Capítulo 29: Fogo no Céu
*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, PERTURBAÇÃO ESPIRITUAL, PERSEGUIÇÃO E VIOLÊNCIA VERBAL.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Her & the Sea - CLANN e One Last Glance - Invadable Harmony, Roxane Genot
*CAPÍTULO SEM REVISÃO MINUCIOSA.
A cidade estava em chamas. Não ao ponto de se levantar labaredas, mas situava-se a um passo disso.
Padre Franco Gregori e uma Demdike mantiveram uma relação sigilosa. Os boatos repassados pela beata, correram mais rápido que o vento ou um risco de fogo que se alastra.
Nem mesmo os desinteressados se pouparam de apanhar a notícia.
As opiniões eram nebulosas, desde a tentação pelo Diabo, até o enfraquecimento do sacerdócio. Mas uma bolha ainda não fora rompida.
Na floricultura, o casal Demdike sequer sabiam o que corria pelos cantos de Rye. Alguns clientes entravam e nem poupavam olhares indiscretos contra as duas bruxas que nem imaginavam acerca do caos instaurado.
"Já não bastava a vergonha de serem bruxas numa cidade católica, agora terão de aceitar o desprezo de uma filha meretriz". Sopraram fora da loja.
— Você trocou as begônias de lugar? Não lembro de ter trocado — tranquila, Anya acentuou para Delphine que conferia uma gama de flores numa extremidade da loja, ergueu a cabeça para vistoriar as funções da esposa e regressou à sua tarefa.
Separava por ordem alfabética.
Utilizavam a flor para remédios manipulados e recentemente fecharam parceria com uma loja local de cosméticos naturais. Isso aumentaria os lucros das Demdike e era nítida a imensa felicidade estampada na face das duas.
— Espalhei algumas perto das margaridas e outras deixei no depósito de sementes para manter até a cliente chegar, querida.
— Pensei que todas estavam aqui. Foi puro engano.
— Está perdoada.
Delphine se aproximou da esposa e beijou os lábios, até que o sino suspenso alertou a entrada de alguém no recinto.
— Vou atender — Hawthorne se animou, contornou o pé em direção à passagem para recepcionar a cliente.
— Sorriso no rosto, hein? — Anya puxou os cantos dos lábios com os indicadores. Delphine estava cansada antecipadamente pelo dia.
Porém, na tal visita, algumas flores, principalmente os lírios, chiaram alto no ambiente e na audição de Delphine e Anya. Algo estranho se principiou. O receptivo calor que habitava na loja se perdeu com um incomum frio mortal.
Poderia ser uma algazarra mimada das flores carentes de atenção, contudo, a nuca de Anya não se arrepiou sem propósito.
Sem se importar, Delphine, educada, cumprimentou a mulher que aparentou estar na casa dos sessenta anos com os cabelos pretos que caíam de lado como cascatas, mas os olhos da bruxa anfitriã atingiram o chão com pegadas de lama.
Quanto mais se aproximava para atendê-la, seu olfato captava o fedor nauseante que instigou o ácido do estômago voltar para a boca num mero arroto.
Temerosa, o inconsciente de Anya alertou, seus pelos ergueram nos braços e suas escleras em pânico fincaram Delphine que olhou por cima do ombro para a esposa que aconselhou a seguir o atendimento até descobrir do que se tratava.
— Busco por Gaya Demdike — a voz arranhada cortou os ouvidos e as flores não paravam de gritar.
As bruxas se incomodaram ao extremo com a agonia instaurada no ambiente por culpa da presença da estranha. A sensação de pavor percorreu na pele como raízes se fincando.
— Minha filha não se encontra. Hoje ela não trabalha. Porque a procura? — distante, Anya respondeu ríspida.
— Foi o que pensei — ergueu o queixo em soberba, um sorriso seco e maldoso desatou nos lábios e o indicador tocou uma das flores próximas que murchou.
Com exatidão, faleceu.
Aquela reação era tão esquisita, ao ponto de Delphine recuar em passos lentos e perto de Anya, que a protegeu atrás do balcão. Não precisaram se olhar para compreender o que vivenciavam.
— Sabia que pela cidade já corre a notícia que sua querida filha está fodendo com o Padre Franco Gregori? Ou pior, ele está fodendo ela. Curioso e talvez Gaya esteja nesse momento degustando disso. Se eu fosse vocês, prestaria atenção. Não se sabe quando um demônio pode nascer desse ato.
Anya, se aproveitando da mulher dispersa e em simultâneo atenta na perversidade daquela senhora, apanhou um mediano saco preto do balcão e escondeu atrás do corpo. Delphine principiou a murmurar baixo palavras incompreensíveis e as flores findavam gradualmente os gritos de pavor.
— Sei do motivo de vir aqui — Anya, em passos cautelosos com as mãos ocupadas para trás, corajosa, se aproximou da mulher que se afastava num olhar surpreso, talvez esperando que algo acontecesse. — Assim como sei quem és. Moniese Gregori — a mulher saltou para trás, pega desprevenida e olhou por segundos para não esbarrar em qualquer coisa. — Você não descansa por ser tão maldita, ruim, egoísta, espírito imundo. Não tem coragem de chegar na forma real, utiliza de corpos inocentes para envenenar a todos e anseia ruir nosso ambiente sagrado!
Anya sentiu os olhos arderem por evitar piscar. Qualquer movimento perderia a sua atenção.
— Estou me vingando de tudo o que fizeram a mim. Principalmente a sua filha, A ASSASSINA! — gotas de saliva escaparam no ar, mas sequer atingiram Anya. — Jurei que nunca ficariam juntos. Ela e meu neto não ficarão juntos.
Todas as flores, sem exceção, gritaram mais alto e recusaram as palavras de Delphine. Tudo se tornava mais assustador quando a gargalhada de Moniese ecoou nas paredes, vidros, vasos e cada fragmento natural. O ar se tornou sufocante, Hawthorne estava perdendo sua concentração no ritual silencioso, o fedor tomava conta até das pétalas perfumadas, até o instante que Anya trouxe o saco escondido para frente e sua mão apanhou uma quantidade de sal negro nas mãos.
— Quando sua maldita filha morrer, carregarei sua alma comigo! — babou feito um cão raivoso. — Farei questão disso.
Seu corpo se inclinou para frente, ameaçando atacar a Demdike que sequer se estremeceu.
— Moniese Gregori, jamais ouse pôr seu espírito condenado num ambiente de bruxas. Nem em qualquer lugar pertencente a uma Demdike. Não passará das portas, janelas, tampouco entradas ou saídas de qualquer canto. Seu lugar é no martírio, por honra a minha Mãe Terra e Madre Mortem.
— Vocês irão queimar...! — sua língua enrolou feito serpente e os olhos, no fundo, detinham um brilho fumegante. Nem todas as pessoas perceberiam.
— Não, Moniese! Você queimará — uma linha fina se formou nos lábios.
No mesmo instante em que Moniese estremeceu medrosa com as palavras, Anya lançou o sal sobre o corpo da idosa e como uma fumaça, a Gregori se esvaiu por trás distante da carne e mente controlada.
A porta de vidro da floricultura, vibrou num estrondo e sequer rachou. A calma retornou no recinto com a fuga da matriarca Gregori. Já a pobre senhora, ao sair do transe e possessão, desentendeu os motivos de estar na loja. Antes de ser manipulada e a escuridão vendar seus olhos, se direcionou ao antiquário e de repente surgiu naquele lugar. Sem motivos.
Sequer existia outra notícia que não fosse acerca do envolvimento amoroso entre o amaldiçoado e a bruxa. Consideraram a atitude do padre uma falha.
Ela, aquela que corrompe. Estava enraizado na mente de muitos.
— Antes de se trancar em sua casa, na minha, atrás de um dos livros, aquele que conhecemos — pontuou no segundo que ela quase saiu pela entrada inferior da igreja —, existe uma abertura na madeira falsa da estante.
Concedeu os seguintes passos para que ela escapasse da cidade. À medida que no exterior, escutava um burburinho e até gritos revoltados. Provavelmente fiéis vinham de encontro à casa de Deus para questionar o sacerdote que se entregou ao pecado.
— Existem algumas joias e uma boa quantia de dinheiro.
— Não. Não, Franco, eu não preciso — insistiu ao vê-lo se aproximar pela última vez e agarrar suas mãos.
Os olhos azuis fincaram nos dedos tatuados e acariciados. Até os levar aos lábios para beijar.
— Escute bem. Quero vendê-las para comprar nossa nova casa e o dinheiro para seguirmos nossa vida longe daqui — seu olhar apaixonado sequer temia a movimentação externa. — Então preciso que pegue tudo, não esqueça nada de importante, principalmente meu diário e fotografias.
— E se alguma coisa acontecer e não der tempo? — embargou a voz e o sofrimento tomou sua razão ao se reaproximar dele e entregar um beijo no lábio superior.
— Se algo ocorrer, você fugirá sem olhar para trás — sussurrou bem perto.
— Franco eu não posso, não posso — lágrimas escorreram enquanto ela piscava as pálpebras inquietas.
— Você sempre conseguiu, Gaya. Confie em mim.
O jardineiro surgiu de súbito por trás, mas não se importou tanto com o que avistou e se direcionou à entrada, para selar a grande porta. Havia tomado os cochichos por Rye, porém, acreditava no coração do sacerdote ao contrário de suas vestes.
— Perdão pela intromissão, padre. Estão lá fora e esperam que saia para dar explicações. Não sei o que fazer — apanhou o boné da cabeça e recolheu na virilha. Seu semblante apreensivo por conta do que ocorria, sensibilizou o padre.
— Por favor, os distraia. Sinto muito por lhe direcionar a fazer isso, Eustace. Mas é sobre ela. Sempre foi ela — a apresentou rapidamente. — Minha esposa, Gaya Demdike.
— Senhorita — a reverenciou e os ouvidos se atentaram na algazarra.
— Assim que Eustace atrair a atenção dos católicos, fuja pela mesma porta que ele entrou e se misture com as árvores do cemitério. Não retorne mais aqui, amor — a beijou até um fio de saliva interligar os lábios — Por favor, Gaya. Eu te amo.
No mesmo instante, batidas intensas na porta principal da igreja assustou os três, em sequência de gritos necessitados da aparição do sacerdote.
— Promete que me ligará ou mandará cartas?
Os pés de Gaya se distanciaram até os fundos da casa de Deus e ela o amou pela última vez. A imagem de Franco sorrindo sem exibir os dentes, além de ajustar os óculos na ponte nasal, foi o que cortou sua alma. Era o mesmo de sempre.
— Não — as sobrancelhas da bruxa caíram tristes. — Porque irei atrás de você. Distância para mim, é morte. Nunca te perderei de vista.
À medida que o caos reinava, Gaya retornou à residência Gregori destinada a apanhar as coisas que ele indicou. Incluindo seu diário. Precisava cumprir o tempo antes de suas mães retornarem da floricultura e inexistia qualquer coisa que a impedisse de fugir para a Escócia com ele.
Num subir e descer de escadas, caixas grandes e vazias arrumadas de um canto da cozinha, se encheram de algumas coisas. Não poderia nem deixar a papoula, quadros e alguns outros bens mencionados. Com a flor, ela preparou o vaso e um cantinho para evitar que as pétalas fossem amassadas na movimentação.
Quando tudo estava mais quieto e organizado, antes de sair, trancar a porta e abandonar a chave abaixo da madeira, seus olhos aflitos atingiram o diário de Franco. Existia uma curiosidade em descobrir as coisas que ele guardava, o que escrevia.
— Não. Não posso invadir mais o seu espaço. É uma quebra de confiança — a um passo de apanhar da caixa, sua mão esticada recuou e ela ergueu outra nos braços para desvincular do pensamento.
Foram exatas três vezes que seus olhos cravaram no diário e os braços desistiram de sustentar a caixa ao abandonar no sofá.
— Me perdoe, Franco.
A sensação penosa e a culpa eram fortes. Mas não tanto quanto a vontade de ler cada folha.
Os dedos traçaram com carinho a capa, abriram e seguiram nas páginas. Entre coleções de folhas secas, rabiscos, desabafos de adolescente, ela alcançou as partes escritas naquela fase atual. Suas escleras por instantes brilharam ao saber que ele a amava há tanto tempo.
"Queria ter dito que a amo bem no segundo que o primeiro beijo lutava para surgir. Éramos mais jovens e temi assustá-la com um 'te amo'. Não sei se percebeu o quanto meus olhos clamaram por ela. Jamais pensei o quanto gostaria de viver eternamente em seus toques, sob sua atenção".
"Embora qualquer ato nosso fosse oculto, queria imensamente que assistissem como é bela junção de dois corpos que nasceram para se fundir. O cheiro que exalamos é específico, um perfume cálido, nossos olhos distantes como o oceano e o espaço, unem-se formando um mundo que nos pertence. Aposto que lutariam para sentir o que experienciamos a sós".
Por instantes, uma felicidade a tomou pelo corpo ao ler cada palavra. Mas no seguir das demais páginas, até atingir a última, sua feição de deleite e encanto, despencou. A mente caiu com o corpo num penhasco de desilusão. A data seguinte confidência batia com o exato dia que lia. Provavelmente escrito durante a madrugada.
"Eu a vi na janela, bem lá fora, enquanto a chuva caía. Sua feição decepcionante me aterrorizou. Desde que Gaya retornou, eu sabia que não era a única a vê-la e não pretendo contar sobre o fantasma da minha avó. Moniese sempre vigia pelo exterior da casa e às vezes adentra, pensando que consegue me dominar. Feito quando o corvo veio se redimir. Também passeia pelos corredores, espia pelos cantos mais escuros ou surpreende durante as oscilações das pálpebras numa noite qualquer. Pensei em queimar seus ossos no cemitério da capela, contudo, em partes, ela ainda é minha família. A última que restou. E fingi não ter visto ou estar tudo bem quando Gaya se desesperou. Acharão que estamos fora dos nossos sentidos se isso for revelado. Dirão que nos descontrolamos, que vivenciamos uma psicose compartilhada pela frequência dos nossos encontros. Então, prefiro jogar isso abaixo do tapete como Gaya afirmou.
E por infelicidade, ainda levanto dúvidas sobre sua morte repentina. Estou sendo contra quem eu sempre fui, sobre estar ao lado de quem de fato amo. Em partes, sinto que Gaya não moveu um dedo para recuperar, e será que realmente não motivou o fim da minha avó? Permanece um mistério. Algo que nunca trouxe em discussão para resolvermos a sós. Não compreendo ser um trauma que guarde, mas eu precisava saber. De qualquer maneira, era minha avó.
Espero estar delirando ou reagindo tal qual um tolo, porque Gaya agora é minha esposa, a mulher que amo desde o princípio. Futuramente nossos filhos surgirão. Antes disso nos casaremos. Entretanto, essa dúvida precisa ser sanada em algum dia. Precisamos conversar".
O diário foi arremessado a poucos metros. Até limpou os dedos na roupa, como se sujasse com as palavras escritas nas folhas que um dia foram um presente de sua família.
— No fundo, Franco bem considera que sou uma assassina — esfregou os braços para se aquecer de um frio que seu próprio corpo provocou. — E ela sempre será um hospedeiro em nosso relacionamento.
Aquilo foi escrito enquanto ela dormia vulnerável, crendo que tudo estaria bem. Resolvido. À medida que ele duvidava de si.
"E se eu estivesse casada, compartilhando a mesma cama, sem saber que Franco me acusaria em silêncio? Sendo o juiz acerca de uma situação que ele nunca se fez presente."
Não daria mais para continuar assim. Deixaria de existir as brigas frequentes, nem mesmo o sentido de estar casados. Nenhum dos objetos na caixa a pertencia. A flor até perdeu o encanto. Gaya nem pensou tanto em abandonar cada coisa na casa, destinada a partir e jamais o ver. Dessa vez não voltariam.
Próximo do anoitecer, quando o lilás pintou o céu, após o ocorrido na floricultura, Anya e Delphine chegaram em casa. Aos poucos tudo em Rye se tornava denso, não havia sequer alguém que acreditasse naquilo, sem ser as próprias bruxas.
A porta rangeu ao ser aberta e a primeira imagem avistada, resultou em Gaya sentada no chão da sala com o mesmo vestido da noite anterior, finalizando a arrumação de sua mala. O zíper fora fechado, ela deu uma comprimida amassando o volume e dali partiria no primeiro trem, como em tempos passados ao viajar para Londres.
Também algumas gotas e manchas de sangue acentuaram os olhos das Demdike. Mas diferente daquele tempo, uma amargura habitava no rosto molhado pelas lágrimas. Até sua pele reluzia por culpa da umidade.
Por último, ela secou a decisiva gota salgada no queixo com as costas do polegar, libertou o pesar e notou as mães desconfiadas se aproximarem ao selar a porta.
— Gaya? O que está fazendo? — Anya largou a bolsa na mesinha de centro e chegou mais perto para observar por cima. — O que são essas... — referiu-se às manchas de sangue, mas fora interrompida de falar.
— Sabe as intenções em pôr uma mala no sofá, mãe — ríspida, apertou os lábios e seus olhos escaparam do contato materno.
Gaya se apoiou no chão e ergueu se igualando à mãe, ao mesmo instante que Delphine rodou a chave no indicador em passos até às duas, mas antes largou por cima da mesa de jantar.
— Sim, sabemos. Mas é para sempre ou por instantes? — exprimiu preocupação ao enlaçar os braços.
Seu corpo enrijeceu em desaprovação.
— Tenho que partir para sempre — fungou o nariz e as pálpebras piscaram incessantes, sem qualquer pausa. — As coisas estão piorando e se forem rápidas, gostaria que arrumassem as suas também. Preciso que venham comigo.
— Mas Gaya... — Delphine achegou na filha até perceber o recuo e os olhos preenchidos pela mágoa. — Filha.
— Antes de qualquer decisão, minha e de sua mãe, precisamos saber algumas coisas — mordiscou o lábio inferior, receosa em questionar. — Porque não nos conta sobre o que acontece com Moniese Gregori? — atraiu o olhar aterrorizado da jovem.
— Gaya — Delphine ladeou a esposa, — nós sabemos.
O silêncio pairou e cortou o ambiente ainda tranquilo. Aquele silêncio constrangedor onde apenas uma pessoa precisa findar a agonia que provoca.
Delphine permitiu que seu suspiro agoniante inundasse a sala e Anya engoliu raspando o medo pela garganta. Gaya, ao contrário delas, notou tranquilidade em confidenciar.
— Então ela apareceu para vocês? — se lançou no sofá, descansada no encosto. — Na forma real?
— Ela é covarde. Incorporou em outras pessoas — Delphine curvou a boca em repressão e se ajeitou ao lado da filha. No outro extremo do sofá, deixando o centro vazio. — Mas sim. Moniese apareceu.
Gaya esfregou o rosto com as palmas, desejando apagar a imagem da Gregori. Mas a escuridão de seus olhos permitia as escleras demoníacas surgirem.
— Comigo, sua aparição tem sido constante — apoiou os cotovelos nos joelhos e punhos no queixo. Conversava de soslaio com suas mães. — Moniese me persegue desde Londres, como uma doença silenciosa que em qualquer momento emerge para lembrar que existe. Me recusei dizer a vocês que ela tentou me matar diversas vezes — as mães se tomaram de espanto. — Dane testemunhou, podem perguntar sobre, ele dirá. E em mais uma tentativa, enquanto eu dormia, no meu momento mais vulnerável, vovó Anika em sua forma jovial me salvou. Um dia antes do funeral.
— Não posso crer... — Anya murmurou em choque e se ajoelhou, próximo das duas.
Hawthorne esticou o braço e acariciou o ombro esquerdo da esposa. Disposta a apoiar mediante a revelação.
— Moniese bem deve estar me acusando de coisas absurdas nesse instante e de a ter assassinado. Vocês sabem que não a matei — seu olhar atingiu as mães que concordaram silentes com a afirmação. — Apesar de eu ter passado longos anos me culpando, hoje me enxergo inocente. Mas ela me faz reviver momentos de angústia. A experiência de assisti-la perecer na minha presença, às vezes retorna. No entanto, se desfaz quando me sinto em casa.
— Sabemos filha — Delphine apanhou o pulso de Gaya e a desmanchou até entrelaçar os dedos. — Você nunca seria capaz disso num impulso, nem por puro prazer — trocaram um sorriso acolhedor e labial, à medida que Anya mantinha seu foco no chão. Perdida na saudade pela falecida mãe. — Mas agora está fora do controle. Ela não deveria estar tão forte assim, possuindo corpos, invadindo sonhos... e sabemos que esse tipo de espírito se transforma em algo inatingível. Precisamos agir.
— É complicado — rebateu a mãe.
— Filha...
— É o Franco — as duas desentenderam. — Tentei protegê-lo, sem saber que... — desprendeu os dedos de Delphine e arrastou a palma no rosto. Seu tom antes penoso tornou-se ríspido, com um amargo enjoativo nos lábios trêmulos e um sopro raivoso escapuliu, revoltada pelo que leu no diário.
— O Franco a prende aqui. É uma febre incurável.
— Como assim? — as duas questionaram em uníssono.
— Como posso explicar... — sondou as palavras na mente e os olhos pousaram no piso. — Eu estava na capela, com o Franco. Hoje — Anya e Delphine sabiam até onde a conversa chegaria. — Passei uma última noite ao seu lado.
— Gaya, não pode ser... — Anya balbuciou.
— No momento que cheguei para vê-lo, arriscaram matá-lo diante de mim. Foi tudo muito rápido e eu reagi. Reagi para defendê-lo e por isso o sangue. Fiquem tranquilas que não matei o assassino — suspiraram tranquilas. — Mas é provável que tentem novamente e em breve. Nesse dia, não estarei mais aqui — exibiu melhor as gotas de sangue. — Agora, me arrependo de intervir.
A cólera em seus olhos era evidente. Mas um traço de mentira escapou dos lábios. Até os céus sabiam que seu maior medo, resultava em perdê-lo para a Madre Mortem.
— Por qual motivo diz isso, Gaya? É o Franco, esqueceu? — Delphine se arrastou próximo da filha.
— Depois do susto, Franco pediu que eu voltasse para sua casa e recolhesse coisas que eu deveria levar comigo na viagem para a Escócia. Ele sabe que partirei. Então achei o diário e fui invasiva. Nunca me senti tão arrependida de confiar em alguém que sempre amei. — esbanjou um sorriso seco, triste, decepcionado. — Meu inconsciente gritou. De início senti o quanto me ama. Entretanto, chegou num estágio que nem ele consegue acreditar na minha inocência.
— Não entendemos, estávamos falando da Moniese... — Anya quis retomar a conversa, sem saber que Gaya estruturava.
— Franco não consegue se desvencilhar dela e também a vê como eu a vejo, na forma real. Sem incorporações. E então, como devem saber, ela está aqui porque ELE — enfatizou, — ainda mantém um laço com Moniese. Mesmo após a morte. Seu luto é persistente e a mantém nas lembranças, nas sombras. Assim como jamais a libertará.
— Anya — Delphine voltou a atenção para a esposa. — Então não podemos forçá-lo a esquecer. É mais complicado do que pensei.
— É inaceitável e inacreditável sobre como Franco ousa pensar isso de você. Se tanto a ama — manteve a atenção da filha e nem imaginavam que ambos haviam se casado simbolicamente em segredo. — Então fugirá daqui e o deixará definhar sozinho.
— Sim, mãe. Desde o instante que tracei meus olhos naquelas palavras do diário. Mas aconteceram coisas que me alertaram e eu não quis acreditar. Por isso que o deixarei com quem ele realmente ama.
As duas assistiram sua filha se levantar do sofá e agachar até a mala para suspender e levar ao hall.
— E fugirá? — Anya olhou para a filha por cima do ombro. — Hoje?
— Pretendo. Me recuso viver mais um segundo aqui — arrastou as mãos no vestido, limpando no tecido. — E desejo muito que viajem comigo. Que fujam daqui. Ela planeja coisas horríveis contra nós e...
— Mas não podemos deixar a floricultura, a casa, precisamos proteger nosso lar, o cedro, o túmulo da sua avó... — Anya interrompeu a filha, quase implorando.
— Preciso de vocês — retornou para perto delas, agachou diante de Anya e apoiou os braços nas coxas dela. — Entendem agora o quanto? Franco não confia em mim, Moniese quer me matar... Apenas tenho vocês. São minhas mães. Me deixariam partir sozinha?
Um carinho surgiu nos cabelos da jovem bruxa que selou as pálpebras para se permitir ser amada pela família.
— Nunca, Sol.
No mesmo instante, Delphine avistou vultos de pessoas afora pela janela e que seguiram rumo ao centro. Uma algazarra no exterior atraiu a audição.
— Que barulho é esse? São os vizinhos conversando tão alto? — Anya questionou ao girar a cabeça em direção à janela e Gaya refletiu a mesma ação.
— Alguma coisa ocorreu lá fora — no exato instante, assistiram Hawthorne seguir até a porta para sanar a curiosidade. A maçaneta girou e seu rosto esticou para o exterior. — Delphine, o que houve?
— Está tudo tão laranja. O céu misturado entre laranja e cinza. Algo cheira a fumaça e as pessoas estão seguindo até o centro.
Gaya no átimo esqueceu que viajar era prioridade e logo notou um aperto na alma, uma pressão na cabeça como um chiado fino e um calor que nenhuma brisa secaria o suor. A mais jovem também abandonou Anya na sala e se espremeu com a mãe na porta. Quando compreendeu, a voz enfraqueceu.
— Um clarão mãe — foi difícil falar quando as palavras de entalaram na garganta. — É fogo. Algo está queimando.
Curiosas, as três seguiram os vizinhos, em meio aos cochichos do tumulto, até uma aglomeração de pessoas que tomaram conta das calçadas próximas ao centro. Nunca viram tanta gente num único canto em Rye. Pela quantidade de pessoas, se assemelhava a festividade de comemoração ao Gregori como padre ou mais.
— Consegue ver? — Anya se esticou entre várias cabeças mais altas e Gaya se esforçou em abrir caminho com o corpo até onde o fogo consumia.
— Há muitas pessoas — Delphine, com a voz comprimida, foi até empurrada e se agarrou na esposa, para não cair e ser pisoteada.
Estalos das labaredas chicotearam e cortaram a audição, o cheiro asfixiante da fumaça fez todos tossirem e nem ao menos os bombeiros chegaram para amenizar a situação. Assim que a jovem Demdike se apertou o bastante entre os corpos, até encontrar um buraco de claridade no meio do acúmulo, na intenção de enxergar a cena com nitidez, a sensação de tragédia tomou todo seu espírito. O corpo se desmanchou como cinzas.
O vazio correu na pele feito raízes secas que tomaram seus sentidos e a estagnaram até se dissolver em lodo. Suas mães a alcançaram e então, as três avistaram com certeza onde o fogo devorou.
— NÃO! NÃO! — a garganta de Anya secou com o grito e os joelhos se machucaram no chão assim que se jogou, rastejando ao esticar o braço para poupar o local que tanto amava. Sua pele tremeu pela lamentação e ela desejou perecer milhões de vezes. Até ser apanhada a tempo pela esposa. — NÃO! O QUE FIZERAM?! O QUE FIZERAM COM NOSSA FLORICULTURA?! — esbravejou sem enxergar ninguém.
— Malditos! — Gaya sequer chorou, porque suas lágrimas foram ofuscadas pelo ódio. Somente torcia matar a todos ali. Seria deleitoso ver o sangue de toda a Rye espirrar. — Vocês merecem sofrer! — apontou para os que estavam próximos e envolveu as mães num abraço de acolhimento, ao passo que assistia um dos maiores bens das bruxas se transformar em pó.
Tudo rapidamente se destruía. O fogo não deixava rastros. Vidros rachados estouraram devido à temperatura das labaredas, vasos moldados e até pintados derreteram, embalagens de presentes que haviam preparado com estima e folhas que antes eram belas, flutuaram queimadas no ar e uma delas caiu sobre as três bruxas unidas.
Gaya, sem perceber, permitiu uma pétala escura deitar na palma da mão. Era uma papoula-vermelha.
A pétala foi encarada por lágrimas, um olhar sanguíneo e lábios presos trêmulos. Algo nela faleceu naquele segundo e muitas coisas deixaram de ter importância.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top