1 - Cunhã Poranga

Era dia treze de junho, a Lua ia alta tingindo a floresta de prateado.

O céu estava enfeitado com mais estrelas do que se pode contar e as nuvens esconderam-se longe da vista de homens. A estrada de terra cortava a Amazônia abrindo caminho para os ventos, e o farfalhar das copas de arvores compunham a melodia que era regida pela adocicada intensidade do movimento do ar.

Os insetos iam bailando ao sabor do vento e emitindo cada qual seu som particular, único, precioso. Um quilômetro adiante, um olho nu poderia ver tanto o clarão da fogueira em uma clareira quanto a luz às janelas das casas da comunidade ribeirinha, incrustada na margem do rio, a trinta minutos de caminhada da cidade mais próxima.

Os rios serpenteavam tranquilos, explodindo de vida como tudo à sua volta. A noite era linda, assim como linda era a peregrina que vencia a estrada.

"Anahi é seu nome", dizia sua mãe quando nasceu, explicando: "porque é a mais bela das flores do céu". A mãe não mentira e no esplendor de sua beleza dos dezoito anos completados há dois dias, Anahi era criatura dotada de rara beleza, e tão grande quanto a beleza era a timidez da pacata jovem.

A pele cor de cobre e os cabelos negros e lisos revelavam claramente sua descendência indígena - mas aqueles pequenos olhos estreitos e profundos pouco revelavam sobre o que se passava em seu pequeno e conturbado coração.

Em um longo suspiro Anahi leva a mão ao peito, brevemente cerrando os olhos e oferecendo a alguma divindade uma prece muda. Uma lufada de vento faz com que seus cabelos bailem graciosamente, fazendo revoar também a rústica blusa que vestia, verde como a floresta, esvoaçante como uma bata. Da cintura para baixo, suas vestes confessavam que ela vinha de alguma parte da civilização, resumindo-se a jeans justos e tênis de caminhada.

Ainda com a mão direita no peito, ela ergue a mão esquerda onde duas fitas d'O Senhor do Bonfim, uma verde e uma amarela, dançam suavemente diante da brisa. Os olhos de Anahi enchem-se de lágrimas, enquanto suspira longamente, apertando ainda mais o peito, onde descansava o pingente que pendia de seu colar.

— Ai! – grita ela, baixa e agudamente, deixando o corpo ereto de um salto.

No movimento, ficando ereta, seus olhos refletem forte determinação. Emanando autoridade, puxa a corrente prateada que trazia no pescoço, encarando a medalha. Era um camafeu, uma pequena escultura sobreposta sobre outra superfície, medindo metade do dedo polegar de Anahi. Nada graciosa, era áspera, composta de um pedaço de pedra negra tendo sobre ela um medonho olho sem pálpebra ou íris.

Ainda com olhar determinado, ela oculta o amuleto dentro da blusa e caminha na direção da movimentação próxima da comunidade ribeirinha.

*****

A festa ia animada. Anahi ouviu dizer que duzentas pessoas vivam naquela comunidade. Parecia que todos estavam ali reunidos, além de visitantes que vinham festejar.

Um pouco distante da vila, na clareira, acenderam uma grande fogueira. Um pequeno grupo tocava alegremente, outro grupo bem maior dançava. Havia mesa posta com comida e bebida, e todos se fartavam e festejavam.

Quando Anahi chegou, muitos olhos se voltaram para ela, mas ela não se impressionou. A jovem foi criada em Manaus, com sua mãe, longe de qualquer parente próximo, e as pessoas próximas, bem ou mau intencionadas, sempre fizeram questão de lembra-la de sua chamativa beleza. "Cunhã Poranga", era como lhe chamavam. A mãe lhe ensinou que esse é o título da moça mais bonita da aldeia, e as pessoas da cidade lembravam apenas que aquele era o título de uma dançarina, a musa que comanda um desfile no festival de Parintins.

Ela não ligava para um elogio, nem para o outro. Não estava ali para ouvir elogios.

— Cunhã Poranga! – gritou alguém para ela.

Ela tentou ver quem gritava, mas só viu um grupo de homens gargalhando enquanto acalmavam os ânimos do bêbado que gritava.

Em suspiro, olhando a lua com os olhos marejados, Anahi parecia sentir medo. Não medo dos gritos dos bêbados, mas do que podia lhe acontecer naquela noite.

A festa seguia animada. A jovem agora tentava provar algo que lhe deram de beber, mas sempre olhando em volta apreensiva. Duas vezes mulheres lhe chamaram, mas ela não atendeu o chamado para conversar. Três vezes uma mulher foi até ela tentando iniciar uma conversa, mas ela não podia se distrair. Quantas vezes homens foram até ela ou lhe chamaram ela não saberia dizer.

— Já vai dar meia noite – disse uma mulher sorridente á outra, quando passavam próximas a Anahi.

Mais pessoas chegavam, a festa ficava cada vez mais animada.

E então ele chegou.

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