Parte 2
A princípio, não dou muita atenção. Penso em nem abrir o card. Não seria legal da minha parte saber dos segredos dos outros já que não tenho intenção nenhuma de aceitar o desafio.
Mas quem escreveu o segredo está disposto a revelá-lo, não está? Então não seria de todo mal. "Não custa nada ver como é," digo a mim mesma.
Abro o app e vejo uma tela que nunca vi antes. É a primeira vez que chego até aqui. Tem uma opção para abrir o card recebido. Hesito por um momento, mas clico em "Abrir".
— Mas que merda é essa?! — A mensagem na tela me surpreende.
Leio e releio o texto várias vezes. Fico incrédula e demoro algum tempo para entender o que está acontecendo.
No app, ao lado da palavra "Segredo", está escrito "Na última festa junina do colégio, vi Clarissa Alves beijar Bruno Torres enquanto Maria Bianco comprava algodão doce."
— Quem diabos escreveu isso? — Pergunto em voz alta, sozinha no quarto.
Só pode ter alguém brincando comigo. Releio o texto mais algumas vezes e fico em silêncio por um tempo. Minha mente volta a funcionar aos poucos e começo a pensar nas pessoas que estavam na festa. Passo por todos os alunos que conheço, mas não consigo chegar a um culpado. É inútil, todo mundo estava lá. Mas quem teria interesse em me difamar desse jeito?
— Mas é claro. — Um sorriso de desespero cruza meus lábios. — Isso é obra do criador desse jogo perturbado.
Ele quer vingança pelos cards zombeteiros que o enviei das últimas vezes e resolveu me mandar isso. Qual a chance de um card desses cair para mim? Até o desafio parece que foi feito sob medida. Me vem a imagem do professor Lineu na sala de informática rindo da minha cara.
E esse segredo foge totalmente do padrão. Normalmente é algo como "Beijei João na última festa junina." Mas do jeito que foi escrito, mesmo sem revelar dono, o segredo já está exposto.
— E a droga da regra número um? — digo em voz alta.
Não. Estou sendo infantil. Provavelmente foi algum aluno qualquer dessa porcaria de escola que escreveu isso e o tal do algoritmo direcionou para mim. Alguém que não está nem aí se vai me prejudicar ou não. Acho que esse seria o melhor dos mundos. Eu só precisaria descobrir quem foi e ter uma boa conversa com essa pessoa. É, isso faz mais sentido do que os nerds sádicos do clube de programação querendo acabar com minha vida.
De repente um nome cruza minha mente e um calafrio corre pela minha espinha.
Felipe.
É a cara dele fazer esse tipo de coisa, só por diversão. Mas isso prejudica o Bruno também, e não acho que ele faria isso com o próprio amigo. Ou faria?
Minha raiva diminui aos poucos e tento pensar racionalmente no que fazer. Posso recusar o card, e ele vai ser direcionado para outra pessoa. Acho que ninguém em sã consciência aceitaria esse desafio e o segredo nunca seria postado. Mas mesmo que ninguém aceite, cada pessoa que receber o card saberá do segredo. E isso vai acabar virando fofoca no colégio. Maria vai ficar sabendo.
E se eu não fizer nada? O card não é transferido. Ninguém fica sabendo e nada é postado. Mas alguém me falou uma vez que um card pode ser utilizado numa próxima rodada. Não tem nada sobre isso nas regras. Não sei se é verdade ou não, mas não posso contar com isso.
Tenho que falar com Maria. Explicar que isso tudo é um mal-entendido. Sim, isso é o melhor a fazer. Mas ela não está bem. Já está cheia de problemas com os pais. Pode ser que ela fique cega de ódio quando ler a mensagem. Ou pior, tenha um colapso nervoso.
Melhor não.
Tomo uma decisão que sei que vou me arrepender. "Maldito algoritmo," penso antes de sair de casa. Pego minha bicicleta e vou até a casa de Bruno.
Chegando lá, toco a campainha e ele atende. Fica surpreso em ver. Mal sabe o que está por vir.
— Oi, Clari. O que você...
— Olha isso. — Eu o interrompo e dou o celular em sua mão. Não tenho tempo para explicações.
Ele olha para a tela e abre um sorriso quando vê o app do jogo aberto.
— Você foi escolhida para jogar? Legal!
— Continua lendo — digo, impaciente.
Vejo sua expressão mudar da alegria ao desespero. Ele olha para mim de boca aberta, mas não diz nada.
— Eu não sei quem escreveu isso. — Me adianto. — Já pensei em um monte de gente, mas não tenho certeza de quem foi.
— Mas, e a regra...
— Esqueça as regras! Elas não valem de nada nesse jogo.
Ele não me questiona e olha novamente para o celular. Deve estar relendo o texto, como eu fiz.
— E o que a gente vai fazer? — Ele finalmente pergunta.
— Não sei, por isso vim aqui. — Minha voz fica insegura, de um jeito que eu não gosto. — O que você acha?
— Acho que devemos contar para Maria — ele diz sem hesitar. — Aconteceu só uma vez...
— Shhhhh... — Eu o interrompo e faço gesto de silêncio olhando para os lados. — Quer que todo mundo saiba? Não fala isso em voz alta.
Bruno faz que sim com a cabeça e volta falar baixinho.
— Só ia dizer que talvez ela nos perdoe.
Talvez ela TE perdoe. Mas ela nunca vai me perdoar. E se perdoar, nunca mais vai confiar em mim e vou perder minha melhor amiga.
Minha única amiga de verdade.
— Não — eu digo. — Não é uma boa ideia. Não com o que ela está passando em casa.
— O que tá rolando na casa dela? — Ele franze as sobrancelhas.
— Você não presta atenção na sua própria namorada? — Levo a mão na testa e balanço a cabeça. — Não percebeu como ela tem andado triste nas últimas semana?
Bruno encolhe os ombros, como sempre faz quando está sob pressão.
— Os pais dela estão se separando e você não se deu ao trabalho nem de perguntar. — Respiro fundo. — Que ótimo namorado você é.
Bruno parece ficar surpreso e triste com o que digo. Ficamos em silêncio por um tempo, até que ele pergunta:
— Por que não cumpre o desafio? Se descobrirmos quem foi, podemos...
— Por acaso você leu o desafio?! — Não consigo esconder a fúria em minha voz. — Eu não vou fazer isso!
Ele fica calado. Meu coração pula de raiva. Ou seria de arrependimento? Não importa, não vou conseguir nada aqui. Na verdade, não sei por que vim. Sabia que me arrependeria.
Garotos são ridículos.
E eu mais ainda, que traí minha melhor amiga com o idiota do namorado dela.
— Tchau. — Me despeço e viro em direção à rua.
— O que você vai fazer? — ele pergunta, da porta.
Eu encolho os ombros sem me virar.
Quando chego na minha bicicleta vejo que Bruno veio até mim. Me viro assustada e fico paralisada com seu olhar. É forte e verdadeiro e não consigo desviar.
— Desculpa se não tenho a resposta que você queria — ele diz. — Não sou tão esperto quanto você, mas não vou fugir dos meus problemas. Pode contar comigo para o que precisar. Se quiser, posso assumir a culpa.
Ele está tão perto que posso sentir sua respiração. Sinto meu rosto corar.
— Não. — Finalmente consigo desviar os olhos e viro o rosto para a rua. — Não é justo você assumir a culpa. O erro foi nosso.
O que há de errado comigo? Tudo que ele faz me irrita. Sua ingenuidade. Seu riso fácil. A simplicidade com que ele vê as coisas. Ele é só um garoto bobo. Mas as vezes me olha e vejo mais que isso. Seu olhar... meio garoto, meio homem. Foi esse mesmo olhar, num único instante naquele dia que me trouxe esse problemão.
— Não precisa se preocupar — digo subindo na bicicleta. — Eu vou resolver tudo.
Saio dali sem esperar sua resposta. O caminho até minha casa não ajuda a espairecer. Fico a noite acordada e choro até dormir.
No dia seguinte, invento que estou doente e não vou ao colégio. Desligo o celular e fico na cama até pegar no sono. Acordo antes do almoço para descobrir que tenho apenas alguns minutos para aceitar ou recusar o desafio.
Droga, não tenho escolha.
Pego o celular e aceito. Agora vamos à parte difícil. Gasto o resto do dia me preparando para o grande show.
No dia seguinte, evito falar ou olhar para qualquer um no colégio. Maria, principalmente. Quero acabar logo com isso então peço para ir ao banheiro no início da primeira aula. Corro até a sala da coordenadora e vejo que ela está lá. Que azar.
Esfrego os olhos bem forte e bato na porta incessantemente.
— Pode entrar. — Ouço a voz dela de dentro da sala.
— Senhora Martines, rápido! — Meus olhos estão vermelhos, e consigo forçar algumas lágrimas. Finjo estar ofegante. — Tem duas garotas brigando no banheiro feminino. Uma delas está bem machucada!
Ela se levanta rapidamente e sai da sala em direção ao banheiro. Vejo ela avisando alguém pelo rádio. Na pressa, deixa a porta aberta e não percebe que eu não a sigo. Entro na sala e tranco a porta. Vou até a mesa e olho para o microfone. Por sorte é um dos que vi na internet ontem e sei como usá-lo. Ligo a câmera do celular e começo a gravar. Respiro fundo e digo para mim mesma "Ninguém vai lembrar disso daqui um tempo."
Aperto o botão do microfone e começo a falar para toda a escola ouvir.
— Bom dia alunos do Colégio Santa Maria. Aqui quem fala é Clarice Alves, do terceiro ano. Alguns de vocês se lembram que no semestre passado meu ex-namorado, Bernardo, fez um belíssimo gesto de amor no pátio do colégio. — Faço uma pausa e imagino as risadas se espalhando pelos corredores. — Na época eu não soube como reagir, mas hoje vejo como aquilo foi lindo. Então resolvi retribuir.
Dona Martines já entendeu a brincadeira. Ela está batendo na porta e gritando para que eu a abra. Eu continuo.
— Bernardo, um dia eu te disse que por maiores que fossem as dificuldades, nós as superaríamos juntos. Você confiou em mim naquela época, mas fui eu quem não cumpri minha palavra. Desisti de nós na primeira tempestade que passamos.
Ouço mais gente chegando do lado de fora. Não posso parar agora.
— Você tentou abrir meus olhos, fez até uma canção pra mim. Mas eu virei as costas. Me desculpe. — Paro para respirar e tomar coragem para as palavras finais. — Desta vez não vou errar. E pra te provar, quero dizer para a escola toda que EU TE AMO!
Mais alguém chega do lado de fora e ouço o barulho do que parece ser um grande chaveiro.
O zelador. Não tenho muito tempo. Encerro a gravação e abro o app do jogo. Consigo enviar o vídeo antes de abrirem a porta.
O resto do dia passa como um borrão. Recebo uma bronca da coordenadora, da diretora e até do zelador. Meus pais são chamados. Sou suspensa por uma semana. Ao sair do colégio, ouço o alarme de incêndio, mas não dou atenção. Só consigo pensar em quando vou saber quem é o dono do card. E o que farei depois.
Uma coisa de cada vez.
Quando chego em casa, meus pais passam algumas horas conversando comigo. Não lembro de muita coisa, mas pelo que entendi, não poderei mais sair aos finais de semana até o fim da faculdade.
Finalmente sou liberada para ir para o quarto. Por sorte, não tomam meu celular. Quando vejo o número de mensagens que recebi, entendo a gravidade da situação. Não acho que vão esquecer isso tão cedo. Decido não ler as mensagens e fico olhando para o teto o resto do dia e boa parte da noite. A noite mais longa da minha vida.
Na manhã seguinte, fico olhando para a tela do celular esperado a notificação do app. Começo a duvidar se vou mesmo recebê-la, até que ela vem.
— Finalmente.
Abro o app e clico no botão "Revelar."
Perco o ar quando vejo o nome na tela: Maria Bianco.
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