Capítulo 1: Linhagem Sangrenta

*ALERTA DE GATILHOS: DOENÇAS, ABUSO PSICOLÓGICO, VIOLÊNCIA FÍSICA, ANSIEDADE, MORTE, BRUTALIDADE E RELIGIÃO.

*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Nocturne in C Sharp Minor  - Frédéric Chopin, Ólafur Arnalds, Alice Sara Ott, Mari Samuelsen e Messy Hearts - Moon Ate The Dark

Com uma trajetória prestigiada, a abundante linhagem Gregori descende da ampla nobreza italiana e se consolidaram como invasores católicos em solo britânico durante o domínio político e material da igreja medieval na Europa.

Estabelecida na Inglaterra pelos três intrigantes irmãos Gregori: o primogênito cruel e esquelético Caraveckio, a submissa Antonieta e o belo rebelde caçula Michelin; o primeiro sendo bispo, a segunda uma freira e o terceiro um pintor renascentista, renomado na Itália — terra natal de ambos —, fragmentaram-se pelo território a fim de altear forçadamente a propagação da palavra de Deus.

Após o julgamento de Pendle, Michelin, um plácido homem alvo e ruivo, ainda na sua juventude, embora receoso, optou se rebelar contra os familiares por um propósito na qual considerava superior: constituir uma família ao lado de uma modesta e talentosa artesã das redondezas itálicas.

De início, Caraveckio sobrecarregou-se em ira e confiou que o seu irmão mais novo se converteria num futuro padre, porém, surpreendendo a todos, sem indecisões, Michelin contrariou a trajetória familiar cristã.

Anos posteriores, próximo da invasão dos camponeses nas terras sagradas, rebelando-se contra os nobres, o último Gregori foi o primeiro a escapar de suas responsabilidades como aliado do clero e traiu seus rigorosos irmãos.

Fugindo acompanhado de sua apreciada artesã, direcionados ao Leste de Sussex, rumo à pacata Rye, transformaram o antigo vilarejo num provável esconderijo até que a igreja declarasse em documentos que o respectivo homem teria abraçado a morte.

Precedente ao se deserdar da própria família sagrada e apaixonar-se caindo aos pés de sua amada, o virtuoso pintor manteve resistente comunicação por intermédio de secretas cartas com seu leal amigo e artista Barroco, Manuel Magnasco — antecedendo ao julgamento de 1612 —, que permitiu ambos trocarem informações não tão comprometedoras acerca da igreja e assuntos pessoais de uma fiel amizade abraçada em segredos.

Os dois artistas se conheceram antes de Michelin mudar-se com destino a Inglaterra em determinação de seus irmãos mais velhos. E durante essa amizade genuína, o jovial artista cruzou caminhos com Gia Callahan, mulher de olhos cintilantes, verde-esmeralda, cabelos longos, ondulados e escuros como a noite. Frequente companhia amigável de Magnasco, tornando-se interesse amoroso do Gregori que a convenceu em residir na Inglaterra.

Em Rye, o jovem pintor constituiu sua vida ao lado da artesã e prosseguiu na linhagem dos Gregori, enquanto seus irmãos testemunharam a decadência do catolicismo em massa com a ocupação de Pendle pelos anglicanos.

No entanto, Michelin, mesmo tendo optado em arredar seus dois pés da igreja, permaneceu na companhia de suas constantes convicções, sua primordial construção religiosa.

O artista originou quatro filhos junto a Gia — sendo um adotado —, e progrediu com a árvore genealógica ao momento na qual sua amada gerou a quinta e última criança. Mas dessa vez, Michelin não alcançou a mesma sorte de antes.

À medida que o clero o perseguia incansavelmente e popularizou a imagem de um traidor, além de temerem a revelação dos segredos omitidos pela igreja, Michelin Gregori morreu envenenado após brindar e ingerir uma taça de vinho misturado com acônito¹ num banquete de comemoração entre família, incluindo a presença de um impostor durante a celebração do nascimento de seu último filho: Francesco Gregori.

Diabólico, Caraveckio destinou um de seus leais sacerdotes e amigo próximo do irmão, com o propósito de infiltrá-lo na reunião intimista, a fim de findar o seu plano vingativo.

Assassinar seu irmão não lhe transmitia remorso algum.

Adiante, correspondente a um castigo devido a todas as suas crueldades, o terrível bispo, semelhante a um aspecto demoníaco, um nefasto hipócrita, sempre se opondo às doutrinas de Deus, feneceu gradualmente em decorrência de sua Fasciíte Necrosante.

Seu corpo envelhecido fora corroído por inteiro aos poucos pela bactéria, apodrecendo dia após dia. Seus músculos e ossos tornaram-se expostos e o fedor da matéria putrefata, nauseante, emanava por todos os cômodos do castelo na qual transitava.

A pele de seu maxilar apresentava-se devorada, evidenciando seus dentes, dedos esqueléticos encontravam-se em carne viva, idêntico a uma figura repugnante e medonha.

Um cadáver ainda com vida.

Por fim, logo após ser torturado pela dor insuportável enquanto sua derme deparava-se consumida pela doença, Caraveckio nem sequer conquistou qualquer privilégio em ser enterrado como os demais respeitáveis sacerdotes da Inglaterra.

Nem o seu corpo pôde ser transportado de volta para a Itália.

O cadáver despertou nojo e repúdio no clero logo que se dirigiu carregado até a cúpula pela sua sofrida irmã Antonieta, na qual recebeu como objeção a negação de um enterro nobre, mesmo que os Gregori carregassem o posto de uma família meritória e aristocrática.

À medida que Caraveckio seguia conduzido e puxado pela freira trêmula e desesperada à demasia clerezia, sua pele desgrudava de seu físico e caía repugnante pelos corredores do castelo, apavorando os serviçais que cruzavam a peregrinação final.

Posteriormente, o defunto foi lançado no centro da praça pública pelos corajosos plebeus revoltados que conseguiram capturá-lo da presença de Antonieta, servindo de manjar² aos corvos e aos vermes. Similar a uma decoração em meio à sujeira do período medieval.

Em seguida ao assassinato imprevisto, vinte anos depois, Francesco Gregori, o filho mais novo da família Gregori e Callahan, apresentou-se responsável em retomar a linhagem nobre no íntimo da maldição ao lado da primogênita espanhola de Lorde O'Gallagher, "O Triunfador": Bernabette O'Gallagher; e baniu queimando da árvore genealógica bordada em ouro na tapeçaria de parede, o seu irmão adotivo: Dante Gregori; por não ser amaldiçoado e se casado com outro rapaz.

Para Francesco, Dante não merecia carregar nem sequer o sobrenome, todas as conquistas adquiridas pela família e dessa forma edificaram uma rivalidade entre irmãos.

Entretanto, o filho revoltado desconhecia que o adotivo ainda detinha bens entregues unicamente pelo falecido pai e preservados pela igreja.

Em uma longa carta escrita por William Roselay para Braic Gregori — o primogênito que estava distante —, o escritor e amigo íntimo dos irmãos revelou, através do papel recolhido posteriormente e utilizado para contar acerca da aliança entre Gregori e O'Gallagher sobre linhagens aristocráticas da Inglaterra, durante o casamento real com Bernabette, Francesco e Dante ousaram se enfrentar entre espadas após frequentes ameaças de morte vindas do caçula.

Até o momento em que o bastardo ergueu a lâmina e ousou decepar a mão esquerda do sanguíneo sem qualquer piedade, lavou o chão com sangue e manchou o longo vestido da noiva que segurava o marido furioso.

Por fim, Francesco jurou matá-lo, além de servir sua carne em cubos num grande banquete, registrando a briga como um dos maiores conflitos e escândalos familiares da Inglaterra envolvendo uma Casa católica³.

Após o banimento do irmão, matrimoniado à sua afetuosa Bernabette, Francesco uniu as riquezas entre as duas opulentas árvores genealógicas invasoras e conciliaram-se em se tornarem pais, seguindo de um suntuoso casamento polêmico.

Contudo, em 1680, um ano anterior à concepção de trigêmeos idênticos, Francesco atraiu o azar de ser assassinado por engano durante um profundo sono no magnificente castelo O'Gallagher, distante de Rye, bem em Folkestone, após a fortaleza ter sido invadida e ocupada pelos plebeus.

O confundiram com o irmão de sua esposa, um homem cruel de natureza odiosa e capaz de cometer atos repugnantes designados a maioria dos desfavorecidos, desfrutando o sadismo.

O quinto descendente de Michelin e Gia jamais conquistou a oportunidade — assim como o seu pai — de conhecer e vivenciar o crescimento dos filhos.

De maneira evidente, constituiu uma parcela do temeroso infortúnio.

Dos três gêmeos, o encarregado por trilhar os passos das duas eminentes famílias e cimentar apenas os Gregori em território inglês, perdurou sendo o Matteo — o primeiro dos gêmeos — no minuto em que se apaixonou por Isolda Felton, uma talentosa enxadrista⁴ escocesa.

Unido à Isolda no ano de 1700, tornou-se pai de quatro meninos, sendo dois deles gêmeos, e esqueceu do destino marcado em sangue.

Sem surpreender a todos, em 1742, aos seus sessenta e um anos, no exato período em que seu quinto filho com a notável enxadrista desabrochou seus pequenos olhos para o mundo, Matteo padeceu de um repentino infarto do miocárdio durante seu descanso noturno.

Contudo, apesar do desejo em morrer dormindo, sua morte fora dolorosa e o fez urinar de tamanha tortura.

Apesar de persistirem existindo com suas duradouras idades, a qualquer descendente dos Gregori, exceto as mulheres e filhos adotivos, as mortes converteram-se ainda mais trágicas. E da mesma maneira habitual, cada linhagem se encarregava de suceder o legado aristocrata. 

O último fruto do amor entre Matteo e Isolda, nomeado como o primeiro Franco Gregori, manteve a promessa de erguer o brasão da família aliado à sua esposa, Clementine Benner.

O primeiro Franco sucumbiu em 1803 durante uma expedição ilegal e periculosa no Cairo, Egito, após ser decapitado por piratas zarpados na costa do Mar Vermelho.

Ele e sua equipe buscavam desenterrar e invadir tumbas sagradas além de seladas com tesouros arqueológicos, no mesmo ano em que seu filho único chegou ao mundo: Dimon Benner.

Como todo sanguíneo Gregori sucessor de Michelin e Gia, as riquezas armazenadas por eles se tratavam do fruto da exploração.

Numa corrente sem fim, originou-se de Dimon o segundo Franco, nomeado pela mãe em honra ao pai de seu esposo que sucumbiu ao ser esmagado por um trem.

Franco II faleceu em 1912 durante o memorável naufrágio do Titanic.

No mesmo período, seu único filho, George O'Gallagher, um arruinado economista, nasceu em sequência à fuga do pai — Franco II — agregado à maior parte das riquezas dos Gregori, além de ter perdido as heranças no mar, junto à sua vida.

George casou-se em meses com a professora irlandesa de matemática, Viola Blanche, e de uma lamentável e desgastante relação abusiva da parte de ambos, em dez de janeiro do ano de 1950, em busca de reaquecer o convívio entre eles, conceberam a última sucessora mulher da linhagem ambientada sob a maldição: Moniese Gregori Callahan.

Moniese, que jamais trabalhou em toda sua existência ao ser sustentada pelos seus progenitores, com sua considerável idade adulta, de cabelos ruivos, olhos azuis arregalados, expressão ríspida unida às vestes sóbrias e recatadas, capaz de afastar qualquer presença positiva — além de passar uma aparência envelhecida —; a amedrontadora mulher transformou-se na única descendente feminina da família e herdeira da fortuna que ainda se conservou, incluindo quadros, esculturas sagradas, objetos valiosos, cânticos católicos e solenes registrados pelos Gregori e em parceria com a igreja.

À medida que a jovem sucessora se desenvolvia, Moniese permanecia pressionada pelos pais autoritários a seguir o catolicismo rigoroso de seu antepassado e zelava as atitudes severas de ambos, aliada à tranquilidade, assimilando como uma preocupação ao seu futuro.

Tudo em prol de se libertarem da maldição.

A morte era um medo.

Em sua juventude, como as moças de sua idade, ela viveu na presença de freiras rigorosas e se apegou ao cristianismo como sua salvação. Os santos do convento eram seus fiéis companheiros e sua mente custava a acreditar ser a escolhida por Deus, construindo uma mente conturbada e necessitada de ajuda.

Ao alcançar mais responsabilidade, visto que alguns filhos reproduzem pensamentos dos pais e se transformam num reflexo dos mesmos, no instante em que Franco Gregori Callahan I foi concebido em treze de abril do ano de 1970, nomeado dessa maneira pela mãe ao insistir na ideia que ainda continuariam sendo nobres — caso portassem o nome e sobrenome elitista —, o filho único de sobrancelhas acentuadas, olhar abatido e cabelos acobreados, experienciou a consequência de possuir uma figura materna assustadora e autoritária.

Como os filhos não pertencem aos seus progenitores, os frutos são parte do mundo, equivalente a um pomo amadurecido despencado de uma árvore, aguardando os efeitos do espaço e tempo.

Entretanto, não era a forma que Moniese raciocinava.

Controladora, invasiva, narcisista e ignorante, já adulta, a mulher que jamais mediria esforços para atingir seus objetivos, investiu por inteiro na vida religiosa "em prol do filho", como herança dos seus antepassados, temendo que a maldição prevalecesse.

Nos períodos anteriores, a morte apanharia os homens da família Gregori em qualquer ocasião de suas vidas, num simples sopro. Entre as veias da linhagem, percorria o perecimento. Nenhum daqueles amaldiçoados encontrava-se isento de partir.

Os ponteiros do relógio giravam, os folhetos do calendário desprendiam-se da parede com o decorrer do tempo, Callahan I crescia com mais um risco na parede, acompanhando sua altura e Moniese esforçava-se para trancafiá-lo na residência, após o falecimento precoce de seu marido e pai de seu estimado garoto, Lars Legend, um renomado escultor barroco italiano.

Ela detestava amar um artista.

No entanto, tudo se modificou quando uma jovem loira de queixo largo, elevado e olhar sedutor sobressaiu semelhante a uma "raposa astuta" nos caminhos do seminarista — forte concepção alimentada pela mãe narcisista.

Visto que o rapaz estava prestes a concluir o seminário católico, anterior à mulher que lhe enlouqueceria surgir, Moniese tempestuou em raios ao descobrir que seu único filho abandonaria a ideia de se converter ao sacerdócio para estar na presença de uma dama, considerada por ela como uma "infame⁵".

Entre breves sumiços de seu filho rebelde na instituição durante as noites frias, embaraçoso consistiu no tempo em que Moniese tomou consciência sobre a gravidez repentina de Guillerma Van Dorth, ao ter conhecimento por intermédio do filho.

Seus olhos severos brilhavam como chamas impetuosas e hipnotizantes, o ódio mostrava-se idêntico a um fiel parceiro de vida, ao encarar a gestante.

E então, apesar dos incansáveis diálogos da parte dos jovens amantes na qual relutaram em convencê-la que o momento era sublime, a gestação não foi tão bem aceita no princípio. Contudo, no instante em que o bebê nasceu, a mulher instituída pelo rancor rachou sua própria casca ao considerar total semelhança entre a criança e seu favorito Gregori.

Uma mudança considerada assustadora e inexplicável.

13 de Março de 1992: Um dia depois do Primeiro Quarto Crescente

Durante uma madrugada chuvosa, quando não se podia apreciar o brilho da lua na presença das estrelas, num parto natural arriscado inicialmente com o cordão umbilical enrolado no pescoço, nasceu o frágil Franco Gregori Callahan II, filho de Franco Gregori Callahan I e Guillerma Van Dorth em situação sofrida.

Neto de Moniese Gregori, única mulher viva da árvore genealógica, Franco II tornou-se o último e mais recente herdeiro dos nobres italianos e espanhóis.

Seus pequeninos e confusos olhos abriram-se para a então avó logo após o cordão se desenrolar com ajuda dela que se desmanchou em alegria pelo minúsculo bebê corado e quieto.

Não parecia ser a mesma de antes.

O coração do jovem Callahan agitou-se perante a emoção, quase fazendo-o desmaiar por tamanha empolgação, enquanto Guillerma não oferecia grande importância ao pequenino Gregori, demonstrou descontentamento e fraqueza pelo esforço depositado durante o parto.

Ela precisava de apoio naquele instante.

12 de abril de 1995

Franco II desenvolveu-se diante aos olhos do pai e avó.

A rude senhora corria seguindo o garoto pelos cômodos, se queixava das dores lombares junto às mãos apoiadas sobre as costas e ossos que estalavam em cada movimentação, preocupada e cautelosa com o menino, temendo perder para o alvoroço da criança as suas taças de cristal, heranças dos O'Gallagher e Gregori.

O afetuoso menino de madeixas acobreadas e macias como os do pai, quase comparado ao ruivo vistoso de Moniese, seus olhos acentuados, inigualáveis azuis oceano, escassos sinais minúsculos, amarronzados e espalhados no rosto, além de pequenos lábios coralinos delicados; tornava-se cintilante e entusiasta à medida que contornava os primeiros rabiscos encíclicos com pincéis redondos de madeira, coloridos em tinta numa reduzida tela ao lado da figura paterna, sendo o Sr. Callahan um apreciável e excelente pintor naquele tempo, idêntico ao seu sétimo avô Michelin.

Franco II não consistia numa criança agitada e sequer tão quieta.

Em ocasião, incontrolável, porém mantinha-se amável com aqueles que demonstravam ternura. Ainda pequeno, mas observador. Exceto quando se tratava de Guillerma, sua própria genitora.

23 de junho de 1997

Vivendo numa fase confusa de sua vida — sustentando seus tristes motivos —, ao presenciar forçadamente a evolução de um filho que jamais lhe provocaria relevância, a mãe transformava-se numa fera ao assistir o garoto bastante hiperativo — o que é de se esperar naquela idade.

A datar pelo comportamento indisciplinado do menino, as lastimáveis sessões de castigo e violência física principiaram no mesmo período.

Para quaisquer atitudes errôneas que Franco II tomava, inquieta e impaciente, Guillerma jamais conseguiria manter um laço afetuoso com o filho e não seria correto forçar interações.

O Sr. Callahan intervia em defesa da criança, por vezes consentindo determinadas desobediências exercidas por ele, pondo-se de frente em contradição aos questionáveis comportamentos da esposa, na intenção de que o garoto nunca se atormentasse mediante as condutas medonhas da mãe.

Contudo, quando se mostrava sozinho com a esposa, buscava manter a empatia por ela, fora o necessário apoio em vê-la bem.

Os mais próximos da família acreditavam que Guillerma se apresentava fora de si, principalmente após motivar um mediano corte proposital e superficial na mão esquerda do menino, num momento que não pôde controlá-lo aos gritos ecoados pela casa.

Logo que ela ergueu a faca de cozinha para atacá-lo, a primeira reação da criança resultou em proteger os olhinhos com as mãos que ficaram expostas.

A jovem moça perdia sua inteira sanidade a cada instante que o presenciava saltitar e bagunçar as cobertas da cama, pincelando as paredes brancas com tinta ou deixando sobras de comida no prato. Não conseguia sustentar tanta paciência.

Somente por esses meros atos infantis do garoto, Guillerma, atordoada devido aos comportamentos julgados como inadmissíveis, descontava toda sua fúria por meio de ataques físicos, permitindo que Franco II reagisse debatendo-se contra o chão em circunstância de desespero e autodefesa.

Algo de errado acontecia.

Era necessária uma intervenção que partisse dos mais próximos, contudo, ninguém mantinha coragem para auxiliar a jovem que claramente suportava consequências do passado.

E como resultado, um perseverante medo desconhecido emergia no trilhar do indefeso menino que principiou a temer quaisquer toques, grandes e pequenas aproximações, o contato se tornava visceral e o pobre inocente carregaria como um martírio por toda a eternidade.

Ao pressentir que sua mãe se aproximava de sua presença, Franco II desencadeava agonizantes crises de ansiedade. Transpirava frio, respirava apressado e de maneira incontrolável, notava seu ar fatigante transpassar entre os lábios.

Um inteiro sufoco pavoroso.

Seus olhos se carregavam em pânico, além dos pequenos ombros tensos, retraídos em repressão.

Guillerma jamais amou seu respectivo filho ou sequer um mínimo de apreço sentimental, nem mesmo carregando-o dentro de seu ventre. Equivalia à inexistência do garoto, julgado a um ser irrelevante e descartável, talvez para si, a criança fosse visualizada concordante a um peso morto.

Seu marido, o Sr. Callahan, fez questão em apoiar e auxiliar a identificar a real motivação que ocasionou a avidez desmedida do rancor sobre sua amada esposa.

Ele entendia e enxergava a própria culpa na ausência em família, porém, o medo em perder ambas as partes lhe colocava em fogo cruzado. Tornando-o refém.

Novembro de 1997

Por três meses, encarando psicólogos e psiquiatras, acompanhando sua adorada mulher, o Gregori experienciou seu sangue elevar prestes a esmagar a cabeça numa pressão cruciante durante uma vagarosa terapia intensiva da esposa com auxílio de medicamentos prescritos.

Assim, compreendeu Guillerma vivenciar o martírio do Transtorno de Personalidade Narcisista⁶, consequência após conceber seu único filho, principiando de uma grave depressão pós-parto sem tratamento inicial.

O mesmo transtorno no qual Moniese resistiu há tempos, porém, o estágio de Guillerma se expunha superior ao da mãe do Sr. Callahan.

Reflexo do pós-parto sem acompanhamento psicológico, o distúrbio se intensificou no período pela qual a jovem notou com intensa revolta, visto que toda a atenção de seu amado parceiro se direcionava ao filho.

Na opinião da jovem antes do processo terapêutico: "inaceitável".

Contudo, não demorou muito para que o Sr. Callahan optasse em tomar partido ao seu menino.

De modo compreensível, aos poucos, incentivou a persistência do tratamento em prol de sua esposa até que chegasse o dia em que o rapaz decidira determinar um ponto final na lastimável situação. Suportava as pressões de sua mãe num lado e no outro extremo erguia forças para manter uma relação já desgastada entre as agressões verbais ouvidas em silêncio.

16 de novembro de 1997

Sucedeu numa manhã de domingo no mês de novembro, durante o tempo em que os habitantes saíram em direção à cidade, na intenção de desfrutarem a luz solar e os ventos frescos que assopram em quem aprecia a natureza.

Guillerma despertou frustrada como em qualquer dia. Disfarçando associada a uma boa aparência, levantou-se com quietude da cama, quase flutuou, espreguiçou-se bocejando e fingiu admiração pela bela vista da Rua Mermaid, onde residiam.

Encarou seu reflexo animado composto numa camisola branca no vidro da janela inglesa, condizente a uma motivação para o pavoroso acontecimento final, caminhou descalça em passos silenciosos até o quarto de seu filho, experimentou o chão frio pela noite anterior e o analisou inexpressiva, idêntica a uma entidade maligna e perturbadora inquietando de modo a culminar num pesadelo.

Enquanto o garoto dormia quieto, sem temer perigos, arrebatada por um sentimento confuso e repentino, ela adotou a pior decisão que uma mãe influenciada pelo sangue-frio tomaria.

Apanhando uma das almofadas postas sobre a poltrona de marfim, preencheu seus olhos de ódio ao presenciar o pequeno indefeso dormir condizente a um anjo.

Idealizando seu trilhar sem o filho, arquitetando falsas expectativas unidas ao amado, Guillerma aproximou-se pouco a pouco com as mãos firmes agarrando a almofada e testemunhou com agrado a respiração suave do menino, prestes a cessar sua vida.

A própria consciência comprometida exigia que executasse, desfrutando à medida que havia tempo, além do seu excesso de adrenalina no segundo em que seu corpo tremeu por coragem, como se a existência do pequenino Franco estivesse em poder de suas mãos.

Presumindo carregar o poder em arrancar a vida da inocente criança, da mesma maneira que o concebeu, Guillerma pressionou com violência o travesseiro com monstruosa frieza sobre o rosto do pequenino que reagiu aos gritos imediatos contra o objeto estofado:

— Mama... — com a força imposta, por um triz, o nariz do menino não foi fraturado através do esforço depositado pelas mãos de Guillerma — ... Mamãe! SOCORRO! — a voz franzina e cortante do garoto abaixo do acolchoado tocaria qualquer coração gélido.

Nunca passou pela sua cabeça que seria a própria figura materna, a responsável pelo ato desumano.

E nesse mesmo instante, a mulher influenciada pelo rancor e sua mente necessitada de emergência, sorriu de forma temível e maquiavélica, quase ambicionando interromper a ação, com o propósito de permitir que seu filho encarasse a executora pela sua morte prematura.

As miúdas mãos agoniadas esforçaram-se para tocar o rosto da mãe quase ocultado pelos cabelos soltos, enquanto arriscava ao agarrar seus punhos, à medida que relutava em permanecer com vida.

Guillerma perseverava em entregar um fim decrépito ao seu respectivo filho.

Drástico e angustiador.

De maneira doentia, sua testa franziu em expressão demoníaca, os lábios estreitaram num sorriso afiado e exultante, além de seu olhar sanguíneo e lacrimejante, ansiosa e apta a presenciar a desistência de uma frágil existência.

Qualquer cristão custaria a declarar que a cruel mulher teria sido tomada pelo próprio demônio.

Mas por um milagre, ao passo em que tudo se findava, o Sr. Callahan despertou do sono ao sentir que algo frígido e pesado arranhava sua perna, cravando garras na extensão de sua pele agora alarmada.

À vista da anterior situação, surpreendentemente conseguiu ouvir os quase imperceptíveis berros dolorosos do filho.

Sucintos clamores de socorro.

¹Acônito: É uma planta nativa da Europa que, se consumida in natura, é tóxica. Porém, costuma ser utilizada no preparo de tinturas e demais produtos naturais. Também é chamada de flor azul e costuma ser chamada de "matalobos" (na fantasia, ela é uma erva capaz de matar lobisomens);

²Manjar: Tudo que alimenta, deleita, engrandece, vigora o espírito ou a alma;

³Casa católica: Membros familiares e herdeiros da igreja;

⁴Enxadrista: Jogadores e estudiosos de xadrez;

⁵Infame: Característica de pessoa ou coisa que provoca desprezo e repugnância: tratamento infame; atitude infame;

⁶Transtorno de Personalidade Narcisista: Trata-se de uma condição mental em que as pessoas têm um senso inflado de sua própria importância, uma profunda necessidade de atenção e admiração excessivas, relacionamentos conturbados e falta de empatia pelos outros.

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