Capítulo 5: Dias de Lamento
*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, PÂNICO, LUTO, AFEFOBIA, INSINUAÇÃO SEXUAL MODERADA E MANIFESTAÇÕES SOBRENATURAIS.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Wayfaring Stranger - Traditional, The Tabernacle Choir at Temple Square, The Piano Guys, Mack Wilberg, Orchestra at Temple Square e Meeting Laura - Reinhold Heil, Johnny Klimek, Tom Tykwer
Quanto mais os meses se aproximam, percebo o tanto que permaneço como um dos poucos a restar no seminário. Entre meras chuvas, calor, folhas secas e neve. Me abraço e prevaleço na solidão, o vazio profundo dos extensos corredores que eram cheios, as salas imensas tomadas por carteiras ocupadas, a refeição diminuiu gradualmente... antes havia o banquete e hoje me junto à mesa com os que sobraram. Até me sinto mais solitário que o comum.
Mas o que não mudou, desde o princípio, nem a me esforçar, sucede no meu constante desejo por Gaya Demdike.
É insano ocorrer justo comigo.
Passei até a considerar que Deus não me permite esquecê-la feito um castigo. De fato, fui amaldiçoado pela morte, mas a minha maior maldição trata-se de amá-la insanamente.
E isso me tortura de uma forma inexplicável.
Choro desesperado em meu quarto por não vê-la e ponderei utilizar cilício entre minha virilha e coxa durante as penitências, talvez ao ser diácono ou me autoflagelar com chicote de cordas nas nádegas de modo a libertar e apagar qualquer resquício daqueles lábios e corpo. Me noto disposto a alcançar a dor de Cristo para ceifar o que alimento por aquela bruxa.
Estou jurado a sonhar com sua amável face, a derme que correspondia a mim. E após as constantes influências dos colegas de seminário, meus pensamentos mais barulhentos pioraram e se tornaram tão nítidos. Quase reais.
Vejo bem como minha mente é um inferno dentro de mim.
Mal imagina o quanto tremulo e jorro entre as coxas o resultado do meu clímax, em razão do suplício de desejos. É doloroso e perigoso.
Através dos jejuns matinais para a oração e adoração ao Senhor, além de absolvição dos meus erros, creio que adormeci profundamente e sonhei com ela disposta em minha cama. Do jeito que penetrei minhas escleras ao perfurar suas roupas. Os seios me atraíram destinado à perdição, ao agarrá-los com calma e chupá-los com força entre os meus lábios que detinham sede. Uma maldita sede que toma meu espírito, preenchido por culpa, me faz perceber que estou perdido.
Por minha amada bruxa. Sugaria até a alma daquela mulher.
Aquelas belas e atraentes pernas expandidas me exibiram algo belo no centro. Uma parte que visei descobrir no instante que quase a tive pela primeira vez. Morro ao pensar que não pude satisfazê-la.
"Por favor, me coma", gemeu no sonho e morri com seu pedido. Fiquei necessitado. Constantemente existiu certeza em mim sobre comê-la das formas mais impuras e imorais possíveis. Aniquilar as forças dela em mim. Fazê-la se comportar, findar as teimosias de suas atitudes e cessar suas provocações ao me afundar com intensidade até proferir em súplicas que a nossa relação se repita.
Minha virgindade não se equipara às minhas vontades ocultas.
E então, a toquei insaciável com minha boca a salivar. De consumir os dedos. Me deliciava por inteiro com seu gosto, entre minha respiração eufórica, sufocado pela falta da lucidez. Me admitiu que eu poderia agir tal qual um faminto. Tinha fome por Gaya.
Aliás, ainda sustento. Mas não aceito comunhões. Sou egoísta porque a quero só para mim.
Não me importaria de queimar a língua. Não sou de ir pelas beiradas. Gozo do estrago que um ser reprimido faz pela inconsequência.
E no meio dos seus arrepios ondulantes na pele, meros pelos e exaustos gemidos, me permiti sentir a mesma lubricidade da textura feito mel, o sabor viscoso inundado por aquela mulher e meus olhos azuis entre meus fios ruivos, fitaram de feitio sombrio enquanto a consumia.
Beber a cada segundo e testemunhar as coxas amolecerem a ladear meu rosto. Exposta diante do meu paladar.
Desejei castigá-la com mordidas dolorosas, fortes chupões para que me aceitasse conforme um desonesto. Visto que sempre a quis olhar de baixo, consoante a um mísero homem na presença da minha dona. Ser réu por um momento do crime que cometi contra a passagem até o sacerdócio.
E eu fui ao decorrer dos devaneios.
As mãos macias, aquecidas, imploravam por mim, uma fincou forte em meu cabelo e a outra contorceu o lençol do colchão. A voz chorosa, trêmula pelo início do orgasmo e excesso da preliminar, me ensinava a passear a língua quente nos detalhes íntimos.
A sugar o ponto principal, encurralar os pequenos lábios na intenção de estremecê-la, desuni-los com meus dedos pegajosos, me embebedar com o que libertava em minha boca.
Sequer pensei que Gaya choraria tanto em minha língua a tocá-la com leveza, apreciação. Suas "lágrimas" escorreram em minha boca, transitaram pelo meu queixo e pomo, por onde eu deveria penetrá-la com arrependimento feito um hipócrita. Sem controle nos espasmos.
Deus...
Passaria um dia completo apenas a entregar o que minha bruxa deseja e merece. Contudo, por infelicidade, jamais poderei. Entro em conflito eterno.
Abandonar sonhos é a gênese do que me tornarei. E torço para nunca a ver outra vez.
Suponho que me mataria ao lhe enxergar perante a mim. Agora sou um monstro não tão contido. Se existir uma pessoa incontrolável neste vasto mundo, Pai, entenda ser eu.
Nunca mais estarei consciente próximo de Gaya Demdike. Seu perfume em meu olfato é provocante, sua voz em minha audição é arriscada, seu calor perto do meu torna-se crítico. Pai, não permitirei traçar caminhos com meu amor. Vivo numa paixão agressiva, obsessiva e não devo ter a mente sã com a proximidade dela.
Não haverá promessas. Resulta num aviso.
Uma tempestade de chuva inundava Rye após meio-dia, entre poças que se formavam, lagos e folhas das árvores que balançavam pela ventania. Também era belo a forma que a água batia forte contra as flores, as pétalas molhadas e o piso do jardim no seminário.
Era como Franco visualizava. Tudo a ruir pelo temporal.
Pensativo e encostado numa das pilastras a fim de admirar a vista cinzenta, Kansas, comedido, se achegou nele sem tocá-lo. O seminarista mal se esforçou para virar na direção do clérigo. Apenas começaram um diálogo gélido sem qualquer contato visual.
— Sabe, Padre Kansas, há um período não percebia como a chuva é fria por aqui — de sua boca o ar saía gelado e suas irises brilhavam defronte a luz. — Eu achava que chover em qualquer recanto de Rye fosse igual.
— No lugar mais remoto da cidade, a chuva chega de uma maneira — olhou abatido para o rapaz quieto, sem muitas recepções.
— Parece lavar tudo. Um banho intenso. Como estou sendo aqui. Lavado até a alma — sorriu de canto e puxou os dedos das luvas.
Os óculos quase embaçados refletiam flores a balançar por culpa das águas maçantes.
— Sempre ao conversar com você, carrega um pesar. Já lhe disse haver oportunidades para desistir — respirou cansado. Expunha exaustão ao explicar que o jovem poderia abandonar sua vida no seminário. — Já falou tanto que ama alguém. Não deixaria por ela?
— Largaria até a minha existência nas mãos dela. Aquela mulher... — espremeu as pálpebras de modo a manter o controle — ... ela toma conta dos meus sentidos.
Padre Kansas, posicionado um pouco atrás, o notou enxergar de soslaio entre as lentes logo que abriu os olhos.
— Consumi planos para nós dois. Mas passei tanto tempo a ser uma vergonha, que depois da morte dos meus familiares, é o mínimo que posso fazer para me redimir com Deus — enlaçou os braços e se aqueceu. — Não há mais espaço em mim para a felicidade.
— Acho não ser você quem precisa disso. Aliás, nem deveria estar aqui — converteu-se impaciente. — Instituições cristãs não se encaixam com quem se tornou, Franco Gregori. Liberte-se dessa prisão.
Lidava com Franco e o que ocorria em Londres. Sua sobrevivência estava por um fio se fosse descoberto.
— Não tem poder em dizer o que devo ou não fazer, padre. Caso um dia eu solicite sua opinião, acatarei com valor.
Sabia que, a qualquer instante, o Gregori soltaria a língua afiada feito de costume. Todavia, se blindou após tempos na presença dele.
A arma do seminarista provinha em contra-atacar com palavras.
— Não temo mais suas palavras ásperas, Franco — ríspido, o cortou. — Nem sequer sua avó merece isso. Todos sabem como ela se comportava e os pensamentos abissais enquanto vivia. Cumpre algo por quem nunca mereceu. Não pensa um pouco sobre?
Franco se tomou em silêncio pavoroso.
— Deus estaria feliz em lhe assistir a viver com algo ou ao lado de quem ama. Você mesmo gosta de se martirizar. Me perdoe, entendo seus traumas, mas se mostra aos poucos feito um masoquista. A aceitar dores físicas e emocionais. Pare um pouco de se machucar por quem não está mais aqui. Os que vivem precisam de você.
Franco teve de engolir seco. Entortou os lábios rosados, o pomo evidente moveu-se a ingerir saliva áspera e compreendia o tanto que se equivocou em suas escolhas.
Ainda com os lábios reprimidos, só concordou cabisbaixo. Situava-se puramente indisposto.
— Kansas — outro padre se aproximou e se intrometeu na falação. — O bispo chegou.
— Abra os portões e o guie abaixo de um guarda-chuva. O receberei em segundos — sinalizou que acatasse as ordens.
— Certamente. Com toda minha licença — o segundo sacerdote mirou desconfiado para o Gregori e passou ligeiro, a sumir pelo corredor.
— O que o bispo deseja?
Nessa oportunidade, resolveu encarar Kansas. Não se afastava das informações quando lhe despertava a curiosidade.
— Dez de janeiro acontece a formatura. O bispo já se encontra presente para as festividades do fim do ano e ficará até o momento que se formarem. Portanto, que venho com o conselho até você, Franco.
— Não preciso de conselhos... não preciso... — a personalidade era irredutível. — Por favor, Kansas — ergueu o queixo e encarou o amigo com acidez.
— Necessita, sim — persistia, ao passo que o jovem repetia, irritante.
— Não necessito de conselhos, Kansas! — os dedos passaram entre os fios ruivos do cabelo e ele estava inconsequente, rebelde feito um garoto cheio de mimos. — Que merda! — xingou baixo no intuito de evitar ouvi-lo e bateu uma das mãos contra a parede.
Não parecia ser o mesmo.
— Faça o que considerar necessário — apontou o indicador para a face dele, disposto a encurralar sem proximidades. — E não me venha depois pedir bom senso se descobrirem que seu sacerdócio é falso! Sei que falhará como padre na primeira chance que reencontrá-la — sussurrou num tom grave.
Irado entre a feição ranzinza que há tempos não se evidenciava, Kansas apressou os pés apartados de Franco. Era certeza que no próximo dia ou até mais tarde, ambos se resolveriam. Mas não prosseguiria a conversa com uma pessoa sem vontade para estar bem ou melhorar.
Todavia, Franco Gregori se dispôs a cumprir seu papel.
"Dane-se todos! Cansei de controlarem meus passos e sobre o que devo fazer. Se eu tiver que estilhaçar, dane-se! Que eu me estilhace."
Incomodado, retirou as luvas por segundos e as colocou nos bolsos da calça. Sua cicatriz era notável e aumentara durante os anos. De maneira estranha.
Conforme uma raiz amaldiçoada a crescer na pele do jurado a morte. Se encontrava lá de modo recordar do que vivenciou para estar ali em seu estado atual.
As luvas ocultavam os traumas aparentes, resultava em negar e reprimir o medo. Mas também lhe confortavam. Kansas não entenderia, os outros não entenderiam e até Gaya Demdike se incluía nisso.
Franco insistia em lembrar que, até usá-las, tratava-se de um autocontrole. A consciência resistia confusa e em partes, entendia que remover a peça de couro, emanava liberdade. Entretanto, não se sentia livre por inteiro. Nem mesmo Kansas causava um conforto, acalento.
Era seu amigo, mas havia uma comedida manipulação. Os atos remendados por culpa do cristianismo transitavam entre a distorção e a lucidez.
O passado construído por dominações o fez se sentir um boneco de ventríloquo.
Ao subir e repor as luvas, entre as escadarias até alcançar o dormitório, a janela de seu aposento proporcionou a visão dos padres a receber o tal bispo com um guarda-chuva.
O homem se compusera num solidéu rosa magenta posto na cabeça, uma cruz de ouro de dez centímetros pendurada no pescoço, batina preta com detalhes do mesmo tom que o detalhe na cabeça... se tratava dele, o que testemunharia a etapa dos seminaristas em diáconos.
As línguas ao vento afirmavam que o bispo protegia a igreja em Rye e seus integrantes como filhos legítimos. A incluir qualquer dificuldade dentro da entidade católica.
Com o auxílio do Vaticano e ao interceder, o bispo mantinha as ordens no seminário e se expunha preocupado com algumas situações. Acontecimentos alarmantes.
O representante da igreja e Kansas sempre caminhavam em meio à expressão de medo. Não se sabia o que conversavam além de mudanças na instituição e outras importâncias católicas.
Franco apenas entendia a angústia por assistir à face penosa do bispo em sua direção.
O bispo aparentava saber de tantas coisas por trás junto ao Kansas e reprimia por receios. O Gregori era observado e julgado tal qual um coitado.
10 de Janeiro de 2018: Dois dias após o último Quarto Crescente
O dia tão almejado por Franco e os seminaristas que restaram, chegou.
Apesar de demorar um pouco para regressar à sua residência, ele havia arrumado as malas, ansioso para partir aos seis meses de preparação como diácono numa casa paroquial em Edimburgo e que chamavam de Mosteiro da Cidade Velha. Na intenção de principiar oficialmente a trajetória sacerdotal.
Nervoso feito nunca, Franco se preparou com os trajes de formatura na cor preto e vermelho, organizou os cabelos penteados e aparados no interior do capelo, e seguiu até a janela do dormitório no intuito de avistar a chegada do ônibus que levaria os formandos e demais membros até a Igreja de Cristo, em Oxford. Localizado na própria universidade.
Os beiços tremiam inquietos para a última missa como seminarista. A próxima, se trataria como diácono.
De repente, num terceiro suspiro aflito, alguém bateu na porta no exato instante em que o amaldiçoado assistia os colegas do seminário se ajeitarem e entrarem no automóvel.
Foram os que sobraram e se uniriam com alguns outros formandos da Inglaterra.
Ao sair do transe temporário, entre as emoções que fervilhavam em cada particularidade de seu corpo, a incluir o receio, Franco abriu a porta além do sorriso receptivo para atender a visita.
— Ainda sobrou tempo de desistir, caro Gregori.
Kansas, num traje formal de clérigo, segurava um sobretudo verde-esmeralda no antebraço e ansiava em reverter a decisão do rapaz impulsivo que desmanchou o sorriso. O Gregori cansou de relutar.
— E para onde irei, Padre Kansas? Ainda me ocuparei ao ser designado padre. Retornar à minha casa é como me deitar voluntariamente num caixão. Com Deus sinto a vitalidade, estou tranquilo. Em paz.
— Uma paz projetada para escapar de suas lamentações, meu jovem.
"Qual o sentido da vida para quem fora marcado pela morte?"
O Gregori conteve o pensamento, pois sabia que Kansas passaria duas horas exatas a conceder sermões.
Porém, o Gregori não tinha culpa, se estudou filosofia por tanto tempo naquele seminário. Contudo, desistiu de expor o que pensou, visto que seria vencido pelo cansaço e se atrasava para entrar no veículo.
— De toda maneira é uma paz. Talvez ilusória? Ao pensar um pouco mais... — seu peito inflou e manteve um falso conforto — ... sim. Mas essa paz projetada me conserva plácido acerca do que já passei em vida.
Franco ajeitou o capelo na cabeça, pegou a chave do quarto pendurada na parede e passou pelo padre que aguardava sua saída na companhia do seminarista. Suas coisas foram retiradas bem cedo do recinto, assim como as dos demais e existiam bagagens empilhadas na entrada.
Ao fim da cerimônia, voltariam para buscar.
— Vamos, Padre Kansas. Nos esperam — o convocou.
Kansas caminhou em direção a Franco e relutou em apoiar uma das mãos sobre o ombro daquele rapaz martirizado por consequência do passado e pôs por dentro do bolso de sua calça.
A expressão do reitor transmitia piedade, olhos opacos iguais aos do seminarista e os lábios contidos numa linha reta, aprisionava a pena pelo Gregori.
— Hoje o dia será melhor, caro Gregori. Mandei preparar algo que talvez conforte o seu coração.
Os seminaristas acreditavam que somente eles se formariam naquele dia, contudo, ao se depararem com mais ônibus de viagem no local da cerimônia, se certificaram ao contar com mais cinco seminários católicos espalhados pela Inglaterra. Se tratava de uma formatura comunitária.
O ambiente imponente de arquitetura gótica como um majestoso museu, com estruturas elevadas e pontas semelhantes à catedral de Notre Dame, engoliu os seminaristas que
cochicharam empolgados e seguiram em fileira direcionados ao jardim principal da instituição. Onde havia cadeiras de plástico enfileiradas de frente a um tablado montado, apoiadas sobre um gramado bem esverdeado.
Complementado por assentos dos respectivos membros da igreja, fora um púlpito com microfone embutido e ao lado uma mesinha com incontáveis diplomas a formar uma pirâmide.
Existiam cestas de begônias tuberosas¹ na cor coral em todo o canto, o céu se mostrava glorioso no azul bebê e o sol brilhava no mês, na qual ainda era inverno.
Os restantes dos seminaristas de outros lugares se expuseram sérios, opostos aos colegas de Franco.
Com isso, sem buscar por amizades no momento, o amaldiçoado se sentou na
primeira cadeira que visualizou e alcançou, a encarar o palco, sem perceber que existia marcação de nomes.
Além dos formandos, as famílias que os correspondiam se apresentaram vestidos em trajes adequados para a ocasião.
Os estranhos estudantes se aproximavam dos seminaristas de São João para se reverenciarem antes dos ritos iniciais e Franco observava tudo aquilo de pernas cruzadas, a balançar um único pé no sapato oxford preto.
Às vezes limpava os óculos de lentes opacas pela repentina brisa fria e respirava impaciente ao esfregar as duas palmas com luvas a ansiar que aquela espera se aniquilasse.
Distante, a conversar com demais reitores presentes, Padre Kansas avistou um único seminarista solitário sentado na cadeira, de costas, junto aos cabelos acobreados iluminados pelo sol em meio às nuvens.
A pedir licença, se distanciou dos senhores e caminhou de mãos lançadas para trás na direção de Franco, que de repente se assustou.
— O que faz, Franco? — cochichou sem se aproximar, notou o rapaz
sacudir o pé de modo inquieto, olhar para os lados e suar frio. — Deseja sair um pouco, respirar, tomar uma água...
— E-eu — perdido, gaguejou. — Eu quero minha família, Padre Kansas.
Fixou os olhos alarmados no clérigo que curvou as sobrancelhas. Uma das pálpebras tremia, sufocante para se testemunhar, Kansas apenas se agachou, reclamou das dores musculares pela idade e apoiou uma das mãos numa das cadeiras que ladeava o seminarista.
Doeu tão profundo, cortante, feito estigmas nas mãos de Cristo.
Palavras a pairar no sopro do inverno, conforme um martírio.
Parecia o mesmo garoto indefeso do passado que Kansas jamais conheceu. Franco Gregori não possuía mais ninguém de sua família. Estava sozinho, preenchido de medos e pesares.
A pessoa mais importante que precisava naquele momento familiar, partiu cedo nas águas do Rio Brede quando detinha seus onze anos. E por infelicidade do destino, o último Gregori testemunhou a morte do amado pai que tanto o amava.
Kansas, apesar de apreensivo em falar algo que piorasse a condição, olhou de baixo para Franco, que focou na grama, respirou fundo e recuperou na memória a mesma contagem que o Dr. Kai o ensinou enquanto criança.
"Lembre-se, Franco. Ninguém está aqui, todos morreram. É fundamental aprender a ser só, pois, no caixão, nenhuma das pessoas que ama te acompanhará logo que a terra lhe engolir no dia do fim", um mantra pregou em sua cabeça.
A situação penosa demorou exatos nove minutos, entre manter o ar inspirado pelas narinas a seguir até os pulmões e libertar-se mediante os lábios.
Tudo que transitava longe do foco daquele rapaz, passava em câmera lenta, vultos distorcidos, vozes a desvanecer em sua audição, um zumbido tomado e então, assim que retornou aos sentidos, encarou Kansas preocupado e sentiu-se aliviado por não estar desacompanhado.
— Estava em crise, precisa retornar ao seminário.
De repente, no instante serviam água gelada antes da cerimônia e sem pedir licença, Kansas apanhou um copo d'água, quase derrubou o líquido em sua mão e assustou o garçom que servia naquela ocasião.
— Desculpe-me, jovem. Essa batina esquenta demais — riu desconcertado, direcionado ao garçom e entregou com cautela o copo ao Franco.
— Kansas, foi uma mera crise, mas estou bem agora. Consegui me controlar. Não é como nos velhos tempos — engoliu quase tudo. Deu para escutar o líquido descer pela garganta.
— Não é como nos velhos tempos... — imitou num deboche. — Mentir alimenta...
— O diabo. Eu sei, eu sei. Estou bem. Só um pouco impaciente com tantos desconhecidos num único local e essa celebração que não se inicia, torna tudo mais torturante. Sei que ainda falta bastante para ser padre, mas seria ideal adiantar esse processo, não acha? — bufou chateado.
Kansas mirou as demais cadeiras, até avistou uma senhora de oitenta anos o galantear à distância que acenou os dedos como se interessasse pelo sacerdote. Ele se apavorou a refletir em sua expressão de pânico e voltou a buscar nas cadeiras por algo, até focar em uma que se localizava na ponta das fileiras posicionadas ao lado direito.
— Lembra que antes de seguirmos para cá eu havia dito que mandei preparar alguma coisa que pudesse confortar seu coração? Tanto que essa cadeira não é sua, é do Rilian Strong — Franco confirmou com a cabeça e expectou pela resposta do padre. — Só não sei se isso
pode incentivar a ansiedade ou acalmar sua alma, meu jovem.
— Diga ou mostre-me, Padre Kansas. Talvez eu me sinta acolhido.
— Me acompanhe.
Kansas levantou-se com o apoio da cadeira, resmungou das dores, se esticou e o guiou até o assento que pertencia ao seminarista.
Ao parar de frente à cadeira, Kansas aguardou o rapaz e apenas se manteve em silêncio diante das conversações no ambiente.
O Gregori buscava a família no espaço de tamanha importância, mas Kansas aparentava saber que num momento tão relevante, um ato simbólico faria o jovem feliz.
E então, os ombros de Franco caíram relaxados, quando antes se mostraram tensos. Os punhos fechados, reprimidos, se abriram e os pés pinicaram. Mas não se tratava da ansiedade.
As sobrancelhas murcharam, os lábios se desataram a sugar todo o ar e ele notou perder as forças nas pernas, mas não queria se jogar de joelhos no chão. Sabia que precisava ser forte, por ser um sobrevivente.
Os olhos rondaram um papel pregado na cadeira próxima à que correspondia ao nome dele.
Resultaram em duas cadeiras afastadas das restantes, que não chamavam tanta atenção. Porém, para Franco, testemunhar aquela cadeira ao seu lado, equivalia ao conforto eterno. De um filho amado e que entraria num acordo com Deus, destinado a trocar de vida com o pai.
Franco Gregori Callahan I.
O nome do seu querido e saudoso pai fora preso na cadeira que ele encarava. As silentes lágrimas contornaram os detalhes do rosto e despencaram na grama feito gotas preenchidas de lembranças.
Por um átomo, jurou ter escutado "Bohemian Rhapsody" tocar em sua memória misturada nos últimos dizeres do falecido pai. Uma música que significava tanto ao futuro clérigo.
Franco soluçou, os lábios ficaram rosados, bochechas igualmente. Sentiu um arrepio num segundo e os dedos enxugaram os cantos dos olhos ao passo que se esforçava para agradecer ao Padre Kansas.
— E-ele está aqui, padre. E-ele veio me ver — a voz embargada se alinhou às escleras vermelhas por culpa do choro, enquanto Kansas coçava as mãos para não encostar no ombro do rapaz, em busca de transmitir a verdadeira paz. — Mu-muito obrigado, padre. Me faltam palavras...
Mais uma vez se debruçou em lágrimas e a voz afinou aos prantos.
— Está tudo bem, Franco. Se permita chorar — o assistiu soluçar e resgatar lágrimas com as costas dos dedos. — Chore o que considerar necessário, meu amigo.
Após o acontecimento que tomou Franco em fortes emoções, todos já se acomodaram nos assentos, ansiosos num sorriso de orelha a orelha, a testemunharem a subida imponente do bispo no tablado.
Sua face serena de bom senhor, cativou a maioria naquele espaço. Cabelo alvo feito a neve, transmitia uma "aparência celestial", segundo os cochichos atrás de Franco, que escutava tudo ao revirar os olhos.
O tratavam numa proximidade com Deus. O que chateava o Gregori.
Logo que a cerimônia se iniciou com a bênção do Dom Hill, todos se dispuseram de pé e respeitaram a ordem. Num total silêncio, a oração do Pai-Nosso foi propagada por vozes masculinas, incluindo a do religioso que ecoou no ambiente.
No instante, o Gregori fechou os olhos e entre a prece, escutou um sussurro feminino quase estridente que contornou sua presença e o fez abrir as pálpebras.
Desse modo, de olhos alarmados, um arrepio percorreu seu corpo que em momentos anteriores se mostrava tranquilo.
A seguir do calafrio, Franco transitou o olhar orientado a uma janela, na qual o interior escuro transpareceu uma silhueta medonha de globos oculares aterrorizantes, como se as escleras tomassem o lugar das irises. Madeixas desgrenhadas corridas, uma das mãos a acenar em sua direção num sorriso monstruoso, apavoraram o rapaz.
Aquilo se dispôs a perturbar o seminarista. Talvez queria mostrar que estava ali na ocasião tão esperada.
Os olhos do ser demoníaco hipnotizaram e petrificaram o Gregori, que se prendeu num vazio ainda habitado por aqueles que se faziam presentes.
Da mão esquelética que acenava, caíram folhas secas que viraram pó.
Franco sentiu um frio congelante e notou o cair de flocos de gelo. Aquilo tinha o domínio de manipular sua mente ou interferir na atmosfera.
Ele temeu.
O pensamento de Franco conversava consigo e o trouxe para a realidade por incontáveis
vezes: "não ceda seu espírito".
E por um átomo jurou que algo maior surgira detrás da figura. Uma força, como uma aura branca a tomar conta do interior resguardado pela ventana.
O ser desmanchou o sorriso maligno, sua cabeça presa ao pescoço girou ligeira como bolas de bilhar numa mesa e num ato súbito a assombração foi sugada para trás, a desaparecer na escuridão.
O nome de Franco fora chamado por uma voz masculina e então, ele recuperou os sentidos ao notar que um dos padres segurava impaciente o microfone na mão direita e um diploma na esquerda, aguardando a ascensão do seminarista que evidenciou ser o único de pé até aquele momento.
Aterrorizante e constrangedor.
Suas malas estavam prontas, dispostas ao lado de várias que pertenciam aos outros seminaristas que se despediam dos familiares no seminário. Seguiriam para outras cidades ou países no propósito de se tornarem diáconos e ordenados padres.
O quarto que o acolheu deparava-se arrumado feito na primeira vez que chegara. Seu foco seguia em Deus e na sua consciência não existia como se desvencilhar da missão.
E ao carregar uma das bagagens, na entrada da instituição, um dos colegas ousou falar:
— Ei, Franco! Dizem que cada seminarista quando partem daqui, levam algo consigo. E o
que guardou nas malas? — levantou a bagagem ao interromper o amaldiçoado.
Os demais aguardavam atentos, ao considerar que o Gregori soltaria algo que os fizesse rir. Era de costume sair alguma coisa engraçada dele ou revoltas da vida.
— Todas as folhas secas do outono, o luto e a saudade — lançou uma piscadela na direção
do colega. — Sirvam-se da felicidade. Estou à procura da minha paz.
Contudo, havia algo simbólico e oculto numa das malas.
— Que Deus te acompanhe, Gregori.
— Até onde Ele permitir, Oren.
Seguiu, desceu a escada e entre o portal, inspirou fundo o ar gélido e sorriu de olhos fechados até seguir e guiar seus pertences ao fusca.
Enquanto se organizava, Kansas se aproximou para se despedir e conversar brevemente com o rapaz. Construiu um forte laço de amizade com aquele seminarista.
— Logo que chegar em Edimburgo, um dos padres lhe guiará na cidade e na casa paroquial. Seus anos aqui foram exemplares, Franco. O bispo sentiu que não precisaria expandir tanto tempo como diácono transitório e viu a possibilidade de se tornar padre ainda neste ano em dois meses. Estarei lá no dia da ordenação para lhe apoiar.
— Obrigada, Padre Kansas. Anseio manter a comunicação de sempre — um dos braços se ergueu, pôs as bagagens amarradas por cima do teto do veículo e se direcionou ao reitor.
— Manterei. Em breve deixarei o seminário para prosseguir com meus estudos e me transformar num bispo feito o Dom Arlo Hill. Acho que nos encontraremos com frequência nos próximos períodos. Posso até levar um vinho como lembrança, só não beberei — riu, enlaçou os braços e observou Franco entrar no lado direito do automóvel.
— Então podemos nos ver novamente. Fico feliz que queira se tornar um bispo. Espero até lá conseguir apertar sua mão por tudo o que fez por mim. Cuidarei do meu psicológico antes de conviver com os fiéis.
Inseriu a chave e o motor ligou bem na hora que fechou a porta, abriu a janela e pôs as duas mãos no volante, a observar o padre se sustentar no teto do veículo.
— Se sentirá bem sozinho? Aliás, não estará solitário, pois um padre ficará responsável por você. Sabe disso.
— Me sentirei bem, Padre Kansas. Inclusive, preciso estar preparado para a "imposição e unção das mãos". Ainda não confio em tantas pessoas para me tocar, mas considero que tudo seguirá nos conformes.
O rito se trata de um processo necessário para a ordenação de um diácono transitório até um padre batizado por seu superior.
Há o contato direto quando o bispo posiciona suas mãos sobre a cabeça do sacerdote na intenção de conceder as bênçãos. E na unção, as mãos do diácono ajoelhado se unem em reza para a recepção de faixas pelo bispo, que firmam o compromisso e são retiradas por familiares ou de vínculos próximos para ser enfim apresentado como um padre ao povo.
Todavia, a ordenação sacerdotal varia conforme a localidade.
— Só aceite até onde atingir o limite, caro Gregori — se afastou do fusca e permitiu que Franco
pudesse seguir.
— Deus lhe abençoe, Padre Kansas! Até mais! — exclamou ao dar partida no carro e enxergá-lo acenar mediante o retrovisor.
— Até mais, Franco — sibilou triste sem que o seminarista percebesse. O Gregori se distanciou na estrada. — Que Deus te zele, caro amigo.
¹Begônias tuberosas: A begônia tuberosa faz parte de um grupo de espécies de Begônia, considerada por algumas pessoas como umas das mais espetaculares plantas híbridas do gênero. A doença mais comum desta begônia é o oídio, ocasionada por um fungo com aparência de pó esbranquiçado.
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