativo, suas pupilas expandem-se.
Talvez tivesse sido bastante trivial, ou elucidado através da ciência conforme um estímulo do Sistema Nervoso Simpático¹, porém, era perceptível testemunhar esse acontecimento por meio dele.
Em vista disso, ela sorriu ao notar, se encolheu, agarrou-se em seus joelhos com os pés livres na areia e deitou a cabeça sobre a articulação no intuito de intimidá-lo.
— Em qual momento abandonará suas luvas? Há tempos que não se desgruda delas e me incita a pensar que fazem parte do seu corpo.
Gaya mudou seu foco para amenizar sobre o que havia captado. Mas às vezes admirava em silêncio o amável olhar do menino que se encaixava com a beleza das águas.
Franco mirou na direção das luvas, uniu as mãos, respirou exausto e sentiu a emanação da maresia.
— Hum... nunca. É o que acredito — mirou o horizonte.
— Nunca? — surpreendeu-se, o viu negar com a cabeça, mantido com o olhar fixado no além-mar.
— Depois de tudo, nem tão cedo deixarei de utilizá-las e creio que seja um fragmento de mim, entende? Me protegem e oferecem segurança — um breve riso escapou entre seus lábios, fora seus olhos que desviaram para ela.
— Inclusive de mim? Lhe protegem até de mim? — ela sorriu envergonhada, seu corpo inquietou-se e reforçou a indagação, até percebê-lo pender a cabeça, constrangido ao ser questionado.
— Até de você.
A garota padeceu num olhar vago em direção à areia branca e ele sentiu que, o que acabara de falar no mínimo a machucou.
Foi algo dito involuntariamente e de imediato, mas ela reagiu interpretando como frieza.
— Não, Gaya! Me perdoe. Não me referi a isso, eu acho — gesticulou e quase a tocou, mas suas mãos recuaram.
— Ah, não. Não se referiu... — debochou, revirou as escleras e sorriu desmotivada.
— Não! Apenas me sinto despreparado em abandonar minhas luvas. Tudo bem que me percebo tranquilo, lhe mantenho sempre ao meu lado, porém, jamais confiarei em retirá-las. Nem mesmo com o Dr. Kai — confuso em sua própria resposta, lamentou em silêncio por decepcionar a amiga.
Quase implorou em ser enterrado vivo com a cabeça na areia, admitindo vergonha.
— Está bem. Tudo bem — sorriu de canto sem expressão extrema e exalou um leve desânimo. — Desacredita que chegará numa fase em que as deixará isoladas? Não sente curiosidade em tocar os demais? Conhecer um abraço, experienciar a maciez dos cabelos, um aconchego das pessoas que te amam. Um conforto mais visceral, Franco — esforçou-se em convencê-lo de alguma forma. — Será que em algum dia... — perseverou.
— Me desculpe, Gaya — libertou um suspiro. — Nem tão cedo. Embora pareça cômico e curioso, atualmente a única pessoa na qual permito aproximação, refere-se ao meu pai. Meus caminhos sem a existência dele tornam-se vazios. Considero que, ele existindo, me transmite um amparo que jamais desejaria perder. Creio que em algum dia não temerei o toque, isso demorará no meu tempo e ainda penso que a minha avó permanecerá a mesma.
As péssimas lembranças do passado percorreram em sua mente e o fez pressionar os olhos como um intrínseco desejo em rejeitá-las. Similar a uma insistente tortura.
— Lhe entendo — consentiu.
— Me recuso a pensar em perder o meu pai. E muito menos você — as pupilas de Gaya se expandiram mais e ela sentiu a barriga estremecer em borboletas. — Apesar que nunca exista proximidade física entre nós, mas sendo a minha melhor amiga, receio por um afastamento. Nunca conseguirei me imaginar sem a sua presença. Jamais seria capaz de me afastar de ti.
A bruxa mordeu as bochechas por dentro e entortou os lábios, para se conter em abraçá-lo.
— Sabe, Franco. Quer que eu seja sincera? — olhou de soslaio.
— Mais do que já é? — riu anasalado.
— Qualquer pessoa que se portasse como sua amiga, desistiria dessa amizade — o jovem riu envergonhado.
— Porque sou irritante desde que nos conhecemos, não é?
— Você é um biscoito de aveia sem açúcar — as sobrancelhas dele pularam surpresas.
Não sabia se tratava de um xingamento fofo.
— Biscoitos de aveia sem açúcar são bons com chá de canela e hortelã — aliviou-se, mesmo não gostando de chás. Contudo, sentia que ela amava a combinação. — Algumas vezes eu só queria colocar uma fita na sua boca, mas recordo que não suportaria deixar de ouvir sua voz, Franco.
A nuca do Gregori se eriçou, sua garganta ficou seca e impossibilitou que ele respondesse ou emitisse sons.
— Não me comporto igual a todos que lhe temem ou sentem pena, e não digo isso por me sentir egocêntrica. Sou sua amiga e permaneço assim, pois acredito, confio e lhe apoio sempre. Assim como sinto que faria o mesmo por mim. Exceto nas besteiras que surgem como decisões precipitadas.
— Tenho sorte em ter você como amiga — no fundo, ele chorou feito um bebê e quis agarrá-la num abraço forte, esmagador até estalar os ossos.
— Eu também. E acredito muito que ultrapassará seus medos, pois lhe enxergo resistente ao decorrer dos anos, apesar das quedas que ainda sofrerá. Custa tempo e coragem. O segundo você possui de sobra, Franco. Confie em mim.
— Óbvio que confio — ajeitou os óculos na face. — Então sempre estará ao meu lado até o fim?
A brisa dançou entre as madeixas dos dois. Uma dança diferente da natureza que acolhia uma amizade sincera entre um infortúnio.
— Até o fim, Franco — apanhou um galho de madeira enterrado na areia ao seu lado, fingiu ser sua mão e aguardou que o Gregori segurasse para saudar como um aperto. — Até o fim — repetiu.
— Além do fim, a eternidade.
Entre o galho, havia o sol como o centro das duas mãos afastadas, porém ligadas naquele ato. Grãos de areia flutuaram no vento, os raios cortaram o frio da distância e os olhares anunciaram ligação fraternal. Significou muito para ambos.
13 de Abril de 2003: Quatro dias depois do Primeiro Quarto Crescente
O Sr. Callahan despertou e bocejou animado com a cantiga um pouco desentoada de "parabéns" pelo seu filho, porém, a entonação se mostrou irrelevante diante à simbólica ação. Referia-se ao seu aniversário de trinta e três anos. Considerada a provável idade de Cristo segundo os cristãos.
Não comemorava seu dia especial há muitos períodos por motivos profissionais, mas seu garoto, o Franco, havia preparado uma pequena tortinha de ameixas secas acompanhada pela cobertura de damasco, enfeitada por uma velinha simples para celebrar a data significativa.
Os dois bateram as palmas entre o silêncio da casa, o pai soprou a minúscula chama acesa e ambos se abraçaram movidos por uma força extraordinária, arrepiante, de se embrulhar o estômago até esvaziar tudo por dentro, rompendo o medo pela proximidade que procedeu análogo a um obstáculo ao menino.
Efetivamente, próximo ao seu pai, vivenciou a diferença. Encontrou-se naquele instante sereno, na companhia do seu verdadeiro amor. Sua única paz que lhe restou.
Como os demais domingos em Rye, ainda cedo, o sol se fazia presente conforme a anunciação do dia especial. Foi assim que o pai decidira aproveitar os últimos momentos para preparar um piquenique idealizado há tempos, às margens do Rio Tillingham, próximo ao moinho de vento.
A cesta de palha colorida em caramelo adequou-se coberta por um pano bordado em fios de ouro — herança dos antepassados —, entretanto, qualquer pessoa consideraria desnecessário encaminhar um tecido nobre a um simples piquenique, porém o jovem Callahan queria fazer daquele momento o mais singular possível.
Havia pães esquentados dos mais diversos, frutas típicas da região, sucos naturais e sobremesas para acompanhar. Desejavam transformar o aniversário num evento notável dentre todos.
Enfim, chegaram ao aconchegante lugar de carro, sentaram-se na relva, respiraram o ar puro e ouviram os barulhos das árvores misturados com a das águas que corriam em direção ao Rio Brede. Tornava-se possível observar os pequenos peixes e as plantas quando o brilho do sol perfurou a água verde-mar.
Pai e filho desfrutaram de grande parte dos alimentos disponíveis na cesta, e caçoaram dos tempos do Sr. Callahan ainda novo no seminário, provocando gargalhadas no garoto, atitude desacostumada do Franco.
Tudo era muito curioso e empolgante.
— Eram bons os tempos no seminário, pai? — ingeriu suco de laranja numa antiga garrafa de leite. — Hum... este suco está ótimo — apreciou como um bom degustador.
— Tirando os sermões dos padres e pressões sobre a minha herança? É... fiz muitos amigos — aceitou dividir a bebida com o filho e compartilhou o recipiente de vidro. — As laranjas estavam bem maduras. De fato, está bom. — completou. — Às vezes conseguia escapar de lá na intenção de ver sua mãe e retornava como se nada tivesse acontecido — Franco não se conteve e libertou um breve riso. — Era adrenalina, filho. Não entenderia.
— Então nasci quando o senhor ainda estava no seminário? Não sou bom em cálculos, pai — permaneceu a rir desconcertado. — Sou fruto do pecado — brincou.
— Somos — reagiu.
Repentinas borboletas sobrevoaram as águas e seguiram distantes das árvores.
— Lhe concebemos enquanto eu estava no seminário. Foi a melhor escolha da minha vida — o pai se sentiu constrangido ao relembrar toda ausência do fôlego na ocasião. — Quando eu soube da gravidez de Guillerma, juntei minhas malas, enterrei os documentos e fui atrás de sua mãe. Sua avó quase me deserdou e alguns superiores se revoltaram. Pensei até que cessariam minha vida por romper alguns acordos de caridade, mas eram apenas algumas neuroses minhas.
Riu anasalado e tranquilizou o garoto.
Mas naquela época, o Sr. Callahan recebera tapas e cuspes da respectiva mãe, fora as visitas estranhas de um representante do bispo na época que havia pagado em dinheiro para convencê-lo a romper o processo da gravidez. Temiam perder um seminarista de ouro para a igreja.
— Uma relação proibida. Hum... conte-me mais — se mostrou curioso para descobrir acerca da juventude de seu pai. — Sou atraído por essas histórias.
Ah, garoto... — sorriu de soslaio. — Sua mãe era sobrinha do reitor e sempre quando ele precisava de ajuda porque não conseguia convencer alguns seminaristas, ela marcava presença no seminário, encarregada de organizar registros dos estudantes. E assim nos apaixonamos entre nossos olhares que cruzaram na biblioteca, nos corredores, no jardim... Nossos corações ardiam mais que o meu cabelo ruivo.
Seu olhar atingiu as nuvens e regressou aos bons momentos.
— Éramos jovens demais e sedentos para ficarmos juntos. E às vezes, quando Guillerma não estava do outro lado do muro, ela permanecia escondida em meu dormitório, abaixo da minha cama e meus amigos acobertaram nossa relação. Era inconsequente demais.
As memórias de quando os beijos ocorriam nos locais mais secretos do seminário, torturavam a mente de Calllahan que se questionou: "Onde eu errei?".
Ainda se culpava por tudo e o resultado massacrava sua alma, logo que desejava sustentar uma família saudável e amável, como a das Demdike.
— Ficávamos bons tempos sozinhos, até eu conseguir fugir por poucas horas do lugar para nos encontrarmos durante uma das noites de junho no cinema. Lembro como hoje.
Foi levado ao tempo, ao espaço e ao momento.
— As cortinas fediam, as cadeiras eram de madeira, desconfortáveis demais e os mosquitos chiavam em nossos ouvidos. Mas tudo aquilo não nos impediu de experienciar o vazio daquela sala — não houve desconforto quando a tela refletiu luz nos corpos ansiosos do antigo casal. — Nem conseguimos assistir ao filme e eu havia derrubado um balde de pipoca nas poltronas do lado. Lembro que pedi desculpas ao rapaz da limpeza assim que corremos para fora do lugar depois dos créditos finais.
— Um grande desastre, pai... — levou uma das mãos até a testa e repreendeu a atitude do Sr. Callahan.
— Realmente foi... constrangedor. Porém, após alguns meses, recebi a notícia — Franco sorriu e abaixou a cabeça. — Acompanhei todo o processo cansativo e doloroso da gravidez, compramos tudo com muita delicadeza e quando você nasceu, eu sabia que respiraria por ti, filho. Cada momento era único.
O olhou com tamanha ternura, como se o visualizasse pela primeira vez em seus braços, feito as madrugadas chuvosas entre o ninar em frente ao berço.
— És minha alma, meu oxigênio, minha existência. Te amo, garoto.
Ao apreciarem a beleza do ambiente, idealizaram as futuras viagens ao redor do mundo num fusca preto do ano de 1972 — carro dos sonhos do Sr. Callahan —, ao soar das músicas e bandas favoritas de ambos na rádio, como Queen, Bee Gees, Commodores, clássicas e inesquecíveis até as seguintes décadas.
O menino imaginou que em algum dia, caso se tornasse um pai, ensinaria aos seus filhos a respeito de sua paixão por todas as formas da arte. Assim como aprendeu junto ao pai.
Porém, o garoto permanecia sério na maioria dos momentos quando o assunto se desvanecia.
Torceu para aquele momento congelar.
Cercados pelas pequenas casas próximas ao rio, a temperatura baixa, embora o sol ainda prevalecesse, agradava os dois. A abundância de árvores transformou o lugar num cenário perfeito para livros de fantasia e convenceu que a natureza permanecia zelada pelos moradores.
Tudo se modificou tranquilo ao lado de sua figura paterna, logo quando iniciaram assuntos complicados:
— Pai, e como anda a vovó? Permanece visitando durante as idas para Londres? — Franco mordeu um pedaço do pão e o mastigou enquanto aguardava pela replicação.
O Sr. Callahan se ajeitou e se deitou acima do relvado ao exato instante em que se sustentou com os cotovelos apoiados no chão. Observou o sol acompanhado dos olhos azuis cerrados, respirou profundo o ar rarefeito e se atentou ao seu filho, num semblante preocupado.
— Se encontra em paz. Estão mantendo-a sob controle — fez-se uma breve pausa enquanto vagou pelos pensamentos. — Anos difíceis foram aqueles, mas caso ela retorne, espero que lhe trate bem — Franco entregou ao seu pai uma maçã, que apanhou na mão, mordeu um pedaço e prosseguiu na conversa enquanto mastigava.
O Sr. Callahan ignorava os bons modos fora da supervisão materna. Tempos anteriores, Moniese o chicotearia com um cinto de couro nas costas por ausência das regras de etiquetas.
— Sua avó recusa notícias suas a partir daquele período. Tenho conversado paciente com ela e considerei ser o correto. Torço para me compreender. Porém, com o retorno dela, receio pelo pior, mesmo após terem repassado os medicamentos para o tratamento. Afinal, você e a Gaya se aproximaram bastante.
O garoto sorriu envergonhado, abandonou sobre o pano bordado o pequeno pedaço de pão acompanhado da marca de mordida, retirou os óculos para limpar na camiseta e o Sr. Callahan o percebeu corar ao ouvir o nome da menina ser pronunciado.
Franco visou disfarçar.
— Ah, pois bem. Prevejo que alguém se depara... como posso dizer... apaixonado? Estou correto, filho? — o pai ofereceu um leve empurrão no ombro do menino, brincou com a situação e o deixou mero constrangido.
— Pai, por favor... Óbvio que não! Eu acho — riu cabisbaixo ao mirar as mãos revestidas pelas luvas. — Mas se tiver algo na qual enxergou referente a isso... Aceito opiniões — dessa vez elevou seus lábios numa empolgação e se atentou ao pai que retribuiu com meras tapinhas em suas costas.
Franco jamais se desagradou com esta atitude. Deparou-se confortável na companhia de seu amigo fiel. Era a primeira fase de uma possível recuperação.
— Perfeito. Caso deseje desabafar sobre as suas emoções, venha até mim. Porém, deixando transparente, o que vejo em você é luz, sentimentos, tudo de belo e o que a Gaya também deve certificar. Ela é uma garota simpática, afetuosa, uma menina incrível.
— De fato é, pai. Ela é... Minha nossa. Nem sei como explicar — pressionou os lábios e ajeitou uma mecha caída sobre os olhos.
— Se estiver apaixonado, entenda que isso é algo bem natural. Do contrário, não se preocupe em não sentir nada. Ainda são novos e precisam amadurecer. Mas é ótimo estar interessado por alguém.
Conforme sempre repetia, o Sr. Callahan desejava exteriorizar o seu apoio ao filho. Situava-se em processo de fortalecimento da relação entre ele e o garoto. Tudo até aquele instante saía com perfeição.
— Gosto dela... — o pai sobressaltou os olhos — como amiga, pai. Só isso.
— Apenas como amiga?
— É, eu acho que sim — deu de ombros. — Só a conheço em toda a minha vida e posso estar equivocado acerca dos sentimentos. É algo inédito, a Gaya é perfeita, perfumada, sua voz... — suspirou e voltou aos sentidos. — Ela é uma ótima melhor amiga — arrancou uma risada de Callahan.
Ao concordar com o breve e anterior conselho de seu pai, Franco permaneceu silente e aproveitou o restante do dia ao lado de seu eterno companheiro. Foram poucas palavras, efêmeras conversas, como se a presença de ambos sustentasse a aproximação.
Era o necessário e profundo.
Contudo, o pai levantou-se e tomou uma iniciativa. Há anos que jamais mergulhava e aquele seria o seu presente de aniversário. As águas o atraíram a nadar e experienciar a temperatura morna do entardecer.
Ao se ausentar de suas vestes lançadas na grama, somente composto numa bermuda curta por baixo, temendo escorregar, o Sr. Callahan se encorajou ao se equilibrar pelos musgos preenchidos nas pedras até entrar no rio e tremeu ao tocar a água através da ponta dos dedos de seus pés. O filho gargalhou com a situação até ser convidado para desfrutar o momento:
— A água se encontra ideal para nadar, filho. O único problema é a correnteza que se encaminha até o Rio Brede. Fora isso, se desejar me fazer companhia, é só possuir cautela — exclamou e escondeu a respeito da temperatura do rio.
— Ah, não precisa. Estou bem aqui, admirando a paisagem. Nunca havia presenciado o horizonte daqui. É belíssimo.
Pode aproveitar sem mim.
— Tem certeza?
— Melhor não insistir, pai — chateou-se pela idade.
— Certo. Desconhece o que perdeu, garoto — bateu os braços e as pernas na água, molhou os cabelos acobreados ao sorrir e lamentou por usufruir do presente sem o filho.
O aniversariante nadou atento no rio, cauteloso com as plantas submersas. Ao apreciar o pôr do sol enquanto batia braços e pernas abaixo d'água, de costas ao piquenique, virou-se de novo para observar o filho que agia da mesma maneira com o evento natural, perplexo pela magnitude da estrela.
Franco se alegrou ao notar que seu pai parecia satisfeito em desfrutar a tarde em família, porém, algo de estranho aconteceu.
De repente, as águas esfriaram à medida que o sol se recolhia. No mesmo instante, o Sr. Callahan insistiu em nadar até as margens e pressentiu suas pernas dormentes aos poucos pela correnteza que se aproximava. Bem antes, era possível aproveitar o rio, mas a natureza sempre se converte incerta.
Assim que se encontrava próximo de sair, sua perna direita enroscou-se numa planta aquática, quando a fluência se intensificou. De maneira bruta, como uma força do momento, o Rio Tillingham puxou o homem para baixo e por segundos o rapaz desapareceu entre as pequenas bolhas que flutuaram.
O garoto se levantou desesperado, buscou por Callahan, inicialmente balbuciou o nome de Deus num impulso, sem compreender o que havia ocorrido. Em seguida, o menino gritou pelo seu pai, até se surpreender com o surgimento dele através da superfície.
Engasgando-se, em busca do pouco oxigênio que lhe restava enquanto o líquido pesava e adentrava seus pulmões, o Sr. Callahan se esgoelou com pesar, rouquidão e implorou ao Franco que se distanciasse do rio. A única coisa na qual ele desejava, seria mantê-lo em segurança.
Pois, já aceitava seu destino.
¹Sistema Nervoso Simpático: É basicamente, um sistema de excitação, que ajusta o organismo para suportar situações de perigo, esforço intenso, estresse físico e psíquico.
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