Parte 1


Segunda-feira é o dia da semana que mais odeio. Não pelas razões de todo mundo, mas por causa desse maldito jogo. Chego no colégio e já sei o que vou encontrar. As pessoas em grupinhos em volta de seus celulares, rindo e comentando os últimos resultados. As risadas, os cochichos, os olhares e a atenção que eles dão a isso tudo. Isso sim, faz da segunda-feira meu pior dia.

— Ei Clari, corre aqui! — Bruno me chama, e já sei o que está por vir. — Você já viu os vídeos de hoje?

Assim como todo mundo no colégio, ele adora o jogo. Sem esperar minha resposta, se adianta e me mostra a tela do celular.

— Não faz essa cara, eu sei que você não gosta. Mas você precisa ver o que esse cara fez na aula de arte.

Eu me aproximo e olho para a tela do aparelho. No vídeo, um garoto vestido com uma roupa ridícula entra na sala de aula da professora Dalva. Ele carrega um cavalete e uma tela de pintura debaixo do braço. Antes de ver o que acontece em seguida, Bruno começa a rir tanto que sua mão treme a ponto de não conseguir mais acompanhar o vídeo.

— Ele está vestido tipo pintor francês, sacou? — Lágrimas escorrem de seus olhos. — Tem bigodinho e tudo. Passou a aula inteira assim.

Olho para a cara dele, incrédula. Conhecendo Bruno, imagino que já viu o vídeo umas dez vezes, mas ainda ri como um bobo quando me mostra.

Garotos.

— Que falta de respeito com a professora — digo de cara amarrada.

— É a professora Dalva... — Ele encolhe os ombros, ainda rindo. — Ela nem se ligou no aluno vestido de Picasso no meio da aula.

— Picasso era espanhol, gênio. — Bato de leve em sua testa. — Não sei o que leva uma pessoa a se submeter a isso.

— Bom, ele descobriu o segredo de alguém, não foi?

Giro os olhos pensando em quão ridícula é toda essa situação.

— Oi, amor. — Maria chega e cumprimenta Bruno com um beijo. — Bom dia, Clari.

— Oi, Ma — devolvo com um sorriso.

— Amor, você já viu esse vídeo? — Bruno mostra o celular para Maria.

O sinal do colégio toca antes que ela responda. Eu agradeço.

— Hora de ir. — Puxo Maria pelo braço para fugir logo dali. — Tchau, Bruno. Até o intervalo.

— Tchau! — ele responde de longe.

Aproveito o caminho para falar com Maria, ela não respondeu minhas mensagens no final de semana. Acho que teve problemas em casa de novo.

— Está tudo bem? — pergunto, mas sei que não está.

— Sim — ela responde de cabeça baixa.

— Maria? — Eu paro e a seguro pelos ombros.

Ela levanta o rosto e vejo que seus olhos estão marejados.

— São meus pais — ela diz. — De novo.

Eu a abraço.

Ela não me conta muito sobre seus pais. Já perguntei algumas vezes, mas ela não abre o jogo. Não quero forçar a barra, então parei de perguntar. Imagino que eles estejam se separando. De um tempo para cá, Maria tem andado cabisbaixa. Não ri mais como antes. Às vezes chora escondida.

— Obrigada, amiga — ela diz enquanto me abraça.

Quando olho para ela do novo, sorrio e mudo de assunto.

— Você fez a lição de matemática?

— Fiz sim — ela responde, enxugando os olhos. — Você pode copiar se quiser.

—Ahh, eu te amo! — digo em voz alta.

Ela sorri e seguimos nosso caminho até a sala.

Não tenho pretensão de aprender qualquer coisa hoje. Não porque não queira, mas porque as conversas cruzadas e as risadinhas não vão deixar. Esse se tornou o padrão da segunda-feira pós jogo. Nada de matemática, história ou literatura. As matérias de hoje serão segredos e desafios.

Não sei quem foi o criador do jogo. Ninguém sabe. Mas alguns meses atrás um aluno apareceu com esse app chamado Segredos & Desafios. Dias depois, ele viralizou.

Apenas alunos da nossa escola podem usá-lo. Eu tentei com um e-mail falso uma vez, mas meu acesso foi negado. "Só a galera do Santa Maria", foi a mensagem que recebi. O criador deve ter hackeado o banco de dados do colégio ou algo do tipo.

O jogo funciona assim: Toda terça-feira depois do almoço, uma nova rodada começa. A cada rodada, os alunos podem enviar seus segredos e desafios no app. Sempre um segredo para cada desafio, chamam isso de card. Um nome sem sentido, na minha opinião.

No dia seguinte, alguns alunos são selecionados para jogar. Mas ninguém fica sabendo quem. Também não é claro o critério de escolha ou quantos alunos jogam por vez. Se você é escolhido, recebe o card de outra pessoa, mas não sabe de quem. Então decide se aceita ou recusa.

Se recusar, o jogador pode ou não receber um novo card. Acho que depende da decisão dos outros. Mas se aceitar, tem que cumprir o desafio proposto até o fim da semana. Como prova, o desafio tem que ser gravado e enviado pelo app. Se estiver ok, é revelado para o jogador quem é o dono do card. E ele decide se posta ou esconde o segredo e seu dono.

Na segunda-feira, os vídeos são postados no app, juntamente com os segredos revelados. E aí começam as fofocas, comentários e risadas fúteis. Chamam isso de resultado da rodada. Eu chamo de circo.

Claramente tem algo errado comigo por ser a única a não ver graça em algo tão banal. Mas sei que essas coisas não duram muito, então tento não me preocupar. Só espero que a próxima novidade venha logo, e que não seja tão vulgar.

Na hora do intervalo, fico no pátio com Maria tentando fugir do resto da escola. Mas Bruno chega com Felipe e arruína meu plano.

— Vocês ficaram sabendo da...

— Pode parar Felipe, se eu quiser saber da vida dos outros eu abro a droga do app. — Interrompo ele, mas sei que não será suficiente.

— Alguém acordou nervosa, hoje? — Ele me lança seu sorriso falso.

Não entendo por que Bruno anda com ele, são tão diferentes.

— Por que não vai fofocar com outra pessoa? — pergunto em tom cansado. — É sério, qualquer um. Você sabe que eu sou a única que não joga esse jogo estúpido.

— Mas você não tentou se inscrever umas rodadas atrás? — Bruno pergunta.

Tenho vontade de pular no seu pescoço. Sei que sua pergunta é ingênua, mas não posso dizer o mesmo dos comentários que virão.

— Mas isso é novidade. — O sorriso de Felipe se alarga. — A senhora não-jogo-esse-jogo-estúpido na verdade é uma rejeitada enrustida.

Bruno ri, sem sequer entender a malícia do amigo. Felipe é o maior fofoqueiro do colégio. Sempre bisbilhotando a vida dos outros e espalhando para todo mundo. Mas com um toque especial para que as coisas soem mais interessantes. E eu não gosto nada disso. Sei que devo ficar quieta, mas não fico.

— O jogo é estúpido — digo com voz calma. — Mas eu fiquei curiosa e me inscrevi duas ou três vezes. Apenas para ver como é.

— Mas nada sério, né? — Maria vem em meu suporte. — Uma vez você mandou um card dizendo que seu pai assaltava a geladeira de madrugada, escondido da sua mãe, lembra? Ela estava fazendo uma daquelas dietas malucas e obrigou ele a fazer também. E qual foi mesmo o desafio?

— Acho que pedi para acabarem com a fome na África — respondo. — Ou será que foi a paz entre árabes e judeus?

Nós nos olhamos e rimos. Por um momento esqueço dos meninos. Mas não por muito tempo.

— Na-na-não. Isso é contra as regras, mocinha.

Só o tom da voz de Felipe já me irrita.

— Eu conheço as regras. — Regra nº 1: O segredo precisa ser sobre você. Regra nº 2: O segredo precisa ser intrigante. Regra nº 3: O desafio tem que estar à altura do segredo. — Mas não tenho nenhuma intenção real de jogar.

— Você é boa demais para o jogo, não é?

— Você sabe que não é isso, Felipe. — Balanço a cabeça, ainda mantendo a calma. — Eu só não entendo por que alguém revelaria seus segredos para um desconhecido num app que ninguém sabe quem criou. Além do mais, não há como saber se os segredos são reais. Você pode inventar qualquer coisa e mandar lá. E se o desafio for cumprido, aquilo vai ser postado e as pessoas vão acreditar. Mas ao invés de questionarem isso, os alunos preferem gravar esses vídeos ridículos para postar na internet.

Felipe parece se divertir com o que falo.

— Eu gosto dos vídeos, acho eles engraçados — Bruno diz, franzindo a sobrancelha. — E os cards, alguém me disse são escolhidos por um algoritmo.

— Não existe algoritmo, Bruno. O que existe é um psicopata por traz disso tudo. — E lá se vai minha calma. — Alguém que não tem o que fazer e resolveu usar sua mente maléfica para brincar com um monte de adolescentes sem cérebro. Ou um grupo de nerds do clube de programação com um senso de humor sádico, eu sei lá. Seja quem for, essa pessoa tem acesso a tudo o que nós mandamos na porcaria do app.

Um silêncio paira no ar. Mas só por tempo suficiente para que eu recupere o fôlego.

— Por falar nisso... — É claro que Felipe não pararia por aí. — Ouvi dizer que quem criou o jogo foi aquele aluno do segundo ano, Marcos. Foi ele quem apresentou o app pra todo mundo.

— Não acho que tenha sido ele — digo. — A pessoa tem que ter acesso aos e-mails de todos os alunos do colégio. Deve ter sido alguém de dentro.

— Pode ter sido o professor de informática, ele é bem estranho.

Ignoro o comentário de Bruno, apesar de já ter eu mesma considerado o professor Lineu como criador do jogo.

— Ou... — Felipe continua. — Alguém poderia roubar as listas de chamada e procurar os e-mails dos alunos nas redes sociais. Qualquer um poderia fazer isso.

Ele tem razão. Não tinha pensado nisso.

— Mas ainda teria que desenvolver o app — Maria diz com indiferença.

— Hoje em dia, por pouca coisa você contrata esse serviço na internet — Felipe diz.

— O que significa que qualquer pessoa pode ser o criador. — Tento encerrar o assunto, mas sem muita esperança.

— Nossa! Nunca tinha pensado nisso — diz Bruno com cara de espanto.

Mas é claro não pensou.

— É, meu amigo... — Felipe segura Bruno pelo ombro e aponta para os outros alunos no pátio. — O criador do jogo pode ser qualquer um aqui. Desconfie de todo mundo. Dos professores, dos alunos, das namoradas, das ex-namoradas e até de mim.

Bruno olha assustado para o amigo, que ri.

— Mas pensando bem, tem uma pessoa no colégio que tem um motivo muito forte para ter criado o jogo. — Felipe começa e sei que vem coisa por aí. — Lembro de um aluno que terminou com a namorada no semestre passado. Quer dizer, a namorada terminou com ele. Ele não conseguiu superar, fez até uma serenata no meio do pátio pra tentar voltar com ela. Mas ela não deu bola.

— Essa história de novo. — Levo a mão na testa.

— Quem sabe esse aluno não pensou que única maneira voltar com a garota seria descobrindo seus segredos e chantageando ela — Felipe continua, ajoelha no chão e gesticula como se tocasse um violão. — Então ele decidiu criar um app com este único propósito. Não é mesmo, Clarissa? Volta com o Bernardo, vai? Ele ainda te ama.

— Vai te catar, Felipe!

Os meninos riem. Maria também.

— Até você, Ma? — Olho para ela com cara de derrota.

— Clari, não leva isso tão a sério. — Ela coloca a mão em meu ombro e fala com o tom gentil de sempre. — O jogo não é nada demais. As garotas só usam os segredos para mandar indiretas para outras garotas. Ou flertar com algum garoto. Os garotos, não estão nem aí para os segredos, só querem cumprir os desafios. Competem entre si para ver quem faz o desafio mais engraçado.

Bruno e Felipe concordam com a cabeça.

— Tem razão — digo, mais calma.

Apesar de tudo, é bom vê-la sorrir. Maria me conhece como ninguém, sempre consegue dizer as palavras certas.

— Por que não se inscreve de verdade desta vez?

— O quê? — Fico surpresa com sua pergunta.

— Você sempre fala para não julgarmos um livro pela capa — ela fala. — Eu sei que o jogo parece uma coisa boba. Mas porque não tenta jogar uma vez? Para entender como os outros alunos se sentem. Quem sabe você não se surpreende?

Não sei o que dizer e ela continua.

— Você não tem nada a perder, pode inventar um segredo qualquer. Como disse, não precisa ser verdade. E se for escolhida para jogar, não é obrigada a fazer os desafios. Pode simplesmente recusá-los. Além do mais, você sabe que daqui um tempo ninguém mais vai lembrar disso. No pior dos casos, vai ter uma boa história pra contar.

Sinto os olhos dos meninos em mim, esperando o que eu vou dizer. Mas estou sem palavras.

O sinal do fim do intervalo me salva. Voltamos para a sala para o segundo round das fofocas. No caminho, ouço Bruno resmungar que ainda acha que é um algoritmo.

À noite, deitada em minha cama, recebo uma notificação no celular. Segredos & Desafios me avisa que a nova rodada ainda está aberta. Escrevo alguns cards absurdos só para passar o tempo. Um deles me faz rir, "Não existe algoritmo, é só um bando de nerds numa sala."

Antes de fechar o app, penso na conversa de hoje e nas palavras de Maria.

Depois de um tempo, abro um novo card e escrevo "Eu acionei o alarme de incêndio na última prova de matemática." Isso pode me render uma suspensão, mas não me preocupo muito. Sempre posso negar, afinal, quem garante que é verdade?

Na parte do desafio, escrevo "Acionar o alarme de incêndio na sexta-feira antes da aula de matemática." Dessa vez eu rio alto. Tenho que admitir que meu card é bem divertido. Muito melhor que o daquelas garotas fúteis.

Clico em enviar, desligo o celular e vou dormir. No dia seguinte depois do almoço, descubro que fui escolhida para jogar.

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