Capítulo 22: Cartas Abertas
*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, PÂNICO E PERSEGUIÇÃO.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: True Faith - Lotte Kestner
*CAPÍTULO SEM REVISÃO MINUCIOSA.
Assim que alcançaram a residência Demdike, o estranho que perseguia os perdeu de vista e talvez perderia a vida ou memória pelo pisotear do povo. Não sabiam ao certo onde as bruxas moravam. Entretanto, a casa Gregori foi marcada.
— Foi tudo tão rápido que ele jurou ter ferido quem queria, mas lancei Franco no chão e levei o golpe superficial. Gaya quem fez o resto — se distraiu. — Obrigado, Sra. Delphine. Não preciso mais de ajuda. Agradeço — dispensou a Demdike.
As mães foram tomadas pelo pavor gritante que se alimentava da ansiedade. Prestativa, Delphine limpava a ferida do corvo com gaze, álcool e no fim aplicou um antisséptico e anestésico para selar com curativos limpos.
Enquanto isso, a bruxa mais nova amenizava a dor dos socos com bolsas de gelo.
— Ele mataria o Dante ou o Franco — sugou o ar através dos dentes presos quando o gelo queimou os ossos e articulações. — Tive que agir.
— Arriscou sua vida, Gaya — Delphine reclamou ríspida. — Ambos arriscaram — apontou ao rapaz com o queixo e as sobrancelhas se contorceram.
— Foi necessário. Seria fatal — a filha replicou. — Para todos nós.
— A menos consegui isso aqui — Dane apanhou com dificuldade algo do bolso traseiro da calça, ergueu no ar e atraiu a atenção das três. — Quando aquele desgraçado ficou desacordado, antes de fugirmos, aproveitei para fuçar um dos bolsos da calça. E só encontrei esse papel.
Evidenciou um bilhete limpo, bege, com um endereço e uma assinatura abreviada no final que continha o símbolo daquele exato broche.
— É a casa do Franco. O endereço indica a residência dos Gregori — Gaya tomou dele sem permissão. — E isso aqui? A. H.? Tem ideia sobre a quem pertence essa abreviação? — regressou à atenção ao corvo.
— Não. Mas é provável ser a cabeça da serpente, foi o que veio na mente — cochicharam entre si.
— Ei! Falem o que escondem — Delphine rompeu os cochichos. — Sopram um ao outro...
— Contem tudo — ríspida, Anya cravou os olhos incisivos nos dois. — Está tudo confuso. Exigiram que fugíssemos, Gaya de repente atacou um homem esquisito, Franco foi obrigado a se trancar em casa, surgiu um cartão, um nome... vamos! Desenrolem as línguas!
Apreensiva, Gaya tremeu o pé no chão, largou a bolsa de gelo na mesinha de centro, recostou no sofá e tensionou seus sentidos, os nervos, ao lembrar que Franco estava sozinho. Já Dane, se levantou com o cartão em mãos e checou escondido as movimentações na rua mediante a janela do hall. Também se atentou à casa de Franco.
Os dois confiaram quando o padre afirmou que trancaria tudo com chaves e cadeados. A incluir a porta do próprio quarto. Da casa das Demdike dava para escutar qualquer estrondo suspeito que ecoasse da residência do sacerdote.
— O que escondem? — Delphine pressionou e levou os primeiros-socorros até a pia da cozinha, além das gazes sujas. Até voltar. — Por que foi necessário Gaya? E por que pediram que Franco se trancasse em casa? Não faz sentido se ele ainda está exposto.
Encurralou a filha ao enlaçar os braços e Dane conversaria de onde se encontrava. Soou estranho estar no papel de segurança à distância para Franco. Mas fazia aquilo por pedido de Gaya.
Ou por vontade própria?
— Já estou bastante assustada, então, não me surpreenderia com algo mais aterrorizante — Hawthorne pesou em mais um questionamento.
— Se nos contarem, prometemos não confidenciar a ninguém. Aliás, não temos a quem contar. Só a vocês, então... — Anya se tranquilizou um pouco. Os nervos em todos serviam como defesa.
Se instaurou o princípio de um interrogatório.
O corvo e a bruxa se entreolharam distantes e consentiram em dupla que o momento da revelação precisava suceder naquele instante. Tudo piorava a cada passo desde o retorno dos dois.
— Vamos, Gaya — o Dawson soprou em meio aos olhares confusos das duas bruxas de pé. — Depois disso, precisamos determinar os próximos passos.
Se escorou na parede e acariciou o braço machucado ao observar as janelas da residência do padre. No bolso, uma faca de cozinha esperava ser utilizada para cortar qualquer intruso na casa ou suspeitos na alameda.
— Não temos o dia inteiro — Delphine pressionou mais uma vez e resolveu sentar-se ao lado da filha no sofá.
Enquanto Anya encostou a lombar na borda da mesa.
A atmosfera se tornou densa, gélida e sem aproximações. Uma noite de revelações.
— Mães, Dante Deangelo não é o real nome dele — as Demdike focaram no rapaz ao mesmo tempo que Gaya apontou com o queixo. — O nome dele é...
— Dane Dawson — tomou a palavra e completou num sorriso desajeitado.
Firme no tom de voz, Dane ajustou a postura, umedeceu a garganta e enxergou-as de maneira sombria à distância.
— Não é um nome tão desconhecido — Delphine soprou mediante um olhar afiado.
— Ele tinha cara de ser um Daniel — Anya de fato acreditava nisso. — Há algo a mais que nos escondem?
— Há mais coisas. Coisas horríveis aconteceram em Londres, o que me reaproximou do Dane. Estudamos juntos no colegial e já adultos...
— Sou um investigador particular, Sras. Demdike — tomou a palavra sem se importar com a explicação da amiga.
— Investigador particular? — Delphine ressaltou o tom surpreso.
— E jornalista — completou e ergueu o indicador ao ar. — Só para... — deu de ombros — ... acrescentar no meu currículo.
— Decerto estou bem intrigada. E ainda mais com seu sobrenome — Anya coçou o queixo.
— O sobrenome dele... — Delphine inspecionou melhor, até retomar. — Você tem uma marca na nuca como falam? Sua família é...
— Quer dizer que é um corvo? — a esposa saltou os olhos e ocultou os lábios com uma das mãos.
A fama de assassinos era gritante na memória das Demdike e por muitos nas redondezas.
— Não vejo mal algum sobre isso. Somos bruxas, mãe — Gaya se chateou.
— Não é isso. Só percebo o quanto é interessante.
Dane se posicionou de costas, evidenciou de longe a marca por trás da nuca ao inclinar a cabeça para frente e permitiu a visualização.
— Não sei se foi o destino que me uniu à Gaya, mas também não somos namorados — regressou à posição anterior e lançou um sorriso desajeitado.
Mais revelações escapavam como um choque, porém desconfiavam.
— Eu sabia. Falei para você — Delphine comemorou ao estalar os dedos e apontar para a esposa. — Intuição materna nunca erra.
— E por que estão juntos? — Anya se intrigou e desdenhou. — Envolve contrato ou algo assim?
Precisavam alcançar um assunto delicado e se tratava de Gaya, a responsável por contar. Embora almejasse manter em silêncio.
— Mães — respirou tão fundo que um chiado em seu peito foi audível. — Como sabem, tudo estava bem em Londres. A Royal era perfeita para mim, a casa que eu residia... puderam ver como o ambiente era acolhedor. E então comecei a trabalhar num clube de jazz como cantora para preencher no currículo, sustentar os custos na capital e queria muito que as duas e a vovó testemunhassem a dimensão da minha felicidade — os olhos brilharam saudosos pela experiência até se murchar. — Porém, algo aconteceu e evitei contar para não preocupar.
Todos se conservaram em silêncio na intenção de priorizar o foco na voz. Entretanto, Dane checou a cortina do quarto escuro de Franco, avistou se mover e distante, o ruivo enxergou a janela de Gaya apagada. A lua radiou o rosto do rapaz que obedeceu sem contestação.
— Foi tudo muito rápido e recordo de cada detalhe feito um martírio — rangeu os dentes para comprimir toda agonia. — Nesse tal clube, por culpa do péssimo pagamento fui guiada a ganhar um dinheiro extra, mas eu não sabia onde me metia — alternou o olhar nas mães e Anya coçou a cabeça em apreensão. — Eu dividia o palco com outra cantora que por coincidência também aceitou trabalhar por uma grana extra. Coisas estranhas aconteceram, tanto que liguei para vocês em busca de informações sobre lírio-dos-vales, ouvi conversas suspeitas que me indicavam algo pior, acerca de crimes perversos. Até que... — sua voz se enroscou nas palavras. — Encontraram um corpo no escritório do administrador do clube. Se tratava da mesma cantora. Ela testemunhou coisas absurdas e se infiltrou entre os próprios assassinos para repassar todas as informações ao cliente de Dane — apontou a ele com o queixo.
— E se suspeitam, Gaya se tornou uma testemunha preciosa. Assim nos reencontramos. Por um infortúnio. Além de haver coincidência minha em abraçar esse caso — existia pesar nas falas do corvo.
— Gaya... — as duas murmuraram em uníssono.
Ela sequer concedeu abertura para a compaixão. Somente necessitava contar tudo às duas únicas mulheres que confiava.
— Como devem imaginar, os assassinos estão na igreja, protegidos. São padres — o Dawson prosseguiu à medida que Gaya se acalentava por relembrar de Ivone. Se tornou tão apreensiva que seu corpo tremia e as escleras ardiam para chorar. — Passamos esse tempo inteiro recolhendo informações. Desde documentos até imagens. Além de testemunhas. Sob ameaças e tentativas de assassinato.
— Antes, achei que fosse o bastante. Mas agora, saber disso, a única reação que resta é o terror — Delphine custou sentir intensas preocupações pairando acima da cabeça e Anya analisava tudo com extrema frieza. Talvez uma racionalidade.
— Se acompanham qualquer telejornal ou receberam os impressos, devem ter conhecimento acerca dos assassinatos de alguns padres pertencentes às famílias endinheiradas, herdeiros. Os assassinatos foram desarquivados depois de um tempo e...
O casal começou a associar tudo. Anya se afastou da mesa e deu passos próximos à filha e à esposa, mas seu rosto direcionou ao Dawson.
— Soubemos das mortes misteriosas, mas não imaginávamos que passaram por isso. Apesar de desconfiarmos dos sobrenomes dos padres. Tudo parecia tão estranho e em simultâneo, se alinhava com algo.
— Se recuperar na memória, Chattoxx e Nowell não são estranhos — Delphine replicou e acolheu a filha no ombro.
Os olhos de Anya correram em cada canto da casa, à procura de elucidação.
— Foram as famílias que as bruxas da nossa linhagem amaldiçoaram — o silêncio entre esposas inundou o ambiente assim que Gaya ergueu a cabeça. — Tudo nos envolve, mães.
Delphine se inclinou para frente e apoiou a cabeça entre as mãos, onde os cotovelos se apoiaram nas coxas.
Anya passeou pela casa, em círculos e girou os calcanhares num intervalo de tempo. Pensava em como contornar tudo. Mas o choque tomou conta de ambas quando a Hawthorne, de voz chorosa, levantou a face e encarou cada um.
— Se a linhagem Chattoxx e Nowell já pereceram, o último... — Delphine negou insistente com a cabeça. — Diga ser mentira, filha. Não, não, não...
Chorou como se perdesse um filho de alma e foi acolhida pela esposa que sentou-se ao lado. Anya a tomou nos braços, se mostrou forte naquela circunstância.
— Eu também não queria, meu amor — beijou os cabelos da esposa. — Digam se ele tem conhecimento. Se já espera a morte dessa forma. Franco acha que falecerá naturalmente. Digam.
As duas se acolheram e Gaya apenas acariciou as costas de Hawthorne.
— Franco não sabe e nada disso se passa na cabeça dele — a respiração densa compartilhava desesperança.
O tipo de desesperança que rasga a pele até transpassar a carne num sentimento de dor eterna. Onde essa dor nunca sana.
— Não podem fazer isso com ele — ainda acolhendo a esposa, Anya fitou os olhos vermelhos, intimidadores na filha. — Por isso que estão aqui? Para matá-los? Fugimos da festa porque matariam o Franco diante de nós?!
— Não só isso, Sras. Demdike — Dane acentuou a voz distante. — A culpa da morte de Franco cairá sobre vocês. Propagarão que a maldição das bruxas de Pendle foi a responsável pelos assassinatos. Matam em nome de vocês, querem manchar e enterrar todo legado das Demdike.
— Não tem como nos acusar sem provas! — Delphine esganiçou tão revoltada, que gotículas de saliva saltaram.
— Todos os dias canoniza um santo diferente na igreja. As pessoas acreditam nos supostos milagres sem evidências científicas, apenas propagam sobre graças alcançadas. Então, acham mesmo que para a sociedade que vivemos, acusar padres de assassinato ou qualquer crime é aceitável? Encaram tal qual um desrespeito. Ao contrário de uma família de bruxas negras ceifadas em praça pública feito um espetáculo — Dane se juntou na sala.
A atmosfera gelou de uma forma que nem a lareira da sala serviria para esquentar o ambiente.
— Mães, a caça não terminou. Se for para exterminar, não sobrará uma bruxa para contar nossos tempos de resistência. Naquele instante, em público, o matariam diante de nós. E sabendo quem sou... — sua voz trêmula sequer passou despercebida. — Não foi o suficiente viver no anonimato.
— Só pode ser um tormento. Mais uma vez em nossas vidas — Anya se lamentou.
— Assim como pretendem cumprir e manchar a minha família, Sras. Demdike. Aliás, já fazem — todos os olhos se voltaram nele. — Tempos atrás, os Dawson trabalhavam para a igreja. Fazíamos esse mesmo trabalho imundo. Meus pais assassinaram membros clericais por ordem deles. Digo, toda a minha família serviu à basílica para manter o inútil patamar dos sonhos. Dinheiro sujo servia somente como mais grana — deu de ombros, cedendo a tudo o que pensava. — No fim, nos traíram, roubaram coisas que zelávamos e nos forçaram a fugir de Yorkshire. Penso que meus pais ainda não foram presos, nem torturados por algum tratado ou não sei. Os mesmos que um dia se aliaram, se tornaram alvos. E quem se opor ou confidenciar, também morre.
Delphine enxugou as lágrimas com o dorso das mãos no segundo que a esposa ergueu até o telefone, tal qual uma ameaça.
— Então o Franco precisa se defender — Anya apanhou o aparelho e prestes a discar, Gaya se levantou e a interrompeu. — Precisam avisar sobre tudo isso a ele! — entregou relutante o telefone à filha que a intimidou e pôs de volta no apoio.
— Mãe, eu sei... eu sei..., mas não adiantaria. Franco será perseguido até se pretender fugir conosco — apontou para fora.
— Não acho justo esconderem. Precisam falar — insistia em negar com a cabeça. — Hoje mesmo.
Até bateu o pé para convencer de agir da maneira que considerava ser correta.
— Franco não irá porque deixará de confiar em nós.
— Em você, Gaya — Anya cerrou os dentes, incrédula com a decisão de Sol.
Delphine se pôs entre as duas logo que se apartou do sofá. Entrariam em discussão mais uma vez.
— Nenhum segredo sairá daqui. Nenhuma das conversas, mãe. Prometemos.
— Anya, não tem que ser assim — Delphine implorou à medida que segurava os ombros da mulher.
— Precisa ser! Estou farta de tantas mortes! — se distanciou, caminhou de volta à mesa e apoiou as mãos, de modo a espairecer a cabeça quando selou as pálpebras e os deixou no centro do cômodo. Precisava apagar um pouco o luto que rondava a cidade por tantos períodos. — Visto que contam a verdade, acho melhor deixar evidente o que possui com o Franco. Ou as idas à casa dele são apenas para "apoiá-lo emocionalmente" por algo que ele nem sabe?
Um vespeiro foi mexido. Assuntos delicados eram trazidos sem se importar de ferir qualquer sentimento familiar. Cada emoção borbulhava nas bruxas e as mães desejavam certificar a relação pela boca da filha.
— Anya... — Delphine e Dane se entreolharam temerosos. — Amor, não aborde isso agora.
— Querem que eu fale e falarei — Dane apoiou o indicador e polegar na ponte nasal, respirou fundo, preparado para uma provável contenda. Delphine apoiou o punho abaixo do queixo e desviou o olhar, tensa. Ansiava perder todos os sentidos para nunca mais encarar a situação. — Franco e eu temos uma relação proibida. Sim. Nos encontramos amorosa e sigilosamente. Mas vejo não ser segredo a ninguém.
Nada se tratava de uma total novidade. Desde os boatos mais silenciosos, as coincidências acerca de um Gregori e uma Demdike cruzarem caminhos, tudo servia conforme um banquete para fofoqueiros.
— Você sabia disso, Dane? — com o queixo, apontou ao rapaz, intimidando.
— Eu desconfiava e sabia, Sra. Delphine — abaixou a cabeça, extremamente envergonhado por admitir. — Recebi ordens para que não ficassem juntos.
Gaya cravou o olhar odioso sobre o corvo. Incrédula com a revelação feita pelo amigo que tanto confiou.
— O quê?! DE QUEM?! — avançou e agarrou os ombros de Dane que reprimiu os lábios num aperto para esconder a tremedeira. — Do seu cliente?!
— Sim, mas entendi que controlar você é injusto consigo. Sou seu amigo, Gaya. Não um guarda-costas, como já me declarou.
Ela se afastou com as mãos entre os cabelos, os dedos massagearam o couro cabeludo, arrastaram pelas têmporas e respirou pesado até voltar ao sofá.
— Precisa temer, Gaya. Ainda mais se... — Delphine hesitou em falar. — Se... — reprimiu o olhar tímido. — Se em algum dia surgir algo inesperado.
— O que insinuam? — a feição confusa fitou cada um com aspereza. — Digam.
— Uma gestação, é óbvio! — Anya tomou coragem para dizer o que temiam. — Gaya, se a igreja voltou a nos perseguir, se surgir um fruto dessa relação proibida, tudo se tornará caótico.
— Estão corretas, Gaya — Dane tomou a palavra. — Os bens passariam à criança. Franco enquanto era seminarista assinou um documento sem nem saber que todos os bens pertenceriam à igreja. Talvez tenha sido coagido a assinar. Se tomar conhecimento por mais pessoas sobre a suposta gravidez, lidar com o escândalo são duas balas a menos depois que ceifarem a vida dele. Por isso que, por um lado, entendo o meu cliente pressionar a afastá-los. Mas lembre-se que sou seu amigo e não conseguiria manipular seus caminhos.
— Não teremos filhos. Não desejo que uma criança nasça nesse inferno que passamos.
Quis apanhar a carta do decote para se convencer que desejava estar errada. Se casaria com o Gregori de olhos fechados.
— Então evite ao máximo que Franco se aproxime de você mais uma vez, filha. Ou recuse procurá-lo. É doloroso porque o ama, mas precisa zelar por ele e ainda mais por você — Anya se aproximou da filha e apoiou as mãos trêmulas da jovem nas suas. Era notável que Gaya segurava as lágrimas entre os lábios apertados e enrugados em razão da tristeza. — Se não cogita revelar ao Franco sobre o que conversamos aqui, determine o fim sem necessitar falar.
A frequência na floricultura permaneceu constante, mesmo após o ocorrido no centro de Rye. Contudo, feito uma névoa persistente nublando a luz do sol, a Demdike notou o sacerdote sumir e deixar de frequentar todos os ambientes que cruzavam. Doeu tanto ao ponto de sentir sua pele secar a cada segundo que perdia o calor daquele corpo por inteiro. Ele representava o sol na sua solidão.
Bem no inconsciente bastante consciente, Gaya ansiava que a procurasse feito um bobo rendido e anestesiado pelo amor. Se rendesse aos seus pés como um devoto imortal. Entretanto, seria melhor manter a distância que implorou.
O efeito que Franco Gregori imperou nela, existia tal qual uma força que puxava até o amaldiçoado e comprimia num misto caótico. Até cruciante.
E com a conversa da noite anterior, a bruxa se fundiu nas emoções bagunçadas, o que instigou uma angústia profunda ao invés de esclarecer ao rapaz o que se passava. Gaya temia o que as mães alertaram, sobre os riscos de manterem a relação proibida. Por mais que seu coração palpitasse de dor por culpa da ausência do servo de Deus.
Era um pouco tarde, próximo das oito horas da noite, ela fechava a floricultura no intuito de voltar para casa após esperar tanto que o homem corresse atrás. Não se importava se um assassino encomendado cessasse sua vida num piscar de olhos. O queria rastejando e sucumbindo pelo amor.
Mais cedo, enquanto enchia cestas de sementes, uma das clientes mencionou que o padre não aparentava estar tão bem e sem tantas conversas. Imerso num silêncio que cessava pelas celebrações eucarísticas. A missa durava tão rápido, sem abrir margens para atender as beatas. Sua conduta era grosseira, altamente defensiva. Julgaram estar adoecendo. Talvez da alma ou físico.
Havia um olhar vazio no padre sem Sol. Antes reluzia o reflexo da amada e naquele instante, o abismo o engoliu. Incapaz de cuspi-lo para trazê-lo de volta aos sentidos.
Franco adoecia de amor.
Por não a ver, visto que cedeu às súplicas de separação. Seu trajeto seguia da casa à igreja, às vezes na feira para comprar mantimentos junto ao jardineiro que lhe acompanhava, já que o idoso morava numa rua atrás da Mermaid.
Por culpa do aviso, temia sair sozinho. Nem sequer arriscava observá-la pela janela.
Resolveu se fechar e conversar com o Pai. O que servia como seu ouvinte nas piores situações de sua mente.
Cópia das chaves postas sobre a mobília da sala após trancar a porta, alertaram que Gaya chegou exausta de um longo dia atrás do balcão da floricultura. Precisava tomar um banho, estava fraca de tanto trabalhar. Até preferia a antiga emoção do clube de jazz. Cada movimentação e barulho daquele lugar corrompido.
Porém, demoraria para apreciar uma noitada semelhante à que aproveitava em Londres. Apesar de amar plantas e zelar pelas folhas, ser cantora carregava um espaço privilegiado no coração.
Fora de seus sentidos por culpa da escuridão da casa, assim que acendeu o abajur da sala com o corpo exausto, prestes a ceder em qualquer lugar, Gaya enxergou duas coisas. Um bilhete pregado na porta da geladeira e Dane desfrutando de um sono pesado no sofá:
Querida, saímos para jantar, provavelmente dormiremos fora para clarear nossa mente depois de tudo. Levamos algumas coisas, deixamos purê de batata na geladeira se quiser esquentar e feijão com repolho.
Com amor,
Anya e Delphine.
Foi melhor ambas se afastarem da cidade para retomar a tranquilidade. Apesar de temerem pela filha. Contudo, Gaya insistia saber se defender sozinha.
Com Dane, antes que o tocasse para despertar, os olhos atentos pousaram em folhas de papel escritas a lápis, fora os folhetos de jornais espalhados na mesa de centro. A data constava ser do mesmo dia.
Carinhosa, destacou um sorriso ao escutá-lo quase roncar e o tocou para acordar. Parecia ter dormido por muito tempo até perder a noção do horário.
— Dane, voltei — o tom carinhoso o fez desatar um sorriso doce. — Sono bom, hein?
Ele esfregou os olhos com as costas das mãos e se espreguiçou.
— Chegou agora? — bocejou ao vê-la se dirigir até a bancada da pia, apanhar um copo limpo, encher de água e beber.
— Sim — o líquido desceu gelado pela garganta. — Cheguei e estou exausta por hoje. Além de faminta. Mas fiquei curiosa em saber o que são esses papéis.
Apontou com o queixo e concedeu mais um gole barulhento.
— Bem — recolheu a folha de jornal e jogou para próximo dela na mesinha, logo que Gaya se aproximou com o copo na mão. — Fui visitar meu cliente no seminário e no jornal já estampa que a família de Ivone recebeu cartas anônimas preenchidas de ameaças.
— Não pode ser — largou o copo na mobília e apanhou a notícia como se o papel pesasse toneladas, ao ponto de tremular suas mãos. — Malditos.
Traçou o olhar de modo a ler cada linha, se consumindo de indignação. Cada sentimento, a incluir revolta, se apossou dela.
— A primeira coisa que fizeram foi repassar à imprensa, visto que a polícia se recusa agir rápido e um dos policiais dedicou uma entrevista na BBT, manchando a reputação dela. Aqueles cretinos distorceram a imagem de Ivone. Extraíram toda a credibilidade e a família entrou com um processo por danos morais acima do departamento.
— Considero pouco. Precisam sofrer mais. Ivone não merece ser tratada assim. Por isso que precisamos agir. Não fingiremos viver na tranquilidade. Está tudo muito nebuloso em todos os quesitos.
— Por mais que eu queira, temos que preservar a nós e nossas famílias. Hoje meus pais e irmãos foram para a Romênia. Deixarão uma casa para a gente e suas mães quando também formos. Por lá, contataremos a família de Ivone e falaremos diretamente com eles. Sou amigo de tantas pessoas no departamento, mas nem todas se comportam da mesma maneira. Precisam ser responsabilizados como merecem. E estou próximo de descobrir quem é a cabeça da serpente que tanto falam em arquivos, documentos... — bufou tão chateado que um mero ar esvaiu de seus lábios. — Temos que ser cautelosos. Esse ser está por trás de todas as coisas, Gaya. Logo que eu exibir todos os arquivos à minha família, com os padres já descobertos, terei um suspeito.
— Têm suas dúvidas?
— A pessoa é quase uma lenda. Se trabalham por ordem dele para protegê-lo, em troca, deve recompensar seus aliados com hierarquias valiosas. É alguém de cargo superior. Não um padre qualquer.
O rapaz ainda limpava os cantos dos olhos por se recuperar do sono.
— Então precisamos cortá-lo assim que descobrir. E me refiro a fazê-lo comer toda a terra que minha família pisou.
— Se houver uma oportunidade, deixarei que cumpra. Ninguém além de você é digno de se vingar da forma que merece. Não tenho pena das mortes dos primeiros amaldiçoados, sabe o que penso acerca do Franco. Mas você terá suas honrarias quando o líder for descoberto. Te prometo.
— Depois do que aconteceu, avaliei algumas coisas. Só espero que não brinque com minhas decisões atualizadas.
Os olhos escuros tão confusos nele, puxou um riso frouxo do Dawson que se envergonhou em confidenciar algo.
— Como assim, "decisões atualizadas"?
Ansiava por novidades do rapaz. Sobre qualquer coisa. Sua expressão alternou para uma criança ambiciosa por doce ao se aproximar sorrateira.
— Tanto silêncio me deixa agoniada, Dane. Fale.
— E se eu te disser que aceitei e compreendi que seu padre não faz parte disso? — gesticulou girando as mãos. — Foi difícil mas entendi. Ainda mais como ele é um produto de toda a desgraça. Considero que deva soltar fogos de artifício por isso, não é?
Soou conforme música aos ouvidos de Gaya. Torcia que Dane aceitasse a inocência de Franco acerca do que ocorria atualmente. A bruxa no exato instante alargou os lábios num sorriso aliviado, visto que antes temia vê-los não se aliarem num momento tão caótico.
— Pensei que essa percepção chegaria tarde demais. Degustei dos refrescos bem cedo — sequer recusou quando ele bateu a mão no espaço vazio do sofá para que a amiga se sentasse ao seu lado.
Um suspiro aliviado escapuliu da Demdike assim que relaxou as costas no estofado e esticou as pernas no chão.
— Mas não pense que eu o salvaria — ela revirou as escleras e estalou a língua no céu da boca, incomodada com a birra. — Reconheço meus defeitos, mas ele não merece minha ajuda. Aliás, se pudesse, acabaria comigo. O jeito que o Gregori me olha é de imenso ódio. E eu só sinto...
Dawson deitou a cabeça no encosto e mirou o teto, enxergando tudo o que viveu com sua família bastarda.
— Pena. Eu sei — o assistiu tão pensativo que custou a suspeitar sobre ele ter dormido de olhos abertos. — Já me falou um dia. Não queria que reagissem assim. Quem sabe mudam de percepção.
— Gaya, a pena é um sentimento pior que o ódio. Tente entender como para mim as coisas fluem diferentes. E perceba como não parte apenas de mim.
O corvo abandonou o descanso do corpo, esticou o tronco e principiou a recolher, além de organizar os papéis dispostos na mesa de centro. Depois de tudo, ele só pensava em se jogar na cama e acordar no dia seguinte. Até esquecer sobre quem era. Viver uma vida plena num local remoto onde se pode assistir as estrelas dançarem no céu escuro e a lua tocar seu rosto.
E Gaya, passaria a noite em claro, se revirando no colchão até selar as pálpebras. Mas sua consciência ou espírito insistiam em observar qualquer sinal do padre por intermédio da janela. Assisti-lo bem, embora ansiasse dividir o colchão com o corpo quente do Gregori e sentir seu cheiro inundando o quarto. Escutá-lo recitar qualquer coisa que a fizesse se sentir amada e experienciar o abraço que demorou anos para receber.
Contudo, se tratava do fim.
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