Capítulo 35: A Insânia e Ruína do Sagrado
*ALERTA DE GATILHOS: CRIMES DE ÓDIO, ANSIEDADE, PÂNICO, DEPRESSÃO, PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA, SEXISMO, MISOGINIA, BESTIALIDADE, VIOLÊNCIA EMOCIONAL, VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA, FOME, DESIDRATAÇÃO, TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO, IDEAÇÃO SUICIDA, TENTATIVA DE SUICÍDIO, HORROR CORPORAL, EXPOSIÇÃO DE CADÁVERES, ÊMESE, MORTE, ASSASSINATO, TRAUMATISMO DO GLOBO OCULAR, PERDA DE VISÃO, PERDA DE AUDIÇÃO, MUTILAÇÃO, LESÕES FÍSICAS, INCÊNDIO, SEQUESTRO, TORTURA, SITUAÇÃO DE REFÉNS, VIOLÊNCIA FÍSICA, ENCARCERAMENTO, VIOLÊNCIA COM OBJETOS CORTANTES, CRIME ORGANIZADO, MASSACRE, TUMULTOS, DESASTRES NATURAIS, MANIFESTAÇÃO PARANORMAL, SANGUE, HUMILHAÇÃO PÚBLICA E EXPOSIÇÃO FÍSICA.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Tragic - Tommee Profitt, Fleurie, Which Witch - Florence + The Machine, My Tears Are Becoming a Sea - M83 e Shuffle Around - Joe Vann
*CAPÍTULO SEM REVISÃO MINUCIOSA.
3 de Março de 2019
Sua visão embaçou tanto que ele duvidou ser a ausência dos óculos ou por culpa dos socos recebidos. Contudo, mal notou um dos supercílios cortados e o olho lesionado instantaneamente inchou ao ponto de arder e latejar. Cortes abertos fediam a ferrugem recente misturada com suor. Todo o ódio acumulado contra o Gregori, foi descontado na bela face.
Bem amarrado a uma cadeira da cozinha de sua residência, seus braços foram envoltos atrás na madeira e os pés, contidos pelas cordas ásperas, rasgavam camadas finas da pele. Sufocado, Franco cuspiu todo o sangue preso na garganta quando direcionaram os socos nas costelas para fazê-lo perder a consciência.
Golpes em locais com ossos são agudos e com o passar do tempo, a dor irradia pelo corpo num simples tossir, respirar e espirrar. Foi o que fizeram. Com uma das folhas arrancadas do jardim, instigaram cócegas próximo das narinas, fazendo-o espirrar. A cada espirro, Franco se contorcia na cadeira, ao ponto de desejar a morte imediata na sequência de um desmaio.
— Hill disse que para preparar a carne precisa amaciar bem. Então, suponho que depois continuaremos. Ele gosta do carinho que oferecemos — cruel, um dos encarregados zombou deslizando maldade entre os lábios.
Entorpecido de suor e sangue, a cabeça do ruivo pendeu para frente, contra o peso do corpo que relutava para trás. Em partes se sentia fraco, ínfimo e rendido ao desgaste.
— Continue a pressioná-lo, ele permanecerá calado — outro instigou com um sorriso labial venenoso. — Não seja covarde! Mostre a ele o quão é inútil!
Franco tossiu novamente e rangeu os dentes para não gritar.
— Mais uma vez: onde estão os malditos bens da sua família, Franco?
O padre ergueu o rosto do Gregori e apertou a mandíbula fragilizada pelos golpes no rosto. Além de que o ruivo foi totalmente despido da cabeça aos pés, humilhado, preenchido por fraqueza e hematomas roxos na pele alva. À beira do irreconhecível.
Logo que o apanharam desprevenido enquanto dormia, quatro homens em cada lado da cama prenderam pernas e braços para evitar que debatesse, rasgaram suas vestes com tesouras, o arrastaram até o banheiro localizado no quarto de Moniese e afogaram seu rosto na banheira com gelos até ele se afogar. Por fim, o puseram exposto ao frio da sala para gargalharem de sua situação.
A cada método de tortura, Franco perdia qualquer racionalidade. Mas não tanto quanto no instante que encarou seu reflexo na banheira antes de ser afogado. Tudo foi recobrado num átimo. Tudo o que desejava esquecer.
— É melhor expor antes de jogarmos um balde gelado na sua cara miserável e convenhamos, hoje, Rye está congelando — também pensou em algo que poderia afetá-lo profundamente. — E antes de trazermos sua bruxa da mesma forma que você se encontra. Porque se não ouviu dos meus companheiros, a pegamos — mentiu esboçando falsa vitória. Franco ergueu o rosto pesado para encará-lo, mas tudo estava bastante embaçado e escuro. — Você possui um trato registrado conosco. Deixe de ser protetor. Não foi o suficiente confiscar algumas coisas?
— E-eu queimei e quebrei tu-tudo — sua voz fraca instigava pena. Sua situação física era decadente. — Não tenho mais nada. Vocês levaram as coisas mais valiosas da casa.
— Mentiroso! — gotículas de saliva voaram e um tapa forte planou numa das bochechas do ruivo. — Seu merdinha!
— Jackson, nem piore a situação. Precisam dele vivo e ainda arrumado — pôs ambas as mãos sobre o ombro do padre que o rejeitou ao sacudi-las.
— Pouco me importo! — acariciou a própria mão que agrediu e pensou num ato mais visceral.
Um chute. Somente um chute fez o Gregori cair de costas com a cadeira e bater a cabeça no piso. De lábios estremecidos, Franco sustentou o choro para ocultar fraqueza. O ciclo de violência não acabara e se perecesse naquele instante, que falecesse com todos os segredos para frustrá-los.
— Tragam logo o Artur aqui — apontou e ordenou aos outros malfeitores. — Ele possui mais coragem de fazê-lo soltar a língua...
Nem precisou subirem. Passos e mais passos calmos preencheram os degraus com um som abafado. Artur McNeill, com o ouvido prejudicado e isolado em curativos, sorria prazeroso por mais uma noite de acerto de contas. Sua mão esquerda deslizou no corrimão para sentir a maciez da madeira polida e ao atingir o piso, gargalhou grave feito um demônio, realizado com a desgraça imposta contra o amaldiçoado.
À medida que se aproximava do inimigo, McNeill apreciou o Gregori caído se afogar em vermelho. Suas costelas ardiam dolorosas quando tossia para cuspir o sangue acumulado na boca.
— Franco, Franco, Franco... — se abaixou e levantou o puxando pela garganta, asfixiando por segundos. Até o erguer com a cadeira presa ao corpo e assisti-lo recobrar a consciência, fora a respiração. — Naquele dia que tentei te matar, sua mulherzinha me deixou surdo de um lado do ouvido e rasgou a pele do meu rosto, lembra? Consegue ver a obra artística que ela fez? — exibiu o curativo na orelha e cascas de ferida na pele. — Aposto que ela te salvou após tê-la comido com esse negócio murcho e mijado. E você não imagina o quanto desejo cortar esse pênis fora. Contudo, compreendo que essa sua vontade de nos prejudicar, reside há períodos nessa cabeça imunda.
Do bolso traseiro da calça de alfaiataria, sem o ruivo nem ter percebido, Artur retirou uma pistola com silenciador já preparado e centralizou na testa de Franco, que sentia seu corpo tremer, prestes a convulsionar. O padre destravou a arma, ansiando para a primeira bala ultrapassar o crânio e criar um buraco no cérebro que considerava corrompido. Ninguém ouviria.
— Tem medo de morrer como seus parentes? Torci que um dos herdeiros Gregori faleceria com um furo na cabeça. Mas Arlo deseja fazer algo mais teatral, da maneira dramática que ele ama. Entretanto, me permitiu gravar algumas cicatrizes além dessa na sua mão. Só para não esquecer desse dia.
Removeu o cano da testa após fazer menção a atirar, no entanto, a trava foi novamente acionada. À medida que Franco reorganizou a respiração, Artur repassou a arma para um dos parceiros ao lado e algo trocou para sua mão.
— E da mesma forma que sua bruxa fez comigo, considero justo que mereça sentir o mesmo. Essa cicatriz agora será mais uma das que te marcará na vida, Franco. Toda vez se lembrará de mim. Um dos seus carrascos.
Um líquido escorreu no lado esquerdo do seu pescoço. Gradualmente uma dor cortante, aguda, torturante, tomou seu ouvido e percorreu feito uma febre infernal por toda pele de seu corpo, ao passo de fazê-lo desejar arrancar cada pelo fora. Franco guiou a mão esquerda até a orelha, entretanto, algo bloqueou o toque para a compreensão. A estrutura de uma tesoura pesada, cravada em seu ouvido, tomou forma no tato e ele percebeu qual o tipo de vingança que Artur buscava no segundo.
Um misto de horror, desespero e tristeza se apossaram de seu rosto pálido e antes que ele gritasse, uma pancada bem forte na nuca e a visão escurecendo feito cortinas, o fez apagar em instantes na cadeira.
— Mandem o médico descer para resolver esse problema, limpem o mijo, o sangue, as fezes e preciso comunicar ao Hill.
Limpou a mão arrastando o sangue na própria calça.
— Depois que ele se recuperar...
— Depois que ele se recuperar, raspem o cabelo dele, cuidem das feridas e já separem as vestes do dia para que ele vista. Como o Franco é um covarde, não sairá dessa cidade.
Em segundos, da porta de entrada, um médico idoso se aproximou de Franco, oscilando em desmaiar. Talvez, pela profundidade da perfuração, viveria tal qual McNeill. Porém, pouco se falou de um dos olhos.
5 de março de 2019
Duas mãos agressivas de cada lado o arrastaram para algum lugar que ele sequer conseguia visualizar o percurso. Até aquele instante, pressentiu que o locomoveram após drogá-lo. Seus joelhos fracos traçaram um chão de areia, surgiram cortes na pele sensível e notou-se distante de casa. As ruas de Rye não se formavam com areias. Seixos eram mais lisos que grãos de areia. Sua compreensão dificultava bastante por culpa da venda em seus olhos e o pano imundo enrolado na boca com gosto de ferrugem.
O cheiro de mato inundou seu olfato aguçado e a festa dos grilos denunciou o ambiente. Provavelmente um jardim? Uma floresta? Campo aberto? Contudo, o barulho de uma porta pesada, provavelmente de ferro, rangeu ecoando.
A algazarra de corvos distantes sobressaltou o ruivo até os joelhos descolarem do chão por novamente ser arrastado pelas axilas, destinado ao princípio de uma escada. À medida que o levavam, sentia descer degraus. Franco contou uns sete na mente pelo barulho dos sapatos e cada impacto do seu corpo cedendo nos batentes. Queria ser forte, mas abaixo do pano as lágrimas cederam por imaginar que não sairia vivo daquele pesadelo. Até que o soltaram após outra porta pesada ser aberta e seu corpo chocou contra o piso de onde nem enxergava. Era frio, mofado e úmido.
"Pode chamar o Hill", um dos homens cochichou até deixar o Gregori solitário assim que fecharam a porta.
Longos minutos se passaram, seu corpo estava dormente, os pés formigavam e nem ao menos um banho resolveria toda a impureza que ele sentia por aquela situação. E então, a porta antes fechada se abriu de novo. Um silêncio dominou o recinto e se rompeu com passos de madeira e uma respiração cansada que percorreu as paredes. Uma delas, Franco se encostou, temendo que o machucassem mais uma vez. Mas a sensação de alguém estar na sua frente, o calor de um corpo insensível, o tomou em diversos sentimentos angustiantes. E num susto, o tecido em seus olhos fora arrancado e percebeu ter caído num sono profundo, pois suas mãos e pés foram atados em cordas e algemas. Antes, somente suas pernas estavam livres.
— Olá, Franco!
Um sorriso meigo e receptivo emergiu dos lábios enrugados de Arlo Hill. De pé, em posição autoritária, além de um pouco distante do padre.
— O trouxe aqui para ter privacidade. O centro de Rye não é confortável, portanto, uma casa de campo caiu bem. Até para acertarmos sobre o que faremos na sua última missa.
Arlo explicou tão baixo e precisou repetir.
— O que me disse? — Franco se esforçou para fazer leitura labial e extraiu um sorriso satisfeito do bispo. Degustando das sequelas pós-tortura contra o amaldiçoado. — Me perdoe — abaixou a cabeça, envergonhado por ter que explicar sua situação. — Não ouço bem.
— McNeill estraçalhou seu ouvido, não é? — o viu concordar calado. — Ensurdeceu de um dos lados, então falarei mais alto para permiti-lo ler meus lábios, certo? E consegue enxergar?
Se inclinou um pouco para observar a criatura que ele odiava desde pequeno.
— Não... — receoso, se esforçou para vê-lo melhor. — Apesar da minha visão ser embaçada, creio que lesionaram meu olho esquerdo e ainda sinto dores. O último médico explicou que sofri uma lesão irreversível, então, assim que desinchar, não posso enxergar.
A maldade disfarçada de bondade, entregou como Hill era maquiavélico. Um monstro perverso, sem qualquer resquício de piedade.
— Bem, você sofreu infelizmente as consequências dos próprios atos, Franco. Desde a adolescência passa por isso. Fracassa em cada atitude. Não foi à toa que sua avó te enviou para o internato. Ela não só queria se livrar de você por alguns momentos, talvez muitos — se divertia em contorcer todo o estômago do ruivo. — Porém, chegou até aqui, porque definiu tudo de uma forma impensável. Quando todo o seu percurso na igreja poderia ter sido brilhante.
— Ela não está mais aqui para definir o que é certo ou errado para mim, Hill. E você muito menos sabe do que preciso.
Seu tom enfraquecido ainda acolhia raiva em algumas palavras.
— Eu sei, contudo, és um homem adulto que necessita compreender que existem ordens a serem cumpridas desde sua infância. E já faz um tempo que não age corretamente. Convenhamos.
Caminhou para perto e inclinou o tronco para frente, com as mãos unidas na virilha.
— Segundo algumas testemunhas, você sequer disfarçou suas recaídas. Da última vez, uma de suas vizinhas delatou que havia uma mulher desnuda em sua cama. Soubemos disso porque passamos um bom tempo preparando tudo para comprovar seus deslizes. Nunca se envergonha de persegui-la, Franco? Cada atrocidade sexual com aquela mulher, merece autoflagelação eterna. Deveria se machucar fisicamente por cada ato impuro. Mas enfim, seu pai passaria por isso, sabe? Entenda como um sacrifício. Sua avó doou basicamente a vida dela pela igreja e você é nossa propriedade. Sem recusa. O que nos permite fazer o que quisermos. Entenda que não o vejo como indivíduo. És o objeto da instituição.
— Se sou o objeto sem nenhuma validez para vocês e tudo foi definido, ao menos posso saber como falecerei? — sua garganta arranhava. Existia uma tristeza lutando para ser vomitada.
— Não posso. Se souber, ficará extremamente ansioso. Isso prejudica o pós-morte. No entanto, depois iremos recolher seu corpo e definir o destino. Pode ser brutal ou calmo. Não sei. Depende do nível de ódio dos padres contra ti.
Nojento ouvir a incerteza dos seus caminhos. Franco aceitava a própria desvalorização.
— Não posso ao menos ser enterrado ao lado do meu pai?
— Seus ossos. O que sobrar — concedeu quatro passos para trás, destinado a sair do lugar. — Então, o deixarei sozinho. Até para conversar com Deus, suplicar perdão, chorar um pouco... O que desejar. Ao menos terá uma única refeição por dia. Não espere banquetes, travesseiros, higiene... Faça tudo aqui e se tentar algo, não esperarei por missa. Ninguém mais saberá onde morreu.
Perto da porta, Arlo deu três toques no ferro e um de seus homens abriu por fora.
— Hill, espere! — atraiu o idoso já próximo de sair. — E onde a Gaya se encontra? Preciso saber antes de morrer. Suplico. Deixo que façam o que quiser comigo. Porém, me conte onde ela está.
Hill pretendia remoer a raiva por não a achar. O sabor amargo de ser derrotado por bruxas, ninguém ousaria degustar. As Demdike escaparam sem deixar pistas de seu destino. Os boatos diziam que se mantinham na Inglaterra, aproveitando da fuga e planejando vingança. Outros juraram que permaneceram em Rye, escondidas em algum local esquisito, quiçá uma floresta, vivendo do esteriótipo de bruxas. Entretanto, sua sanha por torturar o Gregori com mais um pouco de mentiras, resolveria essa questão. Alimentaria sua sede em vê-lo lamber seus sapatos para manter mulheres vivas que sequer foram achadas.
— Franco, sinto muito. No amanhecer do dia treze, o deixaremos tocar seu corpo frio. A preservaremos até lá.
O Gregori se definhou em choros, seus prantos rasgavam a alma do tanto que era triste escutá-lo soluçar e a garganta arranhar na solidão do cárcere.
— Não... vocês não fizeram isso... — seu tom derrotado extraiu mais um sorriso mental no bispo.
— Como prometido, o deixaremos se despedir. Tudo bem? Compreendo ser difícil demais, a situação do corpo da bruxa não se encontra em ótimo estado. Então, terá alguns minutos para conceder um adeus.
Seus sapatos traçaram para fora do porão e selaram a porta num estrondo. Os terríveis gritos de Franco e o choro mortal escapou pelos dutos à medida que se deleitavam num jantar bem preparado, mas também temperaram melhor a carne favorita com pânico.
13 de março de 2019
A promessa fora cumprida. Franco foi desperto às quatro horas da manhã do dia treze com um banho de água gelada enquanto dormia despido no chão frio. Na noite do dia cinco, após Hill sair do porão, um de seus padres levou um prato com bolachas de sal e água. O Gregori devorou as três bolachas e engoliu o líquido em minutos. Por privarem de se alimentar, seu estômago roncava de fome e a dor da fome concernia numa das piores já sentidas.
Seu corpo tornou-se pálido, próximo da cor de um papel velho, embora os hematomas tomassem caminhos em sua pele fragilizada. Sua visão embaçada, dividida com um dos olhos opacos, se esforçou para enxergar duas silhuetas escuras e algo reluziu na lapela da roupa. O susto fez os dentes baterem, fora a umidade em sua derme exposta.
Os dois homens o levantaram pelas axilas, Franco cambaleou para permanecer de pé e a brutalidade ao erguê-lo, custou um quase deslocamento dos ombros do Gregori, que gemeu dolorido. Um terceiro homem que chegou de repente, apertou um pano escuro contra seus olhos até o arrastar para fora do cárcere.
Seus pés cortados, com calos, inchados e desprotegidos sentiu uma textura macia e deslizante do piso. Tratava-se de madeira, oposta à aspereza do porão. Seu olfato capturou o aroma de um ambiente agradável, uma mistura de perfumes diversos com café da manhã.
À medida que o puxavam para algum canto mais quieto da suposta casa de campo, risadas ao seu entorno aumentaram estridentes. Pensou estar num julgamento do inferno, rodeado por uma legião de demônios. Franco sentiu na pele o arrepio dos olhares que não enxergava, compreendeu haver muitos no recinto estranho e seu corpo foi repentinamente lançado ao chão até esbarrar em algo duro, frio. Entretanto, a textura macia entregou ser um provável corpo. Mas um corpo sem resquícios de vida.
De súbito, as gargalhadas arranhadas, graves e nauseantes cessaram e ecoaram passos cautelosos de um sapato familiar. Na sequência, uma voz imponente emergiu assim que uma cadeira foi arrastada e o peso do corpo esvaziou a almofada por baixo.
— Conforme prometido, Franco, se despeça da sua "esposa".
Um excelente presente de aniversário, para não contrariar.
Mais gargalhadas elevaram, se propagaram tal qual veneno e ele arriscou tocar a pele gélida. O Gregori detinha conhecimento que as mãos tremiam presas nas algemas e as testemunhas do absurdo se banqueteavam dos seus traumas para torturá-lo.
A primeira ação resultou em tocar o rosto a fim de confirmar se decerto era ela. No entanto, algo impediu. Um tecido grosso e áspero envolto na cabeça desconhecida impossibilitou de reconhecer os lábios que tanto amou, por intermédio do toque. Franco colapsou ainda mais no instante que sentiu um volume abaixo do pescoço, até afastar ligeiramente a mão em repulsa. Não sabia ao certo onde compreender, visto que sua visão foi altamente impossibilitada.
— O que houve, Franco? A tocou tantas vezes e agora rejeita sua bruxa? — a voz era de McNeill. Tão seboso quanto todos, ele insistiu em provocar. — Continue o que está fazendo, seu merda! Ou perderá a mão!
Franco sequer obedeceu e arriscou jamais pintar.
O que o obrigaram a cumprir, era inteiramente imundo. Quem fosse o corpo, não deveria ser tocado, violado. Concernia na pura imundície arquitetada por homens que se julgavam dignos de serem figuras de grande importância católica.
As lágrimas salgadas de Franco umedeceram a venda e ele carecia ter a certeza de que se tratava dela. Um detalhe em específico denunciaria se aquele corpo pertencia a Gaya Demdike e nenhum daqueles monstros entenderia.
— Já chega, McNeill! — Arlo esbravejou contra todos os que gargalhavam feito hienas. — O levantem daqui e o preparem para a cerimônia. Mais tarde seguiremos até Rye após a visita do Pontífice, findamos tudo e nos encontraremos com Vossa Santidade para o respeitoso jantar com a Rainha.
Antes que o erguesse, Franco tateou o pescoço do cadáver para sentir a tatuagem que Gaya fizera. Um detalhe notado há um bom tempo, concernia ao ¹queloide. Um relevo na pele marcada pela tatuagem e nas demais, quando suas mãos tatearam a bruxa pela última vez que se viram. Ele conhecia cada fragmento da amada que ela sequer acreditava. Seus toques e observações valeram o bastante naquele segundo. E assim, Franco comprovou que o tal corpo nunca pertenceria à Demdike. No entanto, sua alma definhou ao descobrir que aqueles malditos homens vitimaram mais inocentes.
Logo que removeram o saco de tecido de sua cabeça, o Gregori enxergou o mesmo interior da igreja que costumava celebrar missas, atender seus fiéis, conversar com Deus, fora o confessionário aonde se entregou carnalmente à sua amada. O fizeram voltar para Rye no dia do seu aniversário por um propósito.
Recostado na lateral de um dos bancos de madeira enquanto as mãos estavam presas, Franco notou alguém ao seu lado recobrar os sentidos quando também retiraram outro saco.
— Kansas?! O que fizeram contigo?
Franco percebeu serem ladeados por dois homens vestidos de preto. Por cima da calça escura e camisa sacerdotal, sobretudos escondiam o colarinho branco e enalteciam o broche. Na frente de ambos, mais dois padres se atentavam em cada movimentação. Ninguém no centro imaginava o que sucedia naquela pequena igreja.
— McNeill está chegando para arrumá-lo — um deles se inclinou para o ruivo. — Siga as ordens, não saia da linha e seu amiguinho aqui será mantido vivo.
Kansas sequer esboçou medo quando dois tapas fortes planaram em seu rosto, o fazendo virar a cabeça. Roman sabia do seu destino e aceitava partir no dia que seu amigo nasceu. Só desconhecia a maneira.
— O deixe em paz! — cuspiu toda a saliva ao gritar e outros dois o contiveram. — Onde estão os fiéis? Também deram um fim nas pessoas da cidade?!
Um dos padres segurou as bochechas do Gregori que comprimiu os lábios, se recusando ser tocado.
— Cale sua maldita boca e escute com atenção.
Coros distantes e vibrantes aumentavam misturados com palmas. A festividade se iniciava antes da missa e muitos confiavam que a paróquia onde se encontravam, prevalecia fechada. Contudo, mal demorou minutos para a porta principal ranger ao ser aberta e a presença cautelosa de McNeill dominar o espaço até fechar por trás. Seus passos educados e postura orgulhosa, seguiu até os reféns. Sua roupa era semelhante aos cúmplices.
— Vejamos aqui... — o tom venenoso serpenteou os ouvidos de todos e uma risada pigarreante agoniou. — Sem boas-vindas, tragam as vestes e tirem as roupas dele agora. Hill não quer esperar. Precisamos levá-lo de imediato.
Dois braços ergueram Franco, um se encarregou de se atentar em Kansas e outro se dirigiu à sacristia até retornar com as vestes separadas para a celebração. O traje foi posto num dos bancos e principiaram a despi-lo diante de todos. A reação imediata de Kansas resultou em virar a face na intenção de respeitá-lo, até que seu queixo fora apanhado para forçá-lo a enxergar, além de compelir um dos dedos para abrir a pálpebra direita.
— Enxergue seu pupilo, Kansas — uma risada maquiavélica inundava a audição. — Pense ser Cristo antes da crucificação. É por um bem maior.
Franco queria esconder sua parte íntima para fugir daquela humilhação e principiou a derramar lágrimas entre um choro silencioso. Seus olhos vermelhos somente enxergavam Jesus da mesma forma. Os braços estendidos por dois carrascos, suas pernas cruzadas para escapar do constrangimento e a expressão abatida, por aceitar que ninguém o salvaria, embora quisesse.
Puseram brutalmente uma calça, machucando suas pernas e intimidade, forçaram a camisa clara que se manchava com a sujeira de dias. O amaldiçoado sequer havia se higienizado. Partiria sem qualquer preparo. E por fim, finalizaram com a túnica branca e uma casula da mesma cor. Fora a falta de higiene, o ruivo sofreria com o calor das vestes, embora o clima estivesse frio.
— Não há motivos para timidez, Gregori. Estava da mesma maneira com sua bruxa e nem pensou em Deus estar os observando — McNeill se aproximou do ruivo e concedeu dois tapinhas numa das bochechas de Franco. — Bem, siga com o Edgar e veremos o que fazer com o Kansas.
— Não toquem um dedo nele! — Padre Edgar, o mesmo que trocou suas roupas, encostou o cano de um colt viver na cintura do sacerdote que gelou por inteiro.
— Siga o caminho que eu disser, não grite e nenhuma bala entrará na sua carne. Ouviu bem?
Obediente, Franco seguiu as ordens do encarregado e sequer teve a oportunidade de se despedir do amigo. Nem mesmo um último olhar. No similar instante que saíram da igreja, o sino tocou exatas três vezes, como haviam combinado ser um sinal.
Deixado sozinho com McNeill e mais três padres que restaram, Roman foi levantado pela camisa para se igualar com o mais velho. Suava tão frio que sua pele tornou-se pálida e se abrisse os lábios, tremiam. Não sabia ao certo se cada órgão escaparia por todos os buracos do seu corpo, por culpa do excesso de medo. E Artur, satisfeito, sorria ao testemunhá-lo frágil. O traidor da igreja.
— Kansas, você jurou lealdade naquele dia diante de nós e o bispo. Então se ama tanto esse maldito como um irmão, agora prestará as contas por ele. Sacrifícios são feitos por um bem maior.
Um primeiro soco atingiu a boca, quebrando um dos dentes da frente e o fez cuspir longe junto ao sangue. Kansas era mais fraco comparando com McNeill que apesar de velho, era resistente feito uma parede. Tendo como objetivo cegá-lo, o segundo golpe cortou uma das sobrancelhas, a mão soltou a camisa e Kansas caiu zonzo no chão. Na sequência, foram tantos chutes no abdômen e costelas, que o coitado mal conseguiu respirar.
O som da respiração se enfraquecendo à medida que seus braços atados se empenharam para defender da agressão, atraiu a entrada de mais alguém na igreja. Alguém que em meio a multidão, vira McNeill entrar na paróquia após desviar uma rua depois do centro e aguardado o momento certo para descobrir o que ocorria. Mas antes, pegara uma cópia da chave que pertencia ao local com o jardineiro que trabalhava com o Franco bem antes do sequestro.
Tão calmo feito uma brisa e astuto como uma víbora, a presença fechou a porta com cautela, sacou a chave apoderada e trancou a entrada. Pegando todos desprevenidos e impossibilitando que outros entrassem, além de saírem. Os olhos do indivíduo ferviam em carnificina quando se dirigiam nos sacerdotes fardados que, sem recusa, se equiparam contra o homem que apanhou ligeiramente duas adagas curvadas prateadas e médias de cada bolso traseiro da calça. Com os cabos apoiados nos pulsos e dedos firmes, o Dawson concedeu poucos passos para frente, contudo, permitiu ambos os padres aproximarem com suas facas. Um deles se esforçou em raspar a lâmina no pescoço do corvo, que desviou rápido, atento nos reflexos. Sua mãe um dia lhe disse que o oponente precisa minimamente cansar para se expor contra uma adaga. O corte tem que ser inicialmente preciso no braço, especificamente na articulação para cessar os movimentos.
Após mais uma tentativa falha e recuo, dividindo a atenção com os dois que pareciam brincar de zigue-zague no ar e sem saber onde afetar o rapaz, Dane, exausto de esperar, esmurrou o peito de um deles com o pé, derrubando no chão. E por descuido do segundo, uma das adagas desenhou um corte profundo na articulação, fazendo-o derrubar a faca e sentir o corvo deslizar até suas costas, finalizando com uma fenda horizontal e extensa na garganta. A lâmina não atingiu propositalmente a jugular para fazê-lo perder os movimentos da cabeça e se derramar em sangue até perecer.
Horrorizado, o que caíra com o chute jamais assistiu nada feito aquilo em toda sua existência. O olhar acinzentado era visceral, puro deleite. Habitava um prazer pela vingança. O monstro esculpido num bastardo caminhou até ele, à medida que Kansas, McNeill e o último sacerdote assistiam distantes todo o mar rubro que o primeiro formava. Quem entrasse, apreciaria o sangue deslizar pela escadaria da igreja.
Temeroso em perecer como o parceiro que agonizava feito um peixe, a faca fora largada distante como forma de rendição e irando Artur, que grunhiu furioso, descontando seu ódio ao chutar a lateral da coxa de Kansas. Nem demorou tanto para puxar Roman novamente pela camisa, forçar o outro padre a arrastar a vítima para perto da porta dos fundos. Seus punhos trêmulos e fechados, quase ferindo as palmas com as unhas amarelas, esmurraram a madeira com tanta força que ecoou na paróquia. Os gritos desesperados de McNeill soaram hilários para alguém, feito ele.
— Por favor, não me mate! — o padre, na posição de refém para Dane, suplicou molhando o rosto e pescoço com lágrimas e salivas. Seu aspecto repugnante enojou o corvo que o chutou mais uma vez até o fazer deitar no chão de barriga para cima. — Eu o auxilio no que desejar, mas me deixe viver!
As mãos em proteção contra o rosto, fez Dane sujo de sangue gargalhar.
— Implore a Deus. Ele quem define se você morrerá ou não. Apenas deixo marcas, da mesma maneira que vocês cravaram na Demdike, no Gregori e nos Dawson. Não mude os caminhos de Deus se desejar um lugar no céu.
Dane se abaixou, sentou sobre as pernas do padre que principiou a rezar, suplicando que sua morte fosse rápida. Os três distantes assistiram à cena crua do corvo vingativo formar um corte vertical e centralizado que atingia o início das costelas no abdômen do padre, até ultrapassar o umbigo e cortar a camisa escura. O sangue se alastrou sujando tudo e o grito ensurdecedor do homem, quase quebrou os vitrais da paróquia, no mesmo instante que o primeiro padre morria. E mais um corte fora criado horizontalmente na linha do umbigo, formando uma cruz invertida no homem que sentia seus órgãos sendo expostos e remexidos com a lâmina da adaga. O Dawson era uma besta solta e todos tiveram certeza quando ele ergueu a arma branca diante de seus olhos, sorriu satisfeito com sua obra e tomou o sangue no polegar direito.
Agonizando, o homem estripado ainda enxergou seu algoz levar o dedo sujo até sua testa e o outro clérigo ao lado de Artur, vomitou toda sua comida para fora e sido empurrado na direção o vômito pelo seu líder naquela ocasião.
— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo — o belo blasfemador abençoou sua vítima com o próprio sangue e o assistiu convulsionar sob suas pernas. — Abençoado seja os pecadores, apesar de saberem o que fazem.
Os olhos satisfeitos miraram de imediato em McNeill, Kansas se agachou no canto ao lado da porta, temendo o bastardo e sem perceber, o homem que vomitou direcionou o olhar para a sacristia. Porém, antes de correr, ele sentiu à adaga menos suja atingir a lateral da garganta, certamente na artéria carótida e veia jugular. Seus pés trocaram ao cambalear e seu corpo cedeu ao piso, facilitando ainda mais a entrada da arma na carne. O arremesso perfeito que Dane tanto esperava, aconteceu em meio a agonia daquela situação.
— Abra a maldita porta dos fundos, seu miserável! LEVANTA!
McNeill sacou do sobretudo uma pistola taurus prateada e mirou na cabeça de Kansas, que se levantou ligeiro ainda com as mãos presas. Sob o foco do cano e suando mais que o habitual, ele forçou a maçaneta até notar estar trancada do lado externo. Principiou a tentar derrubar a madeira, mas sem sucesso.
— Está trancada por fora, McNeill!
— Arromba de novo, antes que eu atire na sua maldita cabeça!
Artur, que dividia a atenção nos inimigos, sequer recusou atirar contra o Dawson que se escondeu atrás de um dos primeiros bancos raspados pela bala. Resultaram em mais quatro tiros sem êxito. E enlouquecido por sempre se prejudicar, focado em assassinar o bastardo, mal percebeu ter gastado cinco balas de sete. Prestes a atirar novamente no corvo, seu corpo caiu repentinamente amolecido ao receber uma forte pancada atrás da cabeça. Corajoso e pensando não ter mais nada a perder, Kansas o atingiu com uma pedra que servia de peso atrás da porta.
A arma caiu no chão, mais próximo de Kansas que agachou e ajustou nas mãos presas até direcionar ao Artur.
— Atiro na cabeça? — entregou uma sugestão quando o bastardo chegou perto do corpo desacordado.
— Não, é uma morte rápida. Ele merece a dor — se agachou e apalpou para sentir se havia mais alguma arma escondida nas roupas. — Precisa entregar mais informações. Então, o acorde — voltou a permanecer de pé e brincou com a adaga suja de sangue nos dedos. — Destrave e atire no pé sem qualquer piedade, Kansas.
— Temo errar, nunca mexi nisso, apesar de ter visto — o tom medroso o afastava da ação.
— Pense no que fizeram ao Franco desde criança. Não existe piedade neles e sequer precisa existir em você. Destrave, segure firme para não te machucar e atire!
Um disparo certeiro no pé de McNeill o despertou apavorado. Seu grito era urro visceral, das entranhas sujas de um ser repugnante. A audição de Kansas chiou por culpa do barulho até recuperar gradualmente.
— MERDA! — maldito como sempre, Artur tentou agarrar as pernas de Kansas para derrubá-lo, mas seu ato não teve sucesso.
— Para garantir que não tentará nada contra nós, atire na mão dele também, Kansas. Mire e atire! Use a última bala!
Para facilitar o trabalho do parceiro, Dane pisou no braço direito de Artur na intenção de esmagar os ossos e sentiu a vibração da bala separar dois dedos e espirrar sangue para os lados. Os ligamentos das mãos se soltaram e os gritos de McNeill foram abafados pela multidão em polvorosa. Artur se contorceu, rolou no chão e torceu perecer de imediato. Agonizar de dor soava pior que inexistir.
— Onde o Arlo se encontra?! — o virou de barriga para cima.
— Na igreja principal com o Franco, e-ele foi levado recentemente — decidiu expor, visto que não sairia da paróquia com vida. Se Hill nem se importou com suas tentativas falhas até perder um lado da audição e colocá-lo para cumprir trabalhos arriscados, resultava no momento ideal para traí-lo.
Surpreendendo os três, o chão estremeceu por meros dez segundos até estabilizar. Kansas cambaleou e se escorou na parede, assustado com a situação. Contendo McNeill, Dane observou o teto expelir poeira e o sangue do primeiro padre ultrapassar a abertura da porta. Tremores nunca foram comuns em Rye e o Dawson detinha conhecimento acerca disso.
— Ela voltou? Por ele? — McNeill sorriu zonzo ao questionar. — Deve ter sido bruxaria.
— Do que está falando?! — o corvo espremeu as costas da mão inimiga com o pé antes ocupado.
— Se Gaya Demdike está aqui, Hill conseguiu o que queria. Ele a matará também.
Distante, Kansas cuspiu em Artur que gargalhou até o ponto que o bastardo puxou a mão de dedos estourados e principiou a puxar as partes ainda penduradas até o assistir implorar por socorro.
— És um verme como os demais, Artur. Ninguém se diferencia. Meus pais infelizmente não se encontram aqui para se vingar. Porém, você não esperava que um corvo feito eles trouxesse esse gosto, não é?
— Sei como limpar sua família dos registros, Dawson. Sabemos como repartir a grana do Gregori com vocês — tentou barganhar.
— Não ceda a ele, Dawson — Kansas o trouxe a realidade.
— Minha família conseguirá a redenção quando matar cada um dos seus. — abandonou o braço, se agachou próximo do corpo, apontou a lâmina impura e perfurou levemente a garganta de McNeill que chorava feito um bebê. Rios de catarro escaparam das narinas. — E você, Artur, será o primeiro. Tenho finalmente a honra de dignificar minha linhagem bastarda, assassinando um traidor.
O primeiro golpe atingiu uma das costelas para fazê-lo se derramar em dor e agonia.
— Isto é pelo meu irmão Kelevi — o real Judas cuspiu sangue espirrado, resgatando novamente o digno sorriso sádico de Dane, que piscava as pálpebras em puro descontrole. Ansiava persistir em brutalizar até o testemunhar engasgar. — Esta é pelo meu irmão Dario e mais uma pelo meu pai Joland.
Artur urrava clamando misericórdia ao Pai. Contudo, nem Deus desceria de seu trono celestial, muito menos a Virgem Maria intercederia por um espírito preenchido de maldade e sem arrependimentos.
— Esta é por mim e não ouse implorar pelo perdão divino! E esta, é pela Hunter Dawson. Minha mãe.
Por fim, a lâmina ultrapassou o local certeiro para o coração. A última imagem que McNeill avistou antes da neblina da morte cegar seus olhos, resultou ao lado do corvo. Artur enxergou com nitidez a figura de Ivone Castrell com cabelos soltos, contendo uma marca vermelha e evidente bem abaixo do queixo. O exato local que a decapitaram. Castrell sorria se deliciando com a morte de seu executor. O juízo final que tantos cristãos esperavam, era individual. Cada passagem sórdida em vida, seria julgada pelos espíritos.
— Ela veio me levar!!! Me largue!!! Não vou contigo, Ivone!!! QUEIME NO INFERNO!!!
Dane se repeliu, à procura de enxergar a quarta presença na igreja e ao voltar sua atenção em Artur, o assistiu convulsionar e cuspir os resquícios de sangue expelidos pela boca até partir de olhos bem abertos. Bem no cerne das escleras, num último brilho, a imagem de Castrell fora refletida.
Havia tantas pessoas no centro da cidade após a rápida visita e aparição do papa, que mal sobrava espaço para se deslocar. Até as ruas mais estreitas foram tomadas por multidões de católicos enérgicos e simpatizantes. O sino tocava imponente, as portas da igreja de Santa Maria — a principal —, se abriram para receber uma abundância de fiéis, embora um telão imenso fixado numa das paredes mostrasse o interior da casa de Deus prestes a celebrar uma missa.
A imprensa local arranjou um espaço seguro e reservado na intenção de registrar cada acontecimento do evento, até que no cerne do povo que segurava folhetos, terços e vestiam camisetas brancas além de estampadas com o rosto do Pontífice, uma pessoa apareceu se apertando na aglomeração. Com destino à entrada da igreja.
Um véu que tocava até a cintura, na cor marrom escuro, com renda e bordados dourados, caía pelos cabelos médios e crespos. Ela se espremeu sem nem perceberem até alcançar a entrada e sem dificuldade, passar pela porta, à procura de um espaço num dos assentos com outros fiéis. Todos pareciam hipnotizados com a celebração e sequer deram atenção para a bruxa.
Coroinhas trajados em ²sobrepeliz cantavam melodiosos o hino de "Aleluia" no alto do andar superior que formava um arco quadrado para se deslocar até o sino. A luz externa transpassou os coloridos e valiosos vitrais santos, Jesus imenso na cruz e no altar por trás dos sacerdotes chorava cristais e seu corpo suspenso fora moldado em mármore. Entretanto, ninguém reparou quando o céu escureceu em nuvens densas que ocultaram o esplendor do sol.
O céu igualmente vibrou num breve trovão e sequer distraiu os católicos atentos.
Aflita no assento, o olhar esperançoso de Gaya buscou por Franco quando os primeiros padres saíram de uma porta e sido recebidos com aplausos, além de canções de glória. Tudo se tornava tão estranho e denso com a sensação de morte correndo feito febre em sua pele e se apossou do seu estômago ao passo de queimar até desintegrar no instante que dois últimos clérigos se juntaram aos demais.
"Franco... está vivo!"
Ela soprou um suspiro aliviado, extraindo todo o pesar do corpo e quase vomitou sua vitalidade para fora ao testemunhá-lo sem luvas, ausente de óculos, com cabelos cortados e extremamente magro. Além do aspecto sujo. O choque e pânico dominou sua face e entre um mar de gente, o Gregori observou embaçado as várias cabeças desfocadas, sem nem conseguir nitidamente enxergar e visualizar sua bruxa entre todos. Suas pernas estavam tão fracas que o Padre Edgar, já trajado em suas vestes, precisou guiá-lo até o respectivo assento.
Para Gaya era nítido terem feito algo contra ele, sugado todo brilho que Franco emanava quando estava ao seu lado.
Todos os sacerdotes e o bispo ainda de pé reverenciaram a imagem de Jesus para principiar o rito, Arlo beijou a mesa santa em meio aos cânticos que cessavam lentamente quando a multidão se ergueu dos bancos, a incluir Gaya que disfarçou o tecido na frente do rosto.
— Glorificado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo! — a voz do bispo se propagou pelas paredes tal qual um trovão.
— Eternamente glorificado! — todos declamaram.
Gaya se mantinha atenta em Franco que aparentava estar morto, contudo, ainda respirava. O olhar azul cabisbaixo alcançou o piso, seus lábios murmuraram a saudação e a cada segundo o Gregori checava os próprios dedos feridos. Abaixo da manga longa, marcas nos pulsos foram ocultas.
A Demdike sentiu precisar agir antes que alguma coisa ruim ocorresse. Deparava-se naquele ambiente podre no intuito de resgatá-lo morto ou vivo. Contudo, algo sucedeu antes que cumprisse o que se passava na mente. Franco principiou a cuspir sangue enquanto prevalecia sentado na cadeira. Ao passo que o bispo, num púlpito à frente, prosseguia com a iniciação. Padre Edgar, responsável por vistoriar qualquer situação suspeita, o segurou firmemente pelo braço à medida que os olhos do público se atentaram em Hill e o levantou bruto para guiá-lo de volta à mesma porta de antes.
Em completo pânico e mediante os cochichos de alguns que enxergaram a movimentação estranha no altar, Gaya se ergueu atraindo todos. Quanto mais demorasse a reagir, Franco jamais seria visto ao passar pela porta.
— FRANCO! — a voz da bruxa alcançou todas as direções no interior santo, até vibrou os cálices dourados na mesa.
Com todos os fiéis sentados e as cabeças voltadas para ela, Gaya sentiu em seu âmago a dor que Franco experienciou. Alguns berros desesperados e rasgados clamando pelo seu nome por trás da porta selada, a fizeram ter a certeza sobre ser escutada e suas pernas motivadas pela esperança, correram no centro da extensa passarela ladeada por bancos escuros. O terror fora refletido nas expressões de cada indivíduo a testemunhar tal acontecimento.
"A bruxa!"
"Ela se encontra aqui!"
"Tremenda blasfêmia!"
Os insultos deixaram de ser sussurros e passaram a tomar espaço. E distante, o bispo sorriu do púlpito, se deliciando com os xingamentos contra a mulher até interromper a missa. Os padres restantes seguiram o olhar intimidador de Hill que permitiu cumprir a ordem e a cercaram. O que McNeill dissera acerca da emboscada, tornava-se real.
Mergulhando na conivência, o público desfrutava do uso impuro do poder e imerso na própria ruindade, Arlo esqueceu que toda a situação era registrada por uma parte da imprensa presente.
— É saboroso finalmente te ver, Demdike — percebeu uma elevação abdominal na jovem e sua expressão transpareceu nojo. Fora uma ira inexplicável.
Hill concedeu dois passos comedidos para trás. Fingiu valentia, entretanto, sequer sabia se a bruxa carregava algo escondido. Necessitava manter distância para autopreservação.
— Solte-o para todos verem a maldade que você construiu!
— Maldade? Os dois pecaram diante de todos aqui! — os olhares julgadores voltaram somente a ela. O tal espetáculo do bispo que Artur mencionara, destacava a estrela principal. — E é óbvio que provavelmente está grávida, como podem ver, caros cidadãos!
Apontou com puro desdém e todos teceram mais comentários odiosos à medida que ela mantinha sua atenção em Arlo para conservá-lo no campo de visão. Era preferível permiti-lo saber ainda estar grávida, ao contrário de expor o nascimento de sua filha.
— Não és ninguém para me julgar. És um assassino, mesmo que não suje as mãos, contudo, está sendo desmascarado para toda a Inglaterra. És uma serpente, um corruptor e se vocês acreditam em demônios, aqui está o próprio! — revidou ao apontar.
— Demdike, entenda ter caído na nossa isca — admitiu estar convencido. — Não se envergonha dos seus pecados? Nem diante dos irmãos em Cristo?
— Não, bispo. No passado, pessoas como vocês condenaram as minhas injustamente à forca. Hoje ninguém sairá daqui sem o merecido julgamento de uma bruxa. E serás o primeiro, Arlo Hill.
Mais trovões bradaram nos céus, como se as nuvens caíssem prestes a esmagar quem estivesse abaixo. Um temporal despencou lá fora na mesma intensidade de uma chuva de granizos, inundando o povo que assistia no exterior e uma ventania percorreu Rye até adentrar a igreja principal e as grandes portas se fecharem estrondosas. De súbito, as pessoas se desesperaram feito os espíritos ansiando a luz. Além de um tremor que parecia colocar a cidade para baixo até sumir do mapa.
Um mar de fiéis tumultuou na entrada, agoniados para escapar do pesadelo e uma pequena quantidade fora pisoteada no percurso. Quem estivesse do outro lado, por fora, ouviria os gritos de horror, como se o inferno habitasse na casa do Pai. Medroso tal qual um animal indefeso, Hill se apavorou, recuou do olhar fervente de Gaya Demdike e os demais padres correram considerando a outra porta que Franco sumira, um ponto de fuga. No entanto, todas foram trancadas de maneira sobrenatural. Os coroinhas que choravam e os jornalistas se abaixaram de modo a se protegerem do vendaval que invadia pelo alto da igreja, molhando quem estivesse abaixo. Juraram ter escutado raios caírem feito chicotes no chão e no alto, atingindo a cruz de ferro, castigando os mortais hipócritas.
— Demônio! — Arlo gritou contra Gaya e as veias de seu pescoço saltaram.
Os que sobreviviam aos raios e se preservavam abaixo das coberturas das lojas próximas, assistiam o acontecimento pelas telas de projeção úmidas que espelharam o que as câmeras restantes gravavam no andar superior. Nada do que ocorria e se registrava, manteria apenas na Inglaterra. Se temiam acerca do papa tomar conhecimento, Hill pagaria arduamente de todas as direções.
— Removerei a cabeça dele na sua frente, desmembrarei cada parte daquele corpo magro para assisti-lo sangrar e o cortarei ao meio para as tripas pularem fora, até você abortar pela boca esse maldito bebê que carrega e eu ter a chance de enfiar sua criança entre os intestinos do seu padre!
Os olhos de Hill tornaram-se inteiramente pretos, feito piche e cada buraco do rosto escorreu lama, sem qualquer controle ou consciência habitada no corpo imundo. Gaya compreendia que Arlo concernia num homem sórdido e uma excelente casca para aquela que se moldava como seu maior pesadelo.
— A pele que você tanto ama, será arrancada para servir de tapete no inferno, os olhos serão espremidos até sobrar órbitas vazias, servirei os miolos como macarrão e sugarei na sua frente com os restos da sua cria misturados com os órgãos do seu amaldiçoado — um sibilo formava ecos na audição da Demdike que se recusava escutar. — Seu tormento sou eu. Bruxa, meretriz, serviçal de Satã!
— Que sua língua se parta ao meio para jamais falar. Mostre-se, Moniese! Venha enfim me encontrar neste plano!
O corpo do bispo entortou, sua coluna envergou para trás e ele caiu de costas. O barulho agonizante dos ossos estalando com o urro de dor, fez todos terem a certeza de Hill ser dividido em camadas. Os dedos enrugados fraturaram em diferentes direções, a perna direita se rompeu e seu grito envelhecido fora ofuscado, por algo ser expulso do próprio corpo por intermédio da garganta. O povo ainda lutava para fugir do real horror e o tom dos gritos se elevaram bem mais. No instante que Arlo escancarou a boca escapando do limite de amplitude, rompendo a mandíbula que pendurou com a pele amolecida, sua língua que tomava espaço pulou fora, cortada ao meio para facilitar a evasão de um corpo estranho. Da boca esticada, uma massa escura feito lama escapou escorregadia, até se modificar numa figura idosa, despida e feminina, banhada em piche e com olhos de fogo que hipnotizava a alma mais pura. A cada passo que concedia, pegadas escuras e pegajosas queimaram o chão.
Se ninguém naquela cidade pacata acreditava, naquele átimo tudo se tornou crível. O real demônio que todos julgaram andar com as bruxas, sempre consumiu da podridão mascarada do catolicismo.
A porta dos fundos, que sai direto para o cemitério menor, fora aberta pela respectiva chave que Dane detinha e a única capaz de abri-la. Kansas e ele escaparam atentos em qualquer movimentação entre os túmulos e as árvores. O Dawson alcançou o olhar assustado no céu que escurecia numa quase noite e a chuva umedeceu as vestes, limpando o sangue de McNeill e dos demais que evaporaram por suas mãos.
— Gritos no centro, algo terrível está acontecendo — Roman avistou raios despencarem e estremeceu, temendo serem atingidos. — Precisamos achá-los, Dawson.
Sentado num jazigo de mármore à medida que massageava os pulsos, enquanto o corvo limpava as adagas na chuva, Kansas escutou algo fazer barulho nos fundos do campo-santo.
— Ouviu isso? — o mais jovem esticou os olhos para enxergar entre as gotas de água.
— Ouvi. Tem mais alguém aqui.
Dane se equipou novamente com as adagas agora limpas, disfarçando seus passos nas folhas e grama entre o aguaceiro, até se aproximar de onde a vibração surgia. Seus cílios escuros e úmidos bateram constantes e cabelos sombrios colados no rosto limitaram um pouco da visualização. No entanto, podia-se ver um túmulo estranho e certificar que um tremor escapava dele. Ambos se aproximaram um pouco — Kansas mais atrás do rapaz — para assistirem uma fumaça cinzenta de fogo fugir pela terra, além do mármore tremular. Era tão bizarro que, a reação do Dawson foi somente rir sem compreender aquilo.
— Não parece real, mas é! Em toda a minha vida de investigador particular, jamais testemunhei nada assim.
Apontou com uma das adagas.
— O túmulo de Moniese Gregori — seus lábios pareciam ser amaldiçoados ao falar o nome. — É sinal que precisamos encontrar a Demdike e o Franco. Agora!
Moniese berrou. Não sabia ser pela dor de sua transformação, ódio, contudo, seus gritos foram tão finos que estouraram os vitrais da igreja, cortando os que estavam mais próximos. Olhos se perderam, faces se riscaram de sangue, membros superiores foram partidos nos que sequer conquistaram tempo para se proteger. Desde inocentes até cruéis. Um banho de sangue num ambiente cristão que recolheu alguns mortos naquele átimo.
Os que restaram se abaixaram para evitar mais carnificina, apesar do bispo agonizar e se deitar numa poça vermelha. Ainda insistiam a porta por fora, na intenção dos fiéis escaparem e os demais clérigos choravam implorando misericórdia à imagem santa de Jesus.
Não se ouvia Franco, nem aonde se localizava atrás da mesma porta e Gaya precisava findar o terror arquitetado pela igreja e o ser vingativo.
Os vitrais antes estouraram na intenção de atingir a bruxa e transpassaram nos que estavam entorno. Porém, de maneira tão sobrenatural, os vidros tornaram-se pó, permitindo que fechasse os olhos escuros de modo a sentir as partículas soprarem em seu rosto, sem provocar ínfimas fissuras. O temporal com raios e trovões persistia até um deles perfurarem as telhas da torre e formar um buraco para tocar o piso de madeira e levar o lar de Deus abaixo.
A ventania adentrou a igreja e balançou mais forte o sino banhado pelas águas que tocou em longos intervalos. Também a figura de Cristo chorou sangue real. Se a igreja precisasse testemunhar um milagre, Rye se encaixaria feito um cenário perfeito.
Na consciência de Gaya, enquanto Moniese se aproximava lentamente no intuito de findar sua existência com as próprias mãos, algo extraordinário aconteceu. Uma força na Demdike que ela jamais experienciou. Um arrepio percorreu a pele feito raízes naturais a tomarem espaço no solo, um calor pacífico a isolou daquele frio chuvoso, uma desmedida felicidade se apossou dos seus sentimentos. O tormento, o medo, o rancor sumira no instante que uma voz, a similar voz de todos os períodos passados como uma jovem bruxa, afagou sua audição, relaxando membros superiores e inferiores. Gaya se afastara de quem nasceu para ser. O sussurro de sua divindade, tão próximo, instigou a chorar constante e a fez sentir os próprios pés se distanciarem do chão.
Todos os vivos, até Hill que se debatia e se humilhava por socorro, testemunharam Gaya Demdike flutuar no vento e centro da igreja. Ela nem entendia como fizera aquilo, como finalmente conseguiu voar.
Caso o céu tornar-se escuro,
Saberão que sobreveio a hora da minha partida,
E assim, renascerei em ares.
Arrebatada até os confins do mundo (...)
A canção em sua mente fez sentido. Tratava-se daquela mesma canção de sua juventude. Canção de bruxa sustenta poder. E no instante se principiou a hora da condenação.
— Moniese Gregori — seu olhar altivo de quem ainda flutuava e imponente diante do espírito maligno, apavorou o ser sombrio que se debateu para se recusar a escutar a voz e a canção em coro que deslizava pelas paredes claras manchadas com respingos de sangue e perfurava seus tímpanos. — Declaro o fim do mal que sobrevive há séculos, pela Madre Mortem.
Moniese temia a entidade. A figura suntuosa, banhada por pérolas de lágrimas dos que lamentam, vestes escuras e coroa de cinzas dos que vieram do pó e partiram da mesma maneira, ansiava há muito tempo que uma bruxa condenasse mais um espírito imundo dos Gregori ao pós-julgamento.
A canção amplificou, mais um tremor percorreu o solo da pacata cidade e de súbito, Gaya que levitava, caiu de joelhos tal qual uma pena no piso — conforme a ancestral Jennette Demdike —, sem experienciar nenhuma dor. No exato instante, todos os fiéis, clérigos, coroinhas, jornalistas e bispo congelaram no tempo. Até quem insistia abrir o portal.
Exceto Gaya e a Gregori que suplicava para canção ser interrompida pelas vozes identificáveis. A estátua de Cristo que sangrava, igualmente estourou degradando a morada de Deus que se tomou com o silêncio dos santos. Tornava-se o fim de um ciclo tortuoso.
— Herdeira maldita dos que aniquilaram as mulheres de Pendle, que evapore nas profundezas do esquecimento onde jamais sairá.
Moniese assistiu em completo pavor todas as bruxas já falecidas da linhagem Demdike ladearem Gaya.
Do lado direito, Anika Demdike em sua imagem idosa, apoiou a mão esquerda e confortável sobre o ombro da neta. O sorriso amável da avó, que partiu antes do esperado, a confortou naquele momento. No lado esquerdo, Gaya não a reconhecia. Porém, a primeira responsável por ordenar a condenação dos Gregori em 1612, a anciã Elizabeth Southerns Demdike, assim como Anika — sua descendente —, acariciou o queixo da bruxa mais jovem e sorriu orgulhosa de sua descendência. As mesmas bruxas da família que pereceram pela forca, se posicionaram atrás das senhoras com vestes distintas e correspondentes à época partida.
— Seremos sementes e brotaremos como raízes firmes pela nossa Mãe Terra — Elizabeth se agradou que a última pior dos Gregori sentiria o peso de tantas bruxas num único espaço. — O tempo de justiça é agora, Demdike.
Moniese cambaleou à medida que voltava a sua forma enquanto vivia. Experienciaria as repentinas chamas de seus olhos consumirem sua pele, formarem buracos profundos, distenderem os ligamentos da carne e transformá-la em pó. Gaya pensou que tudo aquilo seria testemunhado somente por ela. Contudo, todos se tornaram espectadores de um acontecimento paranormal jamais ocorrido desde séculos passados.
O último grito da Gregori foi de clemência, pavor, impotência. Certificava que, se Franco sobrevivesse após o dia do julgamento final, jamais viveria atribulado pela avó. A velha que consumia os sonhos da Demdike e os modificava em pesadelo, fora recolhida do plano que habitava e evaporou no vazio da morte. Nunca mais voltaria.
Pessoas correram na intenção de saírem pela porta que Franco sumiu, que direcionava até uma rua de trás e esbarraram em Gaya ajoelhada no chão enquanto recuperava fôlego. Porém, estava trancada e mesmo na tentativa de arrombar, a madeira era resistente. A agonia triplicada, um desespero surreal arrastou a bruxa para mais longe, perto da porta principal que repentinamente se abriu. A jovem fora empurrada para fora e quase pisoteada, se distanciando de onde buscaria Franco. Nada ainda havia terminado. O medo de ser morta por eles nem a fez perceber se situar no exterior, no cerne da correria, permitindo o temporal banhar seu rosto, corpo e seu olhar esticava à procura de Franco talvez perdido no acúmulo de corpos feridos e mortos.
De súbito a empurraram e a levaram para o chão, se banhando de sujeira e sem o véu perdido no interior do lugar para se proteger. Então apenas se encolheu de modo a evitar ser machucada e raciocinou entre o barulho de gritos e passos, que talvez algumas coisas se amenizaram com o fim do espírito vingativo. Gaya nem percebeu que ao focar no silêncio de sua cabeça atribulada, o sino que ainda tocava, elevou a sonância e ensurdecendo bem mais todos que se tomaram pela balbúrdia.
A torre vazia, tomada pelos raios, se preencheu com uma movimentação. Alguém balançava o sino para atrair a atenção. Não bastava o desastre no salão ritualístico, algo bastante pavoroso para a Demdike selaria eternamente o dia treze de março. O aniversário de Franco Gregori.
O fim da tarde parecia noite e as luzes do interior do templo irradiava quem restara. Gritos estarrecidos atraíram a atenção de Gaya que sujou a mão ao se erguer entre os que permaneciam e os que fugiam. Até os que se resguardaram abaixo das coberturas das lojas, assistiam. Tratava-se de algo único numa sequência de desastres.
O clamor da moça foi altamente desesperado quando ele apareceu no topo, solitário, tão abatido que transpirava morte. A bruxa gritou tantas vezes que se lançou sobre alguns para tomar espaço de volta à igreja e se permitir ser vista. Uma parte do cabelo ruivo cortado se molhou quando Franco se aproximou da ponta com uma corda enrolada no pescoço. Preparado para desistir da maneira que acreditava merecer.
A Demdike ansiava voar feito antes no intuito de tirá-lo dali, daquela situação. Ambicionava poupar a alma bondosa, agarrá-lo em seus braços para se fundirem e obter a certeza de que jamais se afastariam. Sem brigas, sem distanciamento e silêncio.
O Gregori nunca conquistaria a oportunidade de conhecer sua filha e sua árdua trajetória disparou na memória. Cada fragmento de sua existência, desde a infância até aquele momento. Entretanto, algo o tocou no espírito. Sem conseguir enxergar pela ausência dos óculos, fora o trauma ocular numa das escleras e a audição prejudicada, uma sensação tal qual a ligação de almas, um vínculo entre o espaço e tempo com a Demdike, o fez enxergar a forma desfocada e iluminada que ele tanto conhecia. Gaya jurou que Franco a visualizava com nitidez, mesmo sem as lentes. Seria bem doloroso descobrir toda a tortura que seu amado vivenciou para alcançar tal decisão.
— FRANCO! — gotas de salivas escaparam e sua garganta arranhou pelo tanto que se esforçou para fazê-lo escutar.
Num mero desequilíbrio, o primeiro pé escapou para fora, tocando o ar, a chuva.
— Eu te amo — distante, no segundo que um raio caiu novamente na cruz e irradia todo o entorno, ela conseguiu ler os lábios machucados.
Tudo foi muito rápido. Um clarão amarelo e misturado com tons alaranjados tomaram a superfície da igreja. Era fogo. De volta no interior do templo, Gaya jurou escutar por trás mais gritos das pessoas que ainda restavam no centro, o sino persistiu a tocar e sequer se importou de pisar na barriga do bispo ainda vivo e agonizando para entrar pela mesma porta que Franco entrara momentos antes. De início notou-se a madeira escancarada. O caminho se repartia em cinco: uma saída para a rua, a sala da sacristia, banheiro, secretaria e uma longa escadaria para o primeiro andar. Os coroinhas e os jornalistas não se encontravam mais pelo ambiente, abandonaram todas as coisas na intenção de fugir.
A jovem se fazia presente naquele ambiente, necessitava cumprir seu objetivo. Suspenderia o corpo com as próprias mãos para tirá-lo daquela chuva e exposição dos raios que invadiam pelo teto da torre, fora o incêndio que se encorpava próximo e o cheiro sufocante da madeira queimada que percorria toda a igreja. Necessitava levá-lo para sua verdadeira casa.
Um suspiro. Um único suspiro escapou dos lábios trêmulos de Gaya.
Ela desconhecia se tratava de um milagre do deus que o Gregori seguia ou intercessão da Mãe Terra.
Dois padres mortos tomaram um espaço na escadaria, seus pés os empurraram para abrir espaço e ao atingir onde o incêndio ainda não devorava, a imagem visualizada a fez escorrer rios de lágrimas e pôr todo o seu lamento para fora, de modo a extrair toda a dor que sentiu. Parecia irreal, uma ilusão mental.
— A promessa que fizemos da última vez que nos vimos, não será cumprida. Você precisa permanecer vivo. Tem uma família para zelar.
Dane, deitado no chão ao lado de Franco, ainda respirava cansado e trêmulo por salvá-lo. Mas careciam sair daquele lugar antes que o fogo tomasse onde se situavam.
Gaya, receosa em assustá-lo, se aproximou cautelosa como se o rapaz fosse um mero animal indefeso, incrédula por vê-lo mais uma vez depois de um tempo desde que fugiu de Rye e o desprezado. Trataria de ser o maior peso carregado em toda a sua vida.
Sem qualquer dimensão do ato que cumpriria, tão fraco e aéreo, ausente dos sentidos aguçados, ele nem a percebeu no similar espaço. Seu semblante irreconhecível a fez desacreditar ser o mesmo Franco de antes. Tão vulnerável e necessitado e de cuidados redobrados.
— Me arrependo arduamente todos os dias e noites por dizer que você já estava morto para mim. Por deixá-lo desprotegido. Fui imatura e não sei o que faria se não o enxergasse respirar.
O calor da bruxa despertou a atenção do Gregori que se levantou com dificuldade para sentar e testemunhou a silhueta iluminada se moldando na visão turva e baixa. Tão perto, quase irreal, a bruxa se ajoelhou diante dele e removeu a corda do pescoço com cuidado. Mostrou-se tão frágil, prestes a se desmanchar diante dela ao sentir o toque em suas bochechas secas.
— O que fizeram contigo, Franco? — notou o olho opaco e se permitiu chorar ao vê-lo tão sofrido. Somente um manteve o azul oceano que tanto amava. — Eles te cegaram. Destruíram você — a garganta apertou e quase nenhuma palavra saía dos lábios molhados pelo sal das lágrimas.
O envolveu em seu colo de uma maneira triste que até Michelangelo reproduziria. Beijou os cabelos raspados e acariciou a pele do Gregori, que tremia de ansiedade e pânico.
— Também não escuto com um dos meus ouvidos.
Doeu bastante saber. Dane se levantou assustado com o fogo tomando e derrubando algumas partes enquanto a chuva persistia. As sirenes da polícia, bombeiros e ambulâncias, chegavam gradualmente para amenizar o caos da cidade.
— Precisamos sair daqui. O fogo está se alastrando, provavelmente a igreja será tomada e Kansas se encontra lá embaixo.
Não sabiam que uma parte da madeira da torre se desmanchou atrás, as chamas penetraram e faíscas cederam até atingir o andar inferior onde a missa fora celebrada. O barulho do fogo estalando numa parte abaixo deles instigava um medo visceral. Contudo, apoiado em cada ombro dos dois, Franco desceu a escada enfraquecido até alcançarem a porta dos fundos. Por segundos, Dane chutou a madeira três vezes até a fazer cair enquanto tossiam e trocaram a respiração com a fumaça. Os três atravessaram a calçada, repousaram de frente ao antiquário ao lado da floricultura que já não existia, aguardando os socorristas acudirem um por um.
Após avistá-los, Kansas se aproximou de modo a apreciarem a ruína de um fragmento do catolicismo.
Todos assistiram o sino cair e quem ainda permanecesse na igreja, já inexistia.
Finalmente respiraram aliviados, contudo, Gaya sabia que da última vez que vira o bispo, os olhos atemorizados do idoso na bruxa, definiram que ele sequer a procuraria novamente.
— Não me disse que... — embora exausto de tudo e enfraquecido, Franco tocou ambas as mãos na barriga da jovem que se posicionou de frente, sentada nos próprios joelhos à medida que as luzes vermelhas e azuis refletiam em suas costas.
— Foi complicado não o ter comigo quando ela nasceu.
Os olhos caídos e murchos avivaram por descobrir.
— Estava grávida quando partiu? Ela? Diz ser sobre no-nossa filha? — o sorriso que ela tanto amava, apareceu após torcer para enxergar mais uma vez. O olho opaco refletia a imagem da amada e o brilho transformou-se em lágrimas que se mesclaram num soluço sofrido, fazendo-a o recolher nos braços enquanto esperaram serem atendidos. — Não deveria ter recusado minhas cartas, Gaya. Esperei tanto por um retorno seu, descobri que sou pai...
Seus pulmões pesaram, ele tossia cansado de tudo o que experienciou. O corpo não aguentaria até segurar a bebê em seus braços.
— Me perdoe, amor. Errei demais por deixá-lo, ter sido egoísta e nunca mais se repetirá. Removi grande parte da sua felicidade e sonhos. O que me resta é te levar comigo e vivermos finalmente juntos, Franco. Me perdoa.
Não se importava se ele estava sujo, magro, somente o queria fazê-lo feliz a partir daquele instante.
— Nunca se afaste de mim — suas mãos trêmulas agarraram e beijaram a barriga, sonhando com a sensação perdida de acompanhar a gestação da própria filha. — Quando admiti que preciso de você, nasci para estar com você, é a mais pura verdade que não há como recusar, Gaya. Hoje não enxergo como antes, preciso enxergar mediante você. Não escuto feito antes e necessito escutar através de você. Sou fraco e estar contigo me revitaliza. Me recuso retomar a tristeza, porque finalmente desejo repousar na tranquilidade. És minha felicidade e agora, possuo mais uma para me convencer a resistir. Eu te amo, Gaya. Não admito estar distante de ti, pois pereço eternamente e sequer me deixe. Sou seu do princípio ao fim.
Maio de 2019 (dois meses depois)
Concernia num entardecer alaranjado e lilás da primavera de 2019.
Um caminho de grama irrigada contornada por flores espalhadas, velas baixas aromáticas e cadeiras de madeira com estofados brancos, guiava até o arco de folhas e rosas-brancas. Acima da cabeça dos convidados animados, árvores que sustentavam um varal cruzado de lâmpadas amarelas, proporcionaram uma atmosfera acolhedora e romântica. Ao lado do arco que servia como altar matrimonial, Dane Dawson elegante num terno azul-escuro e cabelos até as orelhas, fora acompanhado de Marieta, uma jovem alta e negra de tonalidade clara e neutra, elegante num vestido simples de renda azul-celeste. Ambos foram escolhidos pelos noivos para serem os padrinhos.
Kansas, trajado numa dalmática clerical branca, aparentava estar mais nervoso para o momento especial de seu amigo. Mas não tanto quanto Franco Gregori.
Seu terno azul bebê alinhado e acompanhado por uma gravata borboleta de tom similar, moldou seu corpo retomado como antes de experienciar o episódio em Rye. A cada instante, seu olhar direcionava até onde Gaya surgiria e seu cabelo parecia mais bagunçado pelo tanto que penteava para trás, impaciente para casar. Distante em três cadeiras à frente do noivo, ladeado pelas filhas, Kai suplicava paciência ao homem considerado seu filho. No lado correspondente à noiva, Delphine ninava Bloom arrumada num vestidinho off-white de mangas transparentes e largas, com pequenos bordados de flores beges espalhadas nas áreas dos braços e saia. Além de utilizar sapatilhas mary jane vermelhas num tom rubi. Seus cabelos ruivos e já enrolados, começavam a se tornar cheios sido penteados para uma tiara leve de flores pequenas se acomodar na cabeça.
A bebê chorava sem a mãe por perto e às vezes tornava-se bicuda, até o pai segurá-la para mimar. Atento na filha, de modo a se acalmar diante da espera pela noiva, o Gregori a apanhou nos braços e sentiu o conforto como um pai. Amava tanto a menina, que se recusava aceitar vê-la crescer tão rápido. Desejava aproveitar cada conquista ainda neném. As primeiras palavras, o primeiro andar, o nascer dos dentinhos...
— Olha como você está linda, filha! — Franco envolveu a pequenina de três meses e arrumou a manga dobrada do vestido quando o vento desarrumou. A minúscula Demdike se aninhou no pai quando deitou a cabeça no peito do rapaz. A mão, ainda sem anel e com a cicatriz, acariciou as costas da filha para confortá-la até. — Quem arrumou a minha bruxinha? — o sorriso alentador do Gregori, a utilizar novos óculos, se alargou ao senti-la soluçar por um princípio de choro. — Calma, meu amor.
— Você sabe quem arrumou a sua bruxinha, Franco — Delphine sorriu amável e exibiu um pequeno ursinho de pelúcia marrom para distrair a menina. — Olhe aqui para a vovó, querida! Seu pai está ansioso, não o deixe mais preocupado.
— Somente ela colocaria uma sapatilha vermelha na Bloom e a deixaria tão linda como a mãe — balançou a criança e ajeitou o diadema. — Não imagina o quanto estou perto de desmaiar, Sra. Delphine. De cem pensamentos, todos são sobre ela. Preciso vê-la ou terei que utilizar da minha filha para inventar alguma história que a Bloom necessita dela, apenas para enxergá-la. Um segundo sem Gaya, me deixa maluco.
— Então me entregue a minha neta. A coitadinha não pode enxergar a mãe e da maneira que se encontra, a Bloom absorverá sua ansiedade até cansar de chorar. E entende que Gaya está bem sensível com tudo, não é? — conferiu ligeiramente o relógio de pulso dourado e estendeu os braços para recolher a criança consigo. — Exatas seis horas. É o momento que ela entrará.
— E se ela desistir, Sra. Delphine? Não consigo respirar direito ao pensar nisso — beijou os cabelos ruivos da bebê até a devolver para avó. — Ela aceitou o pedido de casamento...
— Franco, está tudo bem. Nem se preocupe — tocou levemente o ombro do rapaz que relaxou os músculos tensos.
Havia retomado a terapia e tratamento da afefobia com um psicólogo de confiança e recomendado por Solomon. O contato com as pessoas próximas se tornou constante e o acostumou, ao passo que cuidava da filha e sentia a necessidade de segurá-la nos braços, ajudar a trocar as fraldas, banhar, alimentar e pôr para dormir. Na intenção de retirar o peso da maternidade, visto que perdeu o processo gestacional de Gaya.
Bem ao lado do noivo, acomodados numa cadeira confortável, um violinista e uma harpista da região, contratados para a cerimônia, principiaram a tocar uma versão limpa de "Sparks", do Coldplay. Franco implorou que a música fosse reproduzida, pois enquanto ainda escrevia cartas para a Demdike, antes de ser sequestrado e torturado, significou como a última música a ser ouvida. Todos os dias em que acordava no cárcere, à medida que o frio e a solidão aninhavam seu corpo exposto e fraco, a melodia, a letra, a voz ressoava na consciência, conservando-o desperto, cultivando os bons momentos que a amou. Ao ponto dos padres o ouvirem cantar — embora baixinho —, por intermédio das tubulações de ar.
O Gregori se notou zonzo por segundos, suas mãos ausentes de luvas suaram e a cada instante secava as palmas na calça. Os novos óculos, semelhante ao antigo, caía do nariz por culpa do suor. As bochechas tornaram-se vermelhas e o corpo estremecia, ao passo que seu estômago contorcia em nervosismo e os convidados se levantavam para receber a noiva. Seu olhar sequer desviou dela quando a testemunhou tão bela, que parecia irreal, um delírio de sua cabeça. Suspeitou viver ainda feito um refém ou no descanso eterno já morto, e que a cena de sua noiva entrando para se casar consigo, era um efeito do que ele ansiava viver em vida. Por segundos, distante e preocupada, Gaya o assistiu se beliscar nas palmas das mãos e pressionar as pálpebras para notar se aquilo realmente acontecia.
Na companhia de sua mãe Anya, a bruxa seguiu o percurso de flores e velas com um braço enlaçado na Demdike e a outra mão segurava com leveza uma papoula-vermelha escolhida para a ocasião e permissão das flores. Deparava-se inteiramente deslumbrante num vestido longo e branco de alças finas, preenchido por bordados de flores da mesma cor, além de seus cachos crespos um pouco maiores com tranças na frente, ser enfeitado por flores da mesma cor e folhas verdes.
A cada passo traçado na grama com aroma petricor, Franco se contorcia em choro e soluços, tal qual uma criança. A noiva se encheu de certezas que, a maneira que Bloom chorava era o espelho do pai. O mesmo biquinho, os olhos cheios d'água, as sobrancelhas unidas que mal apareciam... O amava tanto que, cada detalhe se tornava mais precioso com o passar dos anos.
Às vezes o Gregori enxugava as lágrimas com as costas dos dedos e mal raciocinava se precisava sorrir ou esvaziar toda a água do seu corpo pelos olhos.
— Eu os vi crescerem juntos na mesma intensidade que o amor floresceu entre ambos — entregou a mão da filha ao noivo que guiou o dorso aos lábios e beijou. — Que esse amor se conserve eterno.
A música prosseguia até alcançar o fim, Anya se acomodou ao lado da esposa e neta, à medida que Kansas aguardou pelos dois.
— Está tão linda que por um momento pensei vivenciar um sonho — acariciou os nós dos dedos dela e por mais que desejasse, não conseguia interromper o choro. — És minha esposa bem antes de chegarmos aqui, Gaya. Supliquei a Deus que se tornasse mãe dos meus filhos e se não acontecesse, eu preferiria viver solitário até o fim. Nunca aceitei ninguém que não fosse você. Sempre te quis e pereceria tranquilamente te amando.
Gaya apanhou um broche delicado do bolso superior do terno e prendeu a flor na lapela, arrumou a gola do noivo que sequer escondia todo o encanto pela amada, acariciou seu rosto intensamente corado e enxugou suas lágrimas que molhavam queixo e pescoço.
— Como tudo começou, querido. Não precisa se beliscar porque isso é real. Serei sua esposa — seus lábios, brilhantes por um gloss labial transparente e brincos dourados delicados, reluziram com a luz das lâmpadas enfileiradas.
A cerimônia prosseguiu, a música se dissipou até encerrar e Franco dividia a atenção na filha e sua noiva, suas duas razões para resistir. Por muito tempo considerou que a felicidade falecera no instante que abriu os olhos para o mundo, tal qual Bloom. Por infelicidade, precisou trilhar caminhos espinhosos para tocar a luz. Embora não merecesse todo o tormento. Seus olhos não enxergavam mais como antes, sua audição igualmente e. Franco Gregori experienciou toda a maldade em formas distintas e encontrou o conforto na família que sempre ambicionou ter. Tornou-se o pai que perdeu na juventude e o orgulho do próprio que ainda consumia saudades. Onde estivesse, O Sr. Callahan repousava aliviado por assisti-lo feliz.
— Franco Gregori, quer receber Gaya Demdike por sua esposa e promete ser-lhe fiel, amá-la e respeitá-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da vossa vida? — Kansas solicitou o consentimento matrimonial e a celebração se finalizava.
— Sim, aceito! — quanto mais falava, sua voz estremecia em choro. Até alguns convidados se viam emocionados pela maneira que ambos se amavam.
— Gaya Demdike, quer receber Franco Gregori por sua esposa e promete ser-lhe fiel, amá-la e respeitá-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da vossa vida?
— Sim, aceito! — mais uma vez secou as lágrimas de Franco com as costas dos dedos.
— Confirme o Senhor, benignamente, o consentimento que manifestastes perante a sua Igreja e digne enriquecer-vos com a sua bênção. Não separe o homem o que Deus uniu.
De pé, Dane Dawson recolheu as alianças douradas e finas repassadas por Anya, voltou aos noivos na intenção de Roman Kansas abençoar.
— Jamais pensei que entregaria as alianças ao homem que jurei ser inimigo. E agora também sou padrinho da filha dele — sorriu tão envergonhado que corou diante dos dois. — Estou muito feliz por ambos. É importante para todos os que estão presentes.
O Gregori recolheu uma aliança, concedeu uma leve tapinha no ombro do corvo e Gaya tomou a outra.
— És um grande amigo, Dane — ambos selaram as mãos e o Dawson retornou ao seu lugar, na companhia de Marieta.
Próximo de findar a cerimônia, Kansas estendeu as mãos disposto a abençoar o matrimônio e as alianças apoiadas nas palmas das mãos dos noivos.
— Gaya, — segurou a mão esquerda, na intenção de inserir finalmente o anel — receba esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade — pôs cuidadosamente o objeto no dedo anelar.
— Franco, — se espelhou nele — receba esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade — a mão esquerda com a cicatriz, tremia mais que a da esposa. Nunca em toda a sua existência se notou tão ansioso. Nem respirar fundo ou utilizar a técnica aprendida por Kai, acalmaria o oceano de emoções formado em sua cabeça e refletido nos olhos do ex-padre.
Kansas ergueu novamente ambas as mãos para a benção final e seus olhos transpareceram alívio após tanta aflição e por se fazer presente num momento importante do amigo. Apesar de insistir em afastá-los, no fundo, Roman sempre compreendeu a dimensão do que os noivos sentiam. Concernia em algo imenso bem antes de conhecê-lo no seminário. A exposição da estruturação de um amor que por muitos anos foi contido.
— Deus Pai todo-poderoso vos conceda a sua alegria. O filho unigênito de Deus vos assista benignamente na prosperidade e na adversidade. O Espírito Santo derrame o seu amor divino em vossos corações. E a vós todos, aqui presentes, abençoe Deus todo-poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo.
— Amém — todos exclamaram, apesar de muitos não seguirem as mesmas religiões, estavam por eles após o tormento.
O Gregori mal esperou o aviso de Roman para beijá-la. Suas mãos cravaram em cada lado das bochechas, prendendo-a num beijo sublime e sensual. Ele pretendia extrair tudo dos lábios grossos da Demdike, ansiava enroscar a língua na frente de todos, contudo, resolveu se conter. Ofegante, Gaya sorriu dopada pela sensação, sentiu sede em mergulhar mais uma vez naquele ato doce e apreciou o rosto do marido enquanto desfrutavam dos aplausos e a repentina chuva de folhas que despencou entre as luzes amarelas que ressaltaram na noite. Os grilos cantaram mais alto, os músicos tocaram uma música de encerramento e ambos seguiriam para o jantar com os convidados até dançarem a sós durante a noite inteira.
Ilha de Mull - Escócia: 13 de Março de 2024 - Três dias depois da Lua Nova
A casa que acolheu as Demdike na Escócia, local de nascimento da Bloom Mae, fora comprada pelo casal no intuito de desfrutarem da tranquilidade da vida pacata até envelhecerem juntos. A casa não precisou ser reformada, somente necessitou buscar os pertences de Franco para organizar um espaço que o permitisse viver como um pintor.
Anya e Delphine regressaram à Rye após a destruição das igrejas, a venda das casas pela maioria dos antigos habitantes e a chegada de novos residentes amigáveis, a incluir amigas da família Demdike. A cidade se preencheu de bruxas, o comércio fora dominado por famílias bruxas que sentiram segurança em viver no interior. A casa Gregori fora demolida e tornou-se uma pequena loja de pedras e cosméticos naturais produzidos por Delphine. Além da floricultura reerguida no centro que voltou ao funcionamento sob administração de Anya Demdike. A aura se modificou em pureza, paz espiritual e celebrações. Um centro de importância para resistência bruxa.
Bloom, com seus exatos cinco anos, seguia até a escola no fusca do pai e ao retornar para casa, uma mesa preenchida por comidas preparadas pelo Gregori, estremecia a pequena barriga. Desde minúscula que seu paladar fora moldado por Franco. O tempo livre se dividia com a mãe, plantando sementes, cultivando flores e construindo uma horta no jardim da frente. Às vezes aprendia a tocar cítara, deixada como herança da bisavó Anika e a cantar canções de bruxa. Tudo o que Gaya aprendeu enquanto, criança, repassava para a pequena ruiva.
Com o pai, Mae vivia com os cachinhos crespos bem cuidados, ao mesmo instante que saía toda suja de tinta no ateliê construído próximo da sala preenchida por quadros variados, plantas vivas e suspensas, incensos de diversos cheiros e iluminação quente. Os quadros de Gaya, o Gregori escondia no armário do quarto do casal.
O ambiente artístico detinha mais pinturas fofas feitas pela menina, do que seus estudos de observação através da janela direcionada ao jardim. Os períodos favoritos da criança tornaram-se as festividades do fim de ano, onde todos da família e amigos se reuniam de frente para lareira e passavam horas conversando, cantando e desfrutando da ceia que o ruivo preparava. Bem no inconsciente, Franco desejava agradar e existiam inúmeras razões para isso.
Gaya refletiu por muito tempo em ser realista com a filha acerca do papai-noel, conforme em sua infância. Somente compreendeu o sentido de construir um pouco de fantasia para sua criança, ao se estruturar como mãe e na companhia do mesmo homem que tempos atrás, era pequenino feito Bloom, no natal de 1999, comemorado na casa das Demdike. Franco experienciava um árduo período e na atualidade, assim que a filha se distraía na sala com a árvore-de-natal, o rapaz corria até o quarto apenas na intenção de esconder o presente comprado especialmente para a pequenina e fingir que o bom velhinho presenteou sua criança. A Demdike nunca entendeu em anos passados. Contudo, o Gregori fazia aquilo para proporcionar uma infância digna e feliz à Mae. E quando a menina alcançasse sua vida adulta, recordasse dos bons momentos proporcionados pelo pai:
"Franco observou a cartinha em mãos com pesar entre seus lábios trêmulos aos sustentar o choro, derramou somente uma única lágrima sobre o papel e guardou o restante consigo. Acreditava que de um dia para o outro a magia do Natal possuiria a sua vida por inteiro. Porém, ao memorizar sobre o que a amiga teria dito: Talvez nunca tenha se portado como uma boa criança, para enfim receber um presente tão significativo assim."
A pequenina Demdike crescia rodeada pelas avós maternas e seu avô paterno mais presente, concernia em Kai, que visitava a família três vezes em cada mês. Entretanto, todos os dias, Franco a fazia conhecer sobre quem foi o Sr. Callahan. Como seu pai se tornaria um avô cuidadoso que a amaria na mesma intensidade que o filho. E acerca do Dane Dawson, quando viajava com Marieta até a Escócia para visitar sua afilhada, que igualmente considerava como sobrinha, a mochila pesava pelo excesso de presentes comprados para criança. Entretanto, os presentes nunca ofuscaram o zelo e carinho que o corvo construía pela menina que viu nascer. Após o casamento de Gaya e Franco, o Dawson seguia sendo um suporte aos três.
Gaya e Franco
Nossa viagem ao Brasil está sendo perfeita. Aqui as pessoas são bem amáveis, calorosas, a cultura preciosa e plural. Não entendemos o que falam por ser uma língua complexa, mas as pessoas que nos acolheram foram incríveis e pacientes! A temperatura se altera em alguns horários e deveríamos trazer roupas mais leves numa próxima viagem. O litoral nem se compara com as belas águas que nos permite apreciar os peixes, diferente das praias próximas em Rye. Delphine se encontra ansiosa feito uma criança para conhecer o jardim botânico e voltar com alguns presentes interessantes para a Bloom, Poppy e Daisy. Já sabem quando elas nascerão? Para conseguirmos vê-las antes de completarem meses. Dizem que gêmeos são bem trabalhosos, mas nos alivia saber que o Franco acompanha seu processo gestacional a cada segundo. Nossas novas netas amarão algumas essências naturais para perfumar o quartinho lindo que prepararam.
Também aproveitamos o carnaval numa cidade litorânea distante de onde nos encontramos, numa região do país que chamam de nordeste. É bem próximo do que pensamos ser o paraíso, filha. Temos uma vontade imensa de comprar uma casa por aqui e programar passagens para os cinco quando as gêmeas crescerem. O dinheiro que recebemos por tudo o que passamos, valeu a pena.
Fiquem bem e quando desejar, esqueçam as correspondências. Assim que voltarmos presentearemos com celulares para cada um.
Com muito amor,
Delphine e Anya Demdike.
Após a leitura da carta, um jornal destacava:
Inquérito conclui que ataque em massa no sudeste da Inglaterra e demais crimes, a incluir na Itália, foram arquitetados por membros católicos nomeados pelo Pontífice.
Após a verificação das provas repassadas ao Departamento de Polícia de Londres, a investigação desarquivada e direcionada pelo ex-investigador particular Dane Dawson e o atual bispo Roman Kansas — ambos sobreviventes —, constata que o bispo anterior reconhecido como Arlo Hill, chefiou a organização criminosa responsável por assassinatos de padres e testemunhas. Uma de suas vítimas sobreviventes, Franco Gregori, foi um dos padres torturados e servirá como depoente no julgamento dos acusados, agendado para 2025. Mesmo que Hill ainda se recupere de cirurgias feitas no rosto, membros superiores e inferiores e na reconstrução de sua língua após a tragédia que o vitimou.
No mesmo ano de 2019, o ex-padre, conhecido pelo histórico católico e familiar, foi expulso pelo Papa Bento XVII após o Vaticano apurar denúncias de que o religioso experienciava um suposto relacionamento amoroso com uma das descendentes das bruxas de Pendle. Demais ocorrências no evento que vitimou cento e sessenta e um frequentadores (mortos e feridos), foram descartadas como responsabilidade dos acusados e se contesta uma "histeria coletiva" motivada geralmente por seitas religiosas, tal como em "Jonestown", em 1978. O relatório final contesta eventos paranormais e materiais coletados para investigação foram queimados, exceto a transmissão ao vivo. Além dos acontecimentos anteriores, Arlo Hill formulou o assassinato da cantora Ivone Castrell no ano de 2011, consumado no Vaughan Jazz Club em Soho. A família de Ivone alega respirar com tranquilidade e acompanharão o julgamento em honra pela falecida artista.
Além de muitas situações se resolverem, as obras roubadas e destinadas ao museu londrino e pertencentes aos Dawson, foram devidamente devolvidas e destinadas para organizações comunitárias na Romênia. A dívida com os corvos se findou e o nome da família, limpo do registro. Sem temer mais perseguições guiadas por Arlo Hill e seus aliados.
— Mamãe, mamãe, mamãe! — Bloom tentou saltar sobre Gaya, que repousava na grama do jardim durante o recomendado sol da manhã. A barriga de oito meses parecia tão grande ao ponto de estourar. Franco passava horas acariciando, beijando, conversando com suas filhas mais novas. — O que a senhora leu? — beijou a bochecha de Gaya e começou a pular na grama. — Olha, o tio Dane e o tio Kansas! Que foto linda!
Encheu de beijinhos os cabelos crespos escuros e agarrou a Demdike que gargalhou tão feliz, incrédula que sua primogênita crescera tão rápido. As pequeninas mãos acariciaram suas bochechas quentes e seguiram para a barriga, até envolver os bracinhos nas irmãs protegidas com a mãe.
Bloom tornava-se fisicamente idêntica ao pai. A forma dos olhos de côncavos fundos, as sobrancelhas ruivas, o formato do rosto, a cor do cabelo, os sinais espalhados na pele, a doçura em cada palavra...
Somente a cor dos olhos se diferenciou, numa tonalidade castanho escuro, a pele negra de tonalidade clara e o cabelo crespo na mesma textura de Gaya. A cada vez que saía para passear com Franco ou quando a guiava até sua escola, as pessoas que os viam, enalteciam sobre o quanto Bloom Mae se assemelhava.
— Carta das suas avós — deixou os papéis de lado, apanhou a pequena mão da criança e beijou. — Agora não pode ler, mas seu pai ajudará nisso, tudo bem? O papai deseja muito reforçar sua leitura depois da escola. É só ter um pouco de paciência para ele se adaptar com o aparelho auditivo.
— Tudo, mãezinha — covinhas nas bochechas tomaram com o sorriso de dentes pequenos e um deles estava amolecendo para cair.
— Bloom, querida! Tenha cuidado com sua mãe e a barriga — Franco se distanciou da casa e se aproximou descalço, vestido numa calça moletom cinza e camisa branca suja de tinta. Seus dedos descansaram na grama limpa.
— Eu sei, papai! — a menina correu em direção às folhas que flutuaram com o vento e sem ultrapassar o pequeno portão de madeira.
De cabelos desalinhados e um sorriso caridoso que enrugou os cantos dos olhos, o rapaz se uniu a elas, acomodou-se na relva para ladear a amada e beijou intensamente os lábios. Como se o amor de ambos crescesse ao decorrer dos anos.
— Nossa... — sugou o ar entre os dentes, encantado com a beleza da esposa. — Você está incrível com essa barriga linda, amor — acariciou a pele retinta com estrias e sua felicidade mais pura se resumia àquele momento. Também se esticou para beijar um lado da barriga feito costumava fazer. — Quando eu pôr a Bloom para dormir, massagearei sua barriga, seus ombros, os pés, remover um pouco desse desconforto e inchaço. O que acha? Ou prefere um banho juntos na banheira com ervas, velas...?
Seus lábios preenchidos de malícia seguiram até a lateral do pescoço da Demdike que sorriu desajeitada e sentiu a pele estremecer por inteiro. Tudo em si vibrou como na primeira vez que se viram após seguirem diferentes caminhos, o momento do confessionário, na floricultura, no ateliê, no antigo quarto do Gregori em Rye. A Demdike inflava a cada ano que o via envelhecer consigo. O rosto e atitudes amadurecidas do ex-padre, as palavras certas para fazê-la ceder.
— Hum... — fez um biquinho que fora beijado. — Os dois. Precisamos descansar de tudo até o nascimento das duas bebês — no exato instante a barriga se mexeu. — Estão agitadas. Sente, amor.
Franco se inclinou para frente, encostou a lateral do rosto e pousou a mão esquerda com a aliança sobre a pele preta iluminada pelo sol.
— Sei que estão dando bastante trabalho para sua mãe. Mas por hoje o papai precisa que descansem por ela. Mal espero para vê-las, estar presente no dia que nascerem e cuidar como cuido da irmã de vocês — beijou a barriga por alguns minutos. — Além de descobrir se parecem comigo... — a Demdike revirou os olhos.
— Já chega um pouco de parecer contigo, não acha?
— Não tive culpa se a primeira puxou a mim. A mãe de vocês ficou bem irada comigo, mas pensou tanto em mim, que sua irmã mais velha se parece com o pai de vocês — sussurrou para as gêmeas.
— Apesar de me "difamar" para nossas filhas, elas amam te escutar. Sua voz acalma — o sorriso anestesiado era tão belo, que Franco passaria anos apenas a admirando.
— Não mais quando você canta — se aproximou bastante do ouvido de Gaya, arrepiando todos os sentidos. Os olhos escuros o hipnotizaram a desejar falar coisas que sentia vontade. — Creio que também precisa ou torce por outro tipo de massagem para relaxar, não acha? — seu tom de voz enrouqueceu, arrastando para fora qualquer consciência limpa na bruxa. — Toda a ansiedade para o julgamento do ano seguinte te deixou bem tensa e prefiro que todos os seus músculos amoleçam para mim. Não se esqueça que hoje é meu aniversário.
— Por favor, Franco. Não fale dessa maneira. Nem devemos ter mais filhos. Sem utilizar artifícios como esse.
A criança correu para uma das árvores e se distraiu apreciando um ninho de passarinho no alto de um dos galhos.
— Vamos nos cuidar sobre isso. Prometo — mordiscou o lóbulo da orelha que estremeceu por ele. — Sei que você me olha cozinhar, tomar banho, pintar meus quadros... grávidas possuem desejos, sabia? Se casou com alguém que consegue realizá-los.
— Da última vez que me prometeu, olhe onde chegamos, querido. Estou gestando gêmeas por sua culpa, Franco.
No exato instante, a menina correu de volta aos pais.
— Mais tarde, Franco. A Bloom está voltando — ele arrumou os cachos dela na orelha e se ajeitou na grama para deitar.
— Me chame de "amor" para somente falar meu nome em outras situações enquanto ficarmos a sós.
Bloom saltitou e se jogou nos braços do pai. Até disputar corrida sozinha.
— Bem, tem algo que preciso te mostrar. Para mim, encaro como um presente de aniversário o que você irá ler nesta carta. Me perdoe se li antes de te entregar.
Franco apalpou um dos bolsos laterais do moletom e sacou uma correspondência diferenciada. Ele a entregou e antes que ela pudesse abrir, precisou declarar o que sentia e pensava:
— Assim que a Poppy e a Daisy nascerem, preciso muito que faça o que sempre amou fazer. Você agora possui uma família que te apoiará em cada sonho que surgir. Estaremos contigo, amor.
Gaya sequer demorou para desatar a abertura do papel e traçar seus olhos ansiosos num emblema importante e letras serifadas bem estruturadas. Resultava na tão esperada carta de aceitação para a academia de artes dramáticas de Londres. Após o casamento, a Demdike estudou até cumprir sua avaliação. O Gregori a acompanhou em todas as etapas e voltaram para a Escócia de modo a aguardarem pela correspondência.
— Você continuará seus estudos, seus sonhos e quero estar próximo. Ainda mais oficialmente como seu esposo. Se preferir que eu fique com as meninas aqui na Escócia, tudo bem. Embora sentirei saudades todos os dias. Mas se... — deitou junto a ele e beijou os lábios para o calar.
— Podemos comprar ou alugar um apartamento em Londres para vivermos durante o meu período de estudos, amor. Não quero me afastar de ti sequer um minuto, Franco. Já me pediu isso e necessito que esteja comigo. És meu marido, meu melhor amigo, o pai das nossas filhas e preciso envelhecer ao seu lado. Assistir às meninas crescerem testemunhando o nosso amor. Os pais se amarem da maneira que amam. Eu te amo, Franco. Te amo.
Os olhares cruzaram tão inquietos e em simultâneo, plácidos. Franco a enxergava como o maior motivo de resistência. Era sua musa, sua vida, sua queda, o levantar.
— E se algum dia a maldição me levar antes? Ainda temo, Gaya.
Após a queda da igreja e o fim de Moniese, Gaya guardava um segredo e temia confidenciar ao Franco, temendo sua reação. Precisava expor o que descobriu no instante em que todas suas ancestrais lhe guiaram no julgamento dos malditos.
— Nunca mais acontecerá — o Gregori se viu confuso e apoiou os cotovelos na grama para se atentar. — No dia que te salvamos, quando minhas ancestrais surgiram para me ajudar, elas me revelaram que eu precisava descansar acerca do medo sobre perder quem amo quando sua avó sumisse de nosso plano — inflou os pulmões para tomar coragem extrema. — A partir do momento que nos conhecemos, durante nossa infância, você sabia que seríamos amigos. Mesmo que Moniese lhe impedisse, você queria estar próximo.
— Sim, eu sempre quis e possuía medo em admitir — o olho azul e o opaco correram na face da Demdike, em busca de qualquer emoção oculta. — Era sobre isso que elas revelaram?
Tudo o que viveram, o medo, a pressão, o afastamento, dispararam como memórias na consciência de Gaya. Se soubessem daquilo bem antes de tudo, Franco não tomaria as decisões que se passaram e sequer viveria refém da escuridão. Poderia ter sido diferente, mesmo que o momento atual de ambos resultasse num sonho compartilhado e realizado.
— Quando nos conhecemos, houve o princípio de uma remissão. Algo que nem consigo explicar, talvez o destino nos ofereça compreensão ou a Mãe Terra, quiçá a Madre Mortem — engoliu um bolor na garganta ao estruturar suas palavras. — Você é a exceção, Franco.
— Ainda não compreendo — ele sorriu confuso.
— Seu pai fez escolhas, se sacrificou por muitas coisas, para você não seguir o mesmo destino que ele. Desde o princípio nossas linhagens foram moldadas pelo ódio, o Sr. Callahan foi amaldiçoado, mas não pereceria daquela maneira por construir um convívio com minha família. Ele envelheceria como nós, conheceria nossas filhas se não optasse por te salvar. E antes dele partir, além de suplicar que buscasse por ajuda, o clamor de seu pai não foi por Deus e nem para ser salvo — Franco se ergueu, sentando ao lado da esposa. Seu semblante emocionado e assustado, denunciaram o quanto suas lágrimas se aproximavam. Os olhos brilharam sem ocultar a profundidade de suas emoções. — Num momento ele acreditou na mesma entidade das bruxas. O socorro que te implorou nas águas, se referia a você. Unicamente você, querido. O Sr. Callahan implorou à Mãe Terra que o único filho dele fosse poupado.
— Eu... — principiou a chorar e soluçar, enquanto Bloom brincava com borboletas. A voz rouca se afinou à medida que sua garganta fechava. — Eu não consigo acre... — negava insistente a acreditar. Porém, no íntimo de sua alma, um sussurro o trazia para a verdade.
— Quando você diz que nasceu para mim, Franco, é a mais pura verdade. Assim como nasci para ti e nunca mais negarei acerca disso — o interrompeu, segurou firme o rosto do marido e quis enxugar as lágrimas constantes. — O nosso destino é esse, amor. Algo foi construído na sua mente que a qualquer momento pereceria. Visto que a maldição findou com as decisões de seu pai. Ele te estruturou para ser amado por nós, bruxas, te edificou gradualmente para nos amar, respeitar. Sem compreender que você construía a nossa relação desde pequenos. Tudo terminaria aqui. Talvez em outra realidade seria diferente. Porém, nessa, chegaríamos nesse momento.
— E-então envelheceremos e assistiremos nossas filhas crescerem? — aproximou os rostos e principiou a sussurrar contra o nariz da amada até os olhos de ambos fecharem. — Sem temer minha morte?
— Viveremos até nossas meninas já adultas e com suas famílias, nos enterrarem juntos. Quando perecermos, que nossos corpos estejam lado a lado no cemitério ou que nossas cinzas se unam para serem espalhadas no carvalho em Rye.
Franco a encaixou entre suas pernas, envolveu os braços da cintura da bruxa mesmo com uma distância provocada pela barriga e beijou da testa até a ponta do nariz inchado pela gestação.
— Me promete? Se fomos feitos um para o outro, desejo me tornar uma borboleta contigo. Assim como a lenda que me contou quando éramos mais jovens.
— Prometo, homem de nome estranho.
¹Queloide: Queloide é um calombo que aparece devido ao excesso de colágeno resultante do processo de cicatrização exacerbada em uma ferida;
²Sobrepeliz: Veste branca usada sobre a batina por coroinhas em algumas comunidades, também é usada por cerimoniarios.
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