Capítulo 12: Regresso dos Inocentes

*ALERTA DE GATILHOS: PROCESSO DO LUTO.

*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Sirens - Fleurie e Undone - Ólafur Arnalds

Marcavam exatas sete horas da noite, à medida que a rua se iluminava com os postes esguios e os ponteiros determinaram a chegada do caminhão de mudanças que se espremeu no aperto e nos seixos.

Naquele horário, não existiam tantos curiosos, pois se ocupavam jantando.

Em sequência, atrás do caminhão, se aproximou a motocicleta que trazia Dane e Gaya de volta à cidade. O específico cheiro de arbustos, casas velhas e petricor, inundaram as narinas da jovem feita de memórias.

Ela se incomodou ao remover o capacete e mirar cada extensão da alameda. Não aparentou estar contente no tal lugar. Nada era relacionado à sua família. A cidade de fato não lhe fazia bem desde criança e todos sabiam os motivos.

As residências acesas lhe instigaram um temor e os pés ainda sentiram, por intermédio do sapato, a textura das mesmas pedras que faziam parte da infância. Tudo parecia feito outrora e nada mudou.

Sem tantas palavras, a moça permitiu que Dane guiasse os homens para dentro da residência.

Seus passos calmos demoraram a chegar na porta, e logo que Delphine os recebeu, após a campainha clamar uma vez e ocorrer a observação através do olho mágico, a mãe tomou a filha num abraço misturado com saudades, tristeza e alívio. Gaya, sensível devido à perda, comprimiu a mãe com fervor.

A base da família se rompeu.

— Sentimos sua falta, Sol. Precisávamos de você conosco — chorou copiosa e atenta na face plácida da filha.

— Estou aqui, mãe — se evidenciou mais calma que antes. — Por vocês.

Delphine, emocionada, selou os olhos caídos feito camomila por cima do ombro de Gaya e foi acalentada pelo abraço da filha.

— Onde está mamãe Anya? — questionou com a mãe em seus ombros.

As escleras buscaram atentas pela aparição de Anya e Dane guiava os trabalhadores com as coisas após cumprimentar a segunda mãe.

— Na cozinha — apontou com o queixo. — Deixe-me auxiliar o Dante a organizar os pertences e os rapazes levarem para o interior. Ele parece bem perdido e cansado — sorriu sem graça.

— É, precisamos de ajuda.

Gaya adentrou a residência com as mãos nos bolsos da calça jeans, o lar foi modificado em partes, mas manteve sua essência. Era casa de bruxas. Incomparável.

Anya, ao notar a agitação da mudança, encontrou os olhos de Gaya. Ela se desmanchou em prantos, consoante a uma tempestade quando avistou a querida filha que havia partido para Londres, regressar à sua estimada mãe.

— Um jovem passarinho retorna ao ninho — ambas se alinharam num abraço de consolo e os corpos se chocaram numa força tremenda. Precisavam de um conforto. — Sua avó te amava bastante querida — a voz abafada falou contra o ombro da filha que beijou o dela.

Gaya soluçava como na vez sabida do falecimento. Fora um misto de sensações no reencontro. Era daquela forma que a jovem desejava entregar um abraço na falecida anciã.

— Já chorei tanto... tanto... — faltava voz —, mas de uma coisa mamãe tinha razão: o choro precisa se tornar alegria. Pois ela não partiu com dores ou arrependida. Sua avó quis voltar para os braços da Mãe Terra e para o amor do seu avô, meu pai — secou as lágrimas da filha e findou com as suas.

— Mãe... sinto falta dela — manhosa, enxugou o rosto um pouco mais com as costas da mão.

— Sentimos, querida — retomou o abraço. — Sua avó era muito amada. Mas agora, percebo que ela está bem feliz.

No instante que Dane pagou os rapazes e os guiou, avistando-os adentrar o caminhão e seguirem em ré para fora da rua, foi finalmente recebido pelas mães de Gaya. Cada uma o abraçou forte, como se o conhecessem há tempos e ele nunca sentiu aquele abraço desde que partiu de casa de modo a regressar com traumas.

A última pessoa que o abraçou da maneira feito as Demdike, resultava na mãe, Hunter.

— Sinto tanto pelo ocorrido, senhoras — se acomodou no sofá após o chamarem para se juntar numa conversa. — Foi complicado repassar a notícia à Gaya. Imagino a imensidão da dor.

Ninguém se sentaria mais na poltrona que pertencia à Anika, então, o rapaz foi acompanhado no estofado por Anya, enquanto Delphine consultava a temperatura da chaleira no fogão.

— Vivenciamos um luto passageiro — o corvo concordava silente e sério. — Minha mãe odiaria nos ver assim, mas é isso o que ocorre quando se perde uma pessoa que amamos muito.

Ele entrou num repentino transe ao passo que ouvia a Demdike falar. Entendia bem o que aquilo significava. Não houve sequer um dia que evitasse chorar depois do assassinato de Miranda Betz. Havia buscado a justiça por ela, entretanto, pareceu que tudo não foi o suficiente.

Miranda persistia em suas sombras.

O Dawson vivia dolorido emocionalmente. Ao jantar, um vazio perfurava o peito logo que se sentava diante da mesa e mastigava como se ruminasse a morte. O banho era eterno e as lágrimas e choro se misturavam com a água a percorrer em seu corpo. Ao dormir, perdia-se o sono no intuito de não se machucar com os pesadelos. Há muito tempo não ficava dessa maneira no segundo que percebeu Gaya Demdike em sua frente.

A bruxa transferiu um pouco de vitalidade ao rapaz.

Contudo, Miranda convivia em suas lembranças. As boas memórias lhe faziam sobreviver.

— Dante, aceita chá Darjeeling¹? — Delphine perguntou da cozinha e mal perceberam que Gaya desceu as escadas e seguiu calma até o jardim, para próximo do cedro. — Maioria dedica as cinco da tarde para o chá. Nós, Demdike, tomamos em qualquer momento e ocasião.

— Aqui, chá é um ritual — Anya completou.

O líquido foi servido em quatro xícaras redondas de porcelana amarela, postas em uma bandeja de inox e levado a fim de colocar sobre a mesa de centro. Além das xícaras, pedrinhas de açúcar e um montinho de cravos foram adicionados ao lado num recipiente pequeno a quem desejasse.

— Aceito, Sra. Delphine — simpático, apanhou sua xícara com zelo, assoprou concentrado e bebeu, da semelhante forma que elas agiram. — Hum... O chá está fenomenal — de fato, estava bom.

— Ouviu isso, Anya? — se juntou aos dois e deu um gole. Estava no ponto ideal. — Espero que tenha escutado — provocou a esposa e empinou o nariz.

— Eu disse que o chá estava bem quente naquele dia. Não falei que era ruim — se tornou impaciente e fitou os olhos cerrados na amada. — Interpretou errado, querida — a companheira revirou as escleras e sorriu ao beber o chá.

— E onde está a Gaya? O chá esfriará — Delphine buscou com o olhar nervoso até atingir o quintal.

Gaya se concentrou no ambiente. Tal qual quando era criança. Há períodos que não via novamente o cedro da casa, onde carregava muitas histórias. Os olhos confusos de uma bruxa afastada da terra natal, reparou uma energia boa, calorosa e animadora da árvore preenchida de folhas vivas.

Similar a uma aura emocional.

Da última vez, durante a noite, se fez o rito antes de partir e se afastar um pouco da rotina em Rye. Naquele instante, se reconectava.

De algum jeito e lugar, a Demdike vivenciou em seu âmago a carência de abraçar a árvore feito outrora. E assim fez.

A textura era a mesma, a madeira nunca envelheceu e jamais envelheceria. Para o clima externo, o tronco transferia seu próprio calor à bruxa.

Resistia por elas.

Árvores são seres viventes, sentem, transmitem e morrem. Mas aquela, viveria uma eternidade. Existia para as próximas gerações de bruxas na família.

Do interior da Demdike, à medida que mantinha o abraço ao passo que os olhos pregados visualizavam estrelas na escuridão, surgiu a imensa e inexplicável necessidade de lastimar sem parar, com a alma. E de repente, entre as lágrimas profundas e sinceras, se notou a proximidade de alguém que simbolizava amor, resistência.

As pálpebras desuniram na intenção de enxergar com carinho a presença que inexistia em vida, mas por trás apenas havia mais flores e plantas.

Enquanto ela buscava por alguém presente na experiência única, os demais na sala observavam com atenção. Dane se viu confuso pela amiga, Delphine experienciou uma sensação boa ser emitida na casa e Anya, a filha que perdeu sua querida mãe, avistou com clareza uma luz transparente, estática, se esvair do cedro.

A xícara quase caiu da mão, assustou os dois em sua companhia e ela compreendeu o que ocorria.

A árvore transmitia um afago familiar à Gaya e algo lhe veio na memória.

No dia que Moniese Gregori se foi, após apontarem os dedos para uma bruxa adolescente inocente, Anika recolheu a neta nos braços de modo a lhe proteger de todas as maldades lançadas mediante a boca de quem testemunhou o perecimento da ruiva.

No mesmo dia, traumatizada, a idosa tomou as forças enquanto na cidade se propagou a injustiça contra a jovem Demdike.

29 de Março de 2009

Anika Demdike trancou a porta em duas voltas, de modo a impedir que perturbassem. Não sabia do que os vizinhos eram capazes de fazer.

Gaya correu até o sofá, os olhos chorosos e vermelhos olhavam para os cantos da casa, em busca de abrigo. Mas seu verdadeiro refúgio se encontrava numa idosa de cabelos brancos.

— Vovó, a senhora a-acredi-dita em mim? — soluçava acomodada no estofado, mesmo após ter custado a evitar que sua inimiga morresse diante dela.

A avó, em controle, deu passos até a pia, encheu um copo d'água para a jovem beber e levou apressada à neta, que recusava qualquer coisa.

— Meu sol, beba, por sua avó que te ama tanto — oferecia com bastante calma até ela aceitar.

A menina evidenciou-se em completo choque.

— A senhora acredita em mim? Eu não a matei, vovó. Não matei... — voltou a chorar e enfiou o rosto entre as palmas com os cotovelos apoiados no joelho depois de devolver o copo para a anciã.

— Acredito em você, querida — ladeou a neta, pôs o copo na mesinha e a recolheu em seu peito, enquanto a garota chorava sem forças. — Fazem isso bem antes de nascermos. Esperavam qualquer aparição sua com a Gregori para apontarem os dedos contra ti.

A acalmou um pouco, à medida que existia um tumulto externo.

— Tenho medo de me prenderem, vovó. Não fiz nada — suas madeixas foram acariciadas pelas mãos amorosas da matriarca.

— Não farão isso. Irei em seu lugar, mas não fariam tal ato porque és inocente — Anika respirou fundo e olhou para o teto, até mirar o cedro. — O que todos não sabem é que Moniese continua viva.

Gaya ergueu a cabeça, confusa.

— Pessoas como a Gregori, querida, não morrem nos costumes dessa cidade e dos demais que sempre estiveram ao lado dela. Você nunca será presa, mas ela... — balançou a cabeça em afirmação — ... ela está aprisionada aqui — referiu-se à Rye —, e nas próprias maldades.

Gaya sabia de quem recebia o abraço através do cedro.

A sensação era a mesma de tempos passados. Emocionante ao extremo e inexplicável aos mortais, tal qual testemunhar a verdadeira face de um anjo.

— Vovó — engoliu os soluços —, sei que está aqui. Conosco em nossa casa. Me perdoe por não ter me despedido. Por não estar presente quando precisava partir — a voz embargou chorosa ao máximo. — Preciso de você. De sua presença, de seu carinho em meus cachos crespos, do seu amor infinito. Sei que necessito seguir em frente, ser feliz para cultivar meus frutos, mas não quero entender a morte agora. Não estou preparada. A senhora me guiava, os passos certos surgiram com seu norte. Meu farol. Sou sua Sol, mas não brilho sozinha sem a ter comigo.

Um sopro quente, semelhante a um amor imersivo e imortal, encostou com leveza em sua orelha direita, que vibrou junto aos demais sentidos. Gaya compreendia que as súplicas à natureza significavam muito.

A datar do seu nascimento, borboletas deram as boas-vindas. Mas naquela ocasião, resultava no princípio da aceitação para a partida.

Minha querida Sol — os pelos dos braços se arrepiaram num choque e as lágrimas que antes eram pesadas, se transformaram em tempestade. — És a escolhida pela vida e morte. Não precisa de mim e nunca mais serei necessária. És mais poderosa do que acredita e se houver uma única oportunidade de lhe mostrar sua importância, estarei ao lado, como sempre estive desde o dia que nasceu.

Não se via ninguém. Apenas sentia e ouvia as memórias e a vitalidade de Anika Demdike que fora repassada ao belo cedro do jardim. Era uma certeza que bruxas se alinhavam às árvores. Poderiam queimá-las, enforcá-las, retirar os membros na finalidade de dividir com cães. Mas o corpo, a carne, não significava nada. No fim, a Mãe Terra e a Madre Mortem recolhiam o espírito num descanso que os católicos descreviam conforme o paraíso.

E disso, eles jamais desfrutariam.

¹Darjeeling: O chá Darjeeling é um chá-preto do noroeste da Índia. Ainda que também elabore alguns chás brancos e verdes, essa zona produtora é conhecida por seus aromáticos chás-pretos. Daí se origina o nome que ganhou o Darjeeling: "a Champagne do chá-preto".

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