2 - Anahi e o Olho do Boto

Como um poderoso imã, ele atraia todas as atenções sem esforço algum. Os homens, desconfiados, se perguntavam quem era aquele. As mulheres suspiravam e subiam na ponta dos pés para ver mais de perto aquele que roubou todas as cenas.

Ele vinha de branco, dos pés a cabeça, desde o sapato lustroso até o chapéu coco, passando pelo impecável terno branco. Vinha limpo, lindo, perfumado.

Ninguém sabia dizer de que lado ele viera

Parava em cada roda dos homens, causando certa desconfiança inicial, mas logo após uma breve conversa animada todos gargalhavam com ele, já desejando que aquele amigo não os deixasse. Mas ele ia passando e passando, e logo sentia-se em casa, não havia mais homem rancoroso, antes o tinham como um grande sujeito.

Cada vez que passava perto de uma mulher sorria com os dentes muito brancos, se inclinava de leve e levava a mão ao chapéu, cumprimentando sem tirá-lo da cabeça. As mulheres sentiam calores e ficavam amolecidas quando eram contempladas por aqueles olhos tão encantadores.

Anahi não escapou daquele feitiço. Quando o homem passou, ela sentiu o hálito adocicado e foi ferida pelo apaixonante olhar, deixando-se balançar pelo garboso galanteio naquela voz de veludo.

O encanto de Anahi e das demais não se dissipa, mas sofre um pequeno baque quando o galante tira uma jovem para dançar. A escolhida era linda, talvez mais do que Anahi. Os homens parecem ficar felizes ao ver que aquele sujeito tão camarada encontrou um par tão lindo. As mulheres ficam despontadas e enciumadas, quebrando-se um pouco do encanto enquanto lamentavam-se por não terem sido escolhidas pelo estranho.

Mas Anahi havia despertado o suficiente para sua força de vontade agir. Com um olhar determinado, leva o punho esquerdo aos lábios, desferindo nas fitas um rápido e enérgico beijo. As fitas d'O Senhor do Bonfim são atadas ao punho quando se murmura um desejo, e diz a lenda que elas se romperão após o desejo ter sido realizado.

Isso, é claro, para quem tem fé.

Anahi tinha.

Nervosa, ela tira o camafeu das vestes, apontando-o na direção do estranho e sopra sua superfície, como se estivesse tirando a poeira do objeto. Aquele era um camafeu diferente. A camada traseira era pedra lisa, tirada do leito de um rio. A camada dianteira era um olho de boto, o mais poderoso amuleto de amor.

Isso, é claro, para quem tem fé.

Anahi tinha.

Quando o insípido odor pode ser captado no ar, de imediato os músicos pararam de tocar. Todos pararam de falar, homens e mulheres. Todos se voltaram para Anahi. Todos tocados por um calor em seu coração, em diferentes níveis. Com o estranho não foi diferente.

Deixando seu par, foi gracioso na direção de Anahi. Com um gesto garboso, a tirou para dançar. Todos suspiraram, ninguém havia visto mais belo par.

Por um quarto de hora ou mais, dançaram.

— Vamos caminhar um pouco? – sugeriu o homem à Anahi, e ela seria capaz de jurar que jamais ouviu tão bela sugestão.

Uma explosão de vivas e brindes irrompeu pela festa quando casal saiu para caminhar ao longo do rio. Como por um encanto, todos partilhavam da felicidade do casal.

Eles caminharam por vinte minutos ou mais, no mais completo silêncio, sem afastarem-se da margem do rio.

— Anahi, você me ama? – perguntou ele de súbito, parando de andar.

— Amo. – ela disse, sem vacilar.

Era verdade. Sentimento ou encanto, ela o amava. O amava mais que tudo. Se ele pedisse sangue, ela daria. Se ele pedisse um dos seus membros, ela daria. Se ele pedisse sua vida, ela lamentaria por ter apenas uma para dar.

— Eu não acredito que você me ama. – disse ele, acariciando o rosto dela com as mãos – Como você pode me provar?

— Eu tenho uma coisa para lhe mostrar, uma coisa que você nunca viu. E que nunca achou que ia ver. Posso mostrar para você... – ela disse, em tom de lamento, encolhendo-se de angustia como se estivesse envergonhada por não ter muito para dar.

— Uma coisa que eu nunca vi? – Perguntou o estranho, afastando-se dela, com uma expressão de severa duvida no olhar – O que é esta coisa?

Anahi sentiu-se angustiada. Lamentava muito não conseguir fazer aquele homem feliz. Ela faria tudo por ele. Não ia perder aquela chance diante do amor de sua vida. Desesperada e desalentada, cruzou os braços bem apertados e se encolheu, tão nervosa que estava.

— Ai! – gritou ela, com energia.

O homem continuava olhando sem entender. A razão então pareceu voltar aos olhos de Anahi. Arfando de dor, sem perder contato visual com o homem, enfiou a mão por baixo da blusa e rangeu os dentes ao arrancar do corpo um alfinete, exibindo-o ao homem com os dedos sujos de sague.

Seu sangue.

— Me ensinaram que a dor quebra o encanto, então eu deixei o alfinete na roupa. Se eu não me mantivesse ereta, seria espetada. – e, atirando o alfinete no rio, continua fuzilando o homem com o olhar. – A dor quebra o encanto.

— Estou impressionado. – disse o homem, com um ar zombeteiro, colocando as mãos na cintura. – Você veio preparada. Eu vi seu amuleto.

— Também me deram esse camafeu – disse ela, erguendo a peça, e o homem vacilou ao vê-la. – Me disseram que o olho de boto era o amuleto de amor mais poderoso. Ele ia garantir se eu fosse escolhida se quisesse.

— Você quis. E foi. – disse o homem. E, com um olhar gentil, abriu os braços convidativos e destilava seu encanto – Esqueça quem lhe enviou agora. Agradeça as boas dicas depois. Venha agora.

— Eu não vou esquecer! – gritou Anahi, com fúria – Não vou esquecer. Ela nunca se esqueceu desde que você a encantou!

— Ninguém me esquece, menina boba – sorriu ele, ainda de braços abertos.

— Ela foi escorraçada pelos pais e pelos seus irmãos. – chorava ela, furiosa – Uma vergonha, uma desgraça. Obrigada a sair de casa, da vida que conhecia, para um mundo que não era seu, onde era estranha em lugar estranho.

— Anahi... – Sorriu ele, docemente.

— E na terra estranha ela sofreu mais! – gritou, cortando-o – Mãe solteira, largada, sozinha, índia suja! Burra porque não conhecia os costumes! Mendiga porque não sabia se manter! Bruxa porque tinha outros costumes!

— E o que eu tenho com isso? – perguntou ele, irônico, baixando os braços.

— Tudo. – chorava ela, com olhos firmes nele – Nada... – e continuou – Se você não tivesse entrado na vida dela teria sido diferente. Não sei se melhor, não sei se pior, mas diferente. Ela ia ser dona do próprio destino. Não ia ter que contar a verdade que ninguém acreditou. – e, depois de um suspiro, continuou - Ela teve o que você nunca quis ter, mas que deveria ter sido de ambos. Era isso que eu tenho para lhe mostrar. É seu, mas você nunca viu.

— O que eu tenho e nunca vi? – perguntou ele, impaciente.

Uma leve brisa corta a margem do rio, trazendo o ar fresco das águas. Os cabelos de Anahi, dançam formosamente ao serem tocados.

— O que você tem provavelmente aos montes e nunca viu? – pergunta Anahi, com os olhos cerrados e lavados em lágrimas. – Filhos. Minha mãe disse a verdade, mas ninguém acreditou. Você tem filhos, mas nunca havia visto nenhum.

E, abrindo os olhos lentamente, fuzila-o com seu olhar.

— Está vendo uma filha sua agora. – disse ela.

E fez a pergunta que tanto a machucava.

— Você é meu pai?

Um segundo ou menos, logo após as palavras dela, o homem joga seu chapéu no ar e, sem aviso, mergulha no rio, desparecendo na escuridão da noite.

Os tristes olhos de Anahi estavam confortados com a verdade.

Sua mãe não mentira.

Os suaves ventosserpenteiam pela mata, e as fitas atadas ao punho de Anahi rompem-se como quepor encanto, e bailam nos ventos noturnos da Amazônia.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top