09 - Valentina
O caminho de volta para minha casa é silencioso, mas de uma forma agradável. Depois de ter de fingir que não fiquei abalada ao ver Ryan mergulhado na garganta de Suzie eu não tenho certeza se conseguiria falar muito sem perder a paciência. Ainda não consigo acreditar que ele seja tão estúpido a ponto de marcar um encontro com uma garota e depois beijar outra como se fosse a coisa mais normal do mundo! O que me faz sentir bem em toda essa situação é saber que depois de hoje Valentin dificilmente vai querer se envolver com Suzie de novo. Ele até pode dizer que não está chateado nem nada porque eles não assumiram nenhum compromisso, mas eu conheço meu amigo bem o bastante para saber que ele esperava um pouco mais de respeito vindo de Suzie.
Somente quando Valentin para meu carro que finalmente me encara. Seus olhos tem um brilho diferente do habitual, o que eu acho que seja consequência de ser traído em uma sorveteria... Se fosse eu em seu lugar, teria virado aquele copo com chocolate quente no cabelo escorrido e brilhante de Suzie.
— Então... — Ele tira o boné e passa uma mão pelo cabelo sem saber o que falar a seguir.
Tento deixar de lado a indignação que estou sentindo por Ryan ter sido idiota comigo e percebo que Valentin deve estar se sentindo mil vezes pior que eu. Foi a suposta namorada dele que o trocou por um cara lindo, cheio de músculos e nenhum cérebro. Pobre V., deve estar péssimo!
— Já sei qual filme vamos ver. — Saio rapidamente do carro, deixando claro que ele não precisa falar nada. Eu entendo sua vontade de ficar em silêncio nesse momento. — Você pode preparar alguma coisa para comermos enquanto eu coloco o filme.
Vou falando ao entrar em casa, sentindo Valentin bem atrás de mim. Escuto seus passos se distanciarem para a cozinha e sigo para a sala de televisão. Duas mantas estão jogadas sobre o sofá, exatamente como deixamos na noite anterior, e uma almofada está jogada no chão com algumas marcas de mordidas e manchas molhadas. Ao julgar pela aparência, Sininho foi quem a destruiu, o que significa que ela pode estar por perto.
— Droga! — Pulo no sofá no mesmo instante que a escuto grunhir em meu calcanhar. Enquanto pulo de um lado para o outro a cadela ronda o sofá latindo como se estivesse reclamando por não conseguir me atingir.
— Eu trouxe um sanduíche a mais porque você parece estar com fome... — V. para de falar ao me encontrar mostrando o dedo do meio para a pequena bolinha de pelos no chão e gargalha alto. — Eu acho que você poderia ter um pouco mais de classe.
— Vai se ferrar, Constantini! — Ergo a cabeça para lhe encarar e sinto Sininho passar o focinho em meu pé. No minuto seguinte ela consegue impulsionar as patas traseiras e escala o móvel. Valentin ri ainda mais, quase se dobrando ao meio enquanto equilibra dois copos e pratos nas mãos. Faz alguma coisa ao invés de ficar rindo. Ela vai me matar!
— Matar? Essa coisinha nem tem dentes. — Mesmo rindo, V. coloca a comida sobre a mesa de centro e vem ao meu socorro. — Eu acho que você fez alguma coisa muito perversa para Sininho não gostar de você.
— Ela é louca. Nunca fiz nada para esse cachorro. — Olho para Sininho com medo. Ela se inclina em minha direção, preparando-se para atacar, e eu aperto meus olhos com força já sentindo a dor de ter seus pequenos dentes cravados em minha perna. Não seria a primeira vez que ela me morderia; muito menos a última.
— Eu te conheço. — V. apanha Sininho antes que ela consiga se lançar em minha direção. Ele a aperta contra o peito e acaricia o vale entre suas orelhas. Imediatamente a pequena máquina mortífera se transforma em um bichinho doce. — Você deve ter feito alguma coisa maluca que a assustou. Não precisa se preocupar, ela não vai mais te machucar. Eu prometo que te protejo.
— Obrigada, mas você não está ao meu lado vinte e quatro horas por dia.
— Eu estava falando com Sininho. Você não precisa de proteção, Val. Você já é naturalmente assustadora. — Ele me lança um olhar travesso e se não estivesse com a cadela nos braços eu teria pulado em sua direção e o empurrado longe.
— Tira ela daqui, por favor.
Valentin ainda demora um bom tempo acariciando Sininho antes de colocá-la no corredor e fechar a porta atrás de si. Assim que me sinto protegida da fera apanho meu sanduíche de queijo, bacon e geleia de framboesa e me sento no sofá. Valentin senta praticamente colado em mim e sinto vontade de rir, mas me mantenho quieta. Ele fez a mesma coisa ontem e depois ainda me abraçou com um de seus braços. Foi a primeira vez, depois de anos, que ele se sentiu a vontade para ficar tão perto de mim. Durante um tempo eu acreditei que ele tivesse medo de mim ou algo do gênero por causa do quanto ele gostava de dizer que eu sou louca e imprevisível, porém ontem quando ele me puxou para perto de si por vontade própria eu finalmente percebi que ele devia estar passando por aquela fase em que os meninos acham que as meninas são nojentas e podem transmitir doenças. Todo menino passa por isso ao entrar na adolescência e acho que com o Valentin essa fase durou mais do que o normal.
— Você é a única pessoa além de mim que te coragem de comer isso. — Valentin comenta ao dar uma mordida em seu sanduíche. De novo sinto a vontade estranha de rir e me pergunto por qual motivo.
— Eu sou sua amiga, isso já prova o quanto sou corajosa. — Sinto os olhos de V. sobre mim e rapidamente dou uma mordida em minha comida na tentativa de ignorar a intensidade com que ele me estuda.
— Que filme você escolheu? — Ele tira o boné e aperta entre os dedos, desviando a atenção para a televisão.
Tento entender o que pode estar deixando-o tão desconfortável, mas toda vez que penso que possa ser por minha causa meu coração se aperta e preciso afirmar para mim que não seria possível. Valentin não é o tipo de cara que fica incomodado com a presença de uma garota.
— Advinha. — Faço cara de mistério e deixo meu olhar cair para nossos sanduíches. Se ele pegar a dica vai saber a resposta no mesmo instante, pois depois que vimos esse filme pela primeira vez decidimos inventar nossa própria receita de sanduíche para simbolizar nossa amizade. A combinação de queijo, bacon e geleia foi a menos esquisita das que conseguimos pensar; e também foi o único sanduíche que não me causou ânsia de vômito.
— Você é tão previsível. — Ele aponta para nossos pratos e ri. Sei que ele está me provocando porque costuma dizer que eu sou tudo menos previsível.
— Olha quem fala! Você decidiu preparar justamente o nosso sanduíche...
— Só fiz isso porque colocar bacon no forno micro-ondas é a única coisa que sei fazer sem botar fogo na cozinha.
Ao ouvir sua desculpa eu recordo da vez em que eu decidi preparar biscoitos de natal e forcei Valentin a me ajudar. Ele ficava repetindo que não sabia cozinhar e eu o ignorei até perceber que o avental que ele vestia estava pegando fogo porque ele estava encostado no fogão. Nós dois ficamos gritando por uns bons cinco minutos até que minha mãe apareceu e jogou o avental chamuscado dentro da pia. Por sorte ninguém se feriu, mas depois daquele dia decidimos nunca mais voltar a pôr os pés na cozinha.
— Você está se lembrando do incidente dos biscoitos. — Ele fala com tanta certeza que eu me pergunto se comentei em voz alta. Sem que eu consiga me segurar, uma risada me escapa e Valentin aperta os olhos com algo indecifrável brilhando em suas pupilas. Encolho meus ombros com receio de ter feito-o se recordar de algo que ele não queria, mas para meu alivio ele dá um sorriso fraco e balança a cabeça. — Você lembra que depois de tudo ainda tentou me forçar a comer os biscoitos?
Faço que sim e o sorriso dele se alarga.
— Aquilo estava horrível. Nem se parecia com biscoitos.
— Eu peguei a receita no livro da minha avó. — Tento me defender, mas a verdade é que eu não conseguia entender a letra rabiscada de minha avó e mais de metade da receita eu inventei.
— Na próxima vez a gente vai escolher uma das receitas do Stefano.
— Mas ele só faz pizza e macarrão. A gente não vai poder fazer biscoitos.
— E eu agradeço a Deus por isso.
Ele faz um sinal de prece e me lança um sorriso torto que me faz congelar. O modo como sua boca se curva para o lado esquerdo e faz com que seu maxilar fique em evidência me faz pensar no quão macios são seus lábios. Se eu passasse meus dedos por seu rosto poderia comprovar isso. Sinto meus dedos coçarem para lhe tocar e preciso apertar ambas as mãos debaixo das pernas para não fazer exatamente o que eu quero. Ele ia pensar que eu enlouqueci.
Valentin percebe a mudança em minha postura e rapidamente tira o sorriso do rosto. Sinto seu braço enrijecer em torno de meus ombros e percebo que ele está prestes a se afastar. Como não quero que ele faça isso inicio o filme e encosto minha cabeça em seu ombro, impedindo-o de se mover para longe.
Durante todo o filme fiquei deitada no peito de Valentin e ele não pareceu se importar. Em algum momento ele chegou até a passar os dedos por meus cabelos, mas parou assim que percebeu o que estava fazendo. Enquanto eu tentava prestar atenção no filme e fingir que não estava ciente não consegui deixar de perceber que cada vez que os dedos dele esbarravam em meu ombro ou puxavam um fio de cabelo meu rosto esquentava e eu sentia um riso preso em minha garganta. Do jeito que meu corpo respondeu eu poderia até acreditar que Valentin significa mais para mim do que eu imagino.
— Você acha que esse tipo de coisa pode acontecer? — Valentin interrompe meus pensamentos e eu preciso torcer para que minhas bochechas não fiquem vermelhas para que ele não perceba que eu estava me fazendo essa mesma pergunta. A diferença é que não estamos nos referindo a mesma coisa.
— O que?
— No filme... — Ele aponta com o queixo para a tela da televisão, onde sobem os créditos da filmagem. — Os dois eram melhores amigos e acabaram se apaixonando. Você acha que isso pode acontecer na vida real?
— Eu não sei. — Sinto minhas bochechas esquentarem e preciso me repreender mentalmente. Valentin vai perceber logo que eu estava pensando sobre isso se eu continuar corando feito boba. Analiso seu olhar severo e percebo que ele não quer minha resposta sincera então falo o que sei que ele quer escutar. — Acho que não. Você consegue se imaginar apaixonado por mim?
Seu rosto empalidece, quase como se ele tivesse levado um soco, e eu vejo a resposta sem que ele precise abrir a boca. É claro que ele não consegue nos imaginar sendo mais que amigos. Eu não sei se isso me deixa aliviada ou decepcionada.
— A ideia de nós dois juntos é tão estranha. — Ele diz sem emoção.
Parte de mim afirma que ele está certo e nunca haveria a possibilidade de nos apaixonarmos um pelo outro, mas pelo modo como meu coração bate eu me sinto decepcionada com suas palavras. Seus olhos cruzam com os meus enquanto ele espera por uma resposta, mas como não consigo encontrar nada para dizer acabo mudando de assunto.
— Tenho um encontro na segunda. — Observo atentamente sua reação, esperando que ele faça qualquer coisa, mas V. apenas respira fundo e olha para as próprias mãos.
— Com quem?
— Você não conhece. Ele é filho de um cliente do meu pai... — Dou de ombros e tento sentir a mesma felicidade que tive ao atender a ligação na sorveteria e descobrir que era Alexei. Depois de contar que estava fora com o pai, ele acabou me chamando para sair assim que retornar para a cidade. No momento eu fiquei tão contente por ele ter telefonado que nem ao menos hesitei antes de aceitar, mas agora contando tudo para Valentin eu me sinto culpada por ter aceito o convite.
— Era ele no telefone? — O modo como V. pergunta faz meu sangue gelar. Ele está chateado por eu não ter contado sobre Alexei antes. Eu sabia que não deveria ter escondido dele por tanto tempo, mas eu não achei que Alexei fosse me procurar depois daquele jantar.
— Era. — Minha voz sai em um sussurro. — Você está irritado comigo.
— Não. Não estou irritado... — Ele se levanta e passa uma mão pelo rosto. — Eu estou frustrado, decepcionado. Não pensei que você estivesse levando esse plano ridículo tão a sério.
— Do que você está falando?
— Val, é só mais uma festa idiota de colégio. Você não precisa ficar tão fissurada em encontrar um par. Qual é o problema de ir sozinha, afinal? E você nem estaria sozinha porque eu iria com você.
— Valentin, isso não tem nada a ver com a festa da Sally Hastings.
— Não? — Ele me encara por um tempo e retira uma folha de papel do bolso traseiro da calça. O fato de ele carregar minha lista consigo faz com que eu me sinta mais feliz do que eu deveria. — Vamos ver... Você já saiu com dois caras e pretende sair com o terceiro. Em menos de dez dias. E tudo isso porque está com medo de chegar sem par na casa de uma garota que nem é sua amiga.
Em momento nenhum ele eleva a voz ou utiliza um tom ríspido, mas mesmo ouvindo sua voz suave eu sinto como se tivesse acabado de levar um tapa. Do jeito que Valentin está me olhando eu sinto como se tivesse feito algo fora da lei.
— Não estou com medo de chegar sozinha! — Tento me defender, mas acabo soando como uma criança irritada. — Eu só quero encontrar alguém legal. Alguém que realmente goste de mim. Não quero errar mais uma vez, por isso criei a lista, para dessa vez encontrar a pessoa certa.
— Não existe pessoa certa! — Ele solta uma risada sem humor e volta a se sentar. — E essa lista é a receita para o fracasso. Você nunca vai encontrar ninguém bom o suficiente se seguir apenas o que está escrito nesse pedaço de papel. — Com isso Valentin ergue a folha em frente ao meu rosto e a rasga várias vezes.
— Por que você fez isso? — Sinto minha boca se abrir em surpresa, mas Valentin finge não se importar com meu choque.
— Porque você precisa esquecer isso aqui e começar a enxergar o que está na sua frente. Não é um cara fictício que vai te fazer feliz... — Ele respira fundo, antes de perder o controle. — Val, me promete que não vai sair em busca de alguém que só existe na sua cabeça? A ideia de fazer uma lista foi bem legal, mas você tem que entender que nem sempre as pessoas são o que você acha. Não é porque alguém é bonito, se veste bem ou não gosta de você só pela sua aparência que vai ser sua alma gêmea.
— Eu não acredito que você rasgou a lista! — Escolho ignorar o que Valentin diz porque se eu fizer isso vou perceber que ele tem razão e eu fui louca ao acreditar que uma lista ia me ajudar em alguma coisa.
— Eu... — Ele aperta os olhos e ao voltar a me encarar parece distante. — Desculpa, não pensei no que estava fazendo. Eu só quero te ver feliz e acho que se continuasse seguindo o que estava naquele papel ia acabar se machucando.
— Tudo bem.
— Acho melhor eu ir. A gente conversa mais tarde. — Com isso Valentin se levanta e praticamente corre para fora da minha casa sem nem me dar a chance de me despedir dele.
Eu observo seu carro seguir até o final da rua do condomínio e em seguida desaparecer em uma esquina sem saber se Valentin estava chateado comigo ou simplesmente irritado depois de tudo pelo que passou nesta tarde. Com certeza minha lista não é motivo o suficiente para deixá-lo fora de si. Talvez Suzie tenha a ver com sua reação e essa possibilidade me irrita. Eu não gostaria nem um pouco de saber que a única pessoa capaz de tirar Valentin do sério é uma garota metida feito a Suzie.
De qualquer maneira, agora que não tenho mais minha lista vou precisar encontrar outra forma de achar minha alma gêmea.
E desconfio que não posso mais contar a ajuda de V.
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Ah não, o que será que significa esse desentendimento dos dois? Se a Val continuar insistindo nessa lista, será que vai perder a amizade do Valentin?
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