06 - Valentin
Meu celular vibra no bolso do moletom e sei que é Valentina. Não preciso ser nenhum vidente para saber disso, pois posso vê-la caminhando à distância enquanto digita furiosamente em seu celular. De onde estou, escondido junto com Zander atrás de uma árvore, também posso ver Ansel sentado sobre seu cobertor. Não posso dizer exatamente o que aconteceu entre os dois, mas ao julgar pelo modo como as sobrancelhas de Val estão franzidas eu arrisco que ela se irritou com algo que ele disse. Para falar a verdade, ela até que demorou bastante para perder a paciência. Sempre que Ansel se senta no bar do restaurante eu fujo para longe antes que ele comece a falar sobre seus pandas quase extintos. Acho que eu poderia ter um pouco mais de simpatia pelo cara se ele não ficasse culpando a mídia por tudo de errado que acontece no mundo. Pelo menos ele não parece estar abatido por seja lá o que for que Valentina lhe disse antes de sair. Ele chegou a dar de ombros quando ela se virou e agora continua sentado comendo algo que se parece com raiz de plantas. Ele não é má pessoa, só vive no próprio mundo...
- Você nunca disse que ela era tão bonita. – Zander diz com a voz distante, seguindo Val com o olhar e eu me pergunto se o motivo de seus olhos estarem brilhando tem algo a ver com ela. Mas é óbvio que sim. Por mais que Valentina seja minha amiga, eu sei o quanto ela é bonita. Nunca fui cego quando o assunto é sua aparência, mas o que ela possui de beleza ela também possui em loucura.
- Ela vai voltar andando até a escola? – Meu amigo volta a falar, desta vez me encarando.
- Não é tão longe. – Percebo que dou a resposta errada quando Zander ergue as sobrancelhas e cruza os braços. – Ela vai suspeitar se eu aparecer agora e oferecer uma carona. Você precisa me levar para o restaurante antes que ela resolva passar por lá.
Por menos satisfeito que esteja, Zander tira as chaves de seu carro do bolso e me puxa para o automóvel. Quando passamos ao lado de Valentina eu me escondo no chão do carro e Zander gargalha alto, mas Val nem vira o rosto em nossa direção. Sei que ela está desconfiada desde essa manhã quando eu não lhe disse nada e depois, quando inventei que consegui trocar o turno de meu trabalho, só serviu para aumentar sua curiosidade, porque ela sabe que meu tio nunca iria permitir que eu ficasse metade da tarde sem aparecer pelo restaurante dele. Nem mesmo quando nós éramos crianças eu conseguia escapar durante a tarde; claro que eu não trabalhava naquela época, mas tio Stefano me colocava em seu escritório e eu precisava encontrar coisas para ocupar meu tempo. Ele gosta de me manter por perto, porque segundo ele eu posso perceber que estou perdendo meu tempo ao seu lado e decidir fugir para longe como meus pais fizeram quinze anos atrás. Meu tio é realmente louco se acredita que eu seria capaz de deixá-los depois que ele se tornou a única família que eu tenho e também minha figura paterna, porém eu prefiro não discutir desde que ele permita que eu tenha o final de semana livre para fazer o que eu quiser; o que inclui usar o seu carro quando ele não precisa e não ter hora para voltar para casa.
Quando o carro para no estacionamento de funcionários do restaurante eu rapidamente troco meu moletom e blusa pela camisa preta do uniforme e arrumo meu cabelo dentro do boné. Ao invés de me deixar como sempre faz, Zander desliga o motor do carro e me segue para dentro do restaurante. Mesmo estranhando seu comportamento, abro a porta dos fundos e levo Zander para os armários de funcionários junto comigo. Ele me observa guardar meus pertences e lança um sorriso largo e relaxado quando eu o encaro de volta. Não preciso ser nenhum gênio para saber que ele ainda está pensando em Valentina, então me apresso em tirar o sorrio besta de seu rosto.
- Você está parecendo alguém com sentimentos. – Eu o empurro contra um armário e deixo o quarto em direção ao salão do restaurante.
Ao chegarmos no salão Zander senta em um dos bancos do bar. Corro até ele tentando entender o motivo de ele ainda estar por aqui.
- Eu acho que preciso de uma cerveja. – Ele aponta para a geladeira atrás do balcão.
- De jeito nenhum. Você só tem dezenove, não posso te dar uma cerveja. Eu nem posso vender bebida alcóolica por ser menor de idade. O máximo que você vai conseguir aqui é uma coca cola.
- Eu aceito. Uma light. – Ele faz um sinal estranho com os dedos e brinca com os piercings em sua sobrancelha enquanto espera pelo refrigerante.
Coloco o copo diante dele e estudo o movimento no salão. Não há ninguém além do casal de idosos que almoça no restaurante todas as quintas feiras. Volto a olhar para meu amigo, que toma um longo gole do refrigerante e em seguida aponta para mim com seu olhar de quem teve esteve pensando.
- Eu vou ser o próximo a sair com ela?
- De jeito nenhum. Você vai ser o último; se a Val não encontrar um par para a festa antes de você.
- Cara, qual é o problema dela sair comigo?
- Nenhum. – Dou de ombros e, para provar que não ligo nem um pouco para a conversa, vou lavar os copos sujos que estão dentro da pequena pia do bar.
- Sei. – Ele solta uma risada sem humor. – Se você não ligasse não teria ficado todo irritado quando eu pedi para sair com ela. E essa desculpa que você acabou de dar? Qual foi, você sabe que todos os caras que arranjar para ela nunca serão bons o bastante. Se eu não te conhecesse diria que só aceitou ajudar nesse plano maluco para manter ela afastada da competição.
- Competição? Eu não quero ficar com a Valentina, se é o que você está insinuando.
- Não?
- Se eu quisesse, já teria saído com ela. – Algo em minha reposta me incomoda. Do jeito que eu falei pareceu que Val é mais uma das garotas que costumam aceitar meus convites para encontros péssimos que não passam de uma desculpa para um pouco de diversão. Valentina não é como as outras garotas da escola; ela tem uma alma romântica e nunca iria se contentar em sair comigo. Eu sei que qualquer chance com ela é inexistente, mas isso também não importa para mim porque nossa amizade não funciona desse jeito. Eu e ela somos amigos desde pequenos e não há nenhum interesse romântico entre nós. De verdade.
Zander abre a boca para soltar mais um comentário irritante quando lembro da mensagem que Val me enviou e eu não cheguei a ler. Assim que tiro meu celular do bolso escuto Zander rindo, mas não me dou ao trabalho de o encarar.
Oito horas depois estou caminhando para o lado oposto de minha casa apenas para encontrar Valentina. Meu amigo ficou me provocando por mais de uma hora e quando fui servir uma mesa cheia ele desapareceu e em seu lugar deixou um bilhete avisando que havia partido. Por sorte o trabalho foi desgastante o suficiente para que o tempo passasse sem que eu percebesse e quando meu tio finalmente me liberou eu estava pronto para vir até Val.
Um dos homens dentro da cancela na entrada do condomínio logo abre o portão ao me ver e eu agradeço por ele não ligar mais para os pais de Valentina para avisar que estou aqui. Nas primeiras vezes em que vim até a casa de Val eles avisaram aos seus pais e por causa da hora os dois me mandaram ir embora. Depois de um tempo percebi que os homens deixaram de ligar e logo mais descobri que isso aconteceu porque Val encontrou um jeito de convencê-los a fingir que não me viam. Eu acho que os pais de Val sabem que costumo vir até sua casa depois de meus turnos no restaurante, mas eles nunca reclamaram.
Ao chegar à casa me detenho por um tempo diante da construção. Não importa quantas vezes eu venha neste lugar, sempre me pego admirando a opulência dele. Valentina diz que é porque eu pretendo ser arquiteto, mas eu duvido que qualquer um que não morasse aqui não se sentiria compelido a parar e contemplar as linhas retas, as colunas gregas e a enorme porta de vitral; sem mencionar o jardim perfeitamente simétrico. Sem que eu tenha tempo bastante para estudar a fachada como gostaria, contorno o gramado e pulo o portão para o jardim nos fundos da casa. Tento ser o mais silencioso possível ao escalar a treliça do roseiral da mãe de Val e em seguida pulo para a varanda do quarto de Liza. É estranho que eu sempre entre pelo quarto da irmã da minha amiga, mas desde que a casa da árvore foi demolida não encontrei outra forma a não ser bater à porta de Liza.
Assim que alcanço a porta francesa as luzes do quarto se acendem e Liza afasta uma das cortinas para verificar quem está ali. Eu aceno quando sua cabeça morena aparece e ela revira os olhos antes de abrir a porta para mim. Pelo modo como seus lábios se apertam eu imagino que ela esteja esperando outra visita.
- Finalmente veio por minha causa? – Ela pisca os olhos para mim no que pensa ser sedutor e eu me seguro para não rir. Liza tem o péssimo hábito de acreditar que é irresistível, mas o que ela não sabe é que está longe de ser bonita feito a irmã.
- Lamento decepcionar. – Digo já atravessando o quarto em direção ao corredor. Faço uma parada rápida para acariciar a cadela dela, Sininho, que em retribuição abana o rabo e solta um latido satisfeito, e continuo meu caminho até o quarto de Val.
Ao abrir a porta encontro o quarto no breu. A única luz vem de uma fresta do banheiro e decido que o melhor a fazer é me sentar enquanto espero. Observo as roupas sujas de Val jogadas sobre a escrivaninha e sinto uma vontade louca de colocar tudo no lugar certo como sempre faço. Do outro lado do quarto seus livros estão jogados no chão, alguns abertos e outros empilhados. Um caderno está aberto sobre o colchão e todas as suas canetas estão caídas debaixo da cama. Não sei como uma garota consegue viver no meio de tanta confusão, mas acho que é o que funciona para Valentina. Por mais que eu tente, não consigo imaginá-la vivendo em um lugar organizado.
- Você chegou. – Ela diz atrás de mim e quando me viro sinto meu coração acelerar e um grito ficar preso na garganta. Alheia a meu espanto, Val se senta na cama e aponta para que eu faça o mesmo.
- Val, você está verde. – Não consigo ignorar o fato de que o rosto dela está coberto por uma gosma verde e aparentemente grudenta.
- Ah, essa é minha cor normal. É que eu costumo esconder sobre várias camadas de maquiagem. – Ela levanta a mão esquerda e faz o sinal de saudação marciano. – Agora posso te matar ou você tem mais algum comentário desnecessário para fazer?
- Eu gostaria de saber qual o motivo da minha morte antes de tudo. – Rindo, me sento ao seu lado e tiro meus tênis. Ela me observa com divertimento durante o processo. – O que houve? Antes de tudo me conte como foi o encontro.
- Como se você não soubesse. – Ela diz de um modo tão banal que eu quase engasgo. Será que ela me viu, mesmo que eu tenha tido muito cuidado ao me esconder? Não é possível. Antes que eu consiga encontrar alguma desculpa ela volta a falar. – Foi você quem armou tudo, você sabia que o Ansel é um pé no saco e mesmo assim tentou empurrar ele para mim. E ele ficou fazendo monólogos sobre o meio ambiente, a poluição, os pandas e a droga da regra dos 3R!
Então ela estava se referindo a conversa deles e eu quase me entreguei. Preciso prestar mais atenção, porque se a Val descobrir que eu fui atrás dela acho que não vai me desculpar com tanta facilidade. Por mais que eu tenha sentido curiosidade a ponto de me esconder para ver como seria o encontro, também senti uma necessidade de estar por perto caso ela precisasse. Eu sabia que ela não correria nenhum risco com Ansel Moose no parque municipal, mas mesmo assim precisei ver com meus próprios olhos que não havia entregado Val para um maníaco.
- Eu sei que ele pode ser um pouco irritante quando começa a falar dos pandas, mas você pediu por alguém engajado em alguma causa e que gostasse de ler! Eu não conheço mais ninguém com essas características.
- Você podia ter escolhido qualquer um dos seus amigos, mas escolheu logo um louco que nem usa desodorante! E um dos itens mais importantes da lista é ser cheiroso. Você não leu essa parte?!
- O que? – A primeira risada me escapa antes que eu me contenha e logo estou perdendo o ar de tanto rir. Valentina tenta se manter firme, mas acaba se juntando à mim. Eu sabia que ela devia ter descoberto algo sobre Ansel que a fizesse fugir, mas nunca imaginei que ele não usasse desodorante. Quero dizer, ele não tem cheiro ruim nem nada, mas eu nunca cheguei muito perto para sentir o cheiro dele...
- O próximo encontro tem que usar perfume. Aliás, o próximo tem que ser o oposto de Ansel porque eu não acho que vou suportar outro maluco. Acredita que ele me ofereceu sanduíche de alfafa?
- Então você quer alguém como Ryan Evans? – Tento imaginar como seria um encontro entre os dois, mas não tenho criatividade o bastante para criar a imagem. Ryan Evans é um garoto da escola que se acha famoso por ter mais de cem mil seguidores nas redes sociais. Ele também é apaixonado pelo próprio rosto e qualquer superfície que reflita sua imagem. Resumindo: ele é um babaca narcisista.
- O Ryan seria uma ótima experiência. Acha que consegue falar com ele? – Por mais que eu não queria concordar, acabo balançando a cabeça apenas para ver o sorriso de Valentina. Sempre fico um pouco abobado quando ela me lança esses sorrisos largos e brilhantes. – AimeuDeus! Sabe o que eu acabei de imaginar? – Ela segura meu braço. – Ansel Moose com uma conta no instragram igual a de Ryan. Seria hilário. Que tipo de gente iria seguir ele?
- Não sei. – Paro por um instante e penso em fotos de Ansel sem camisa, tão desnecessárias quanto as de Ryan Evans. – O que será que ele iria dizer se recebesse comentários das mulheres taradas que seguem o Ryan?
- Aposto que ele passaria um sermão para a pobre garota mandando ela apreciar os pandas tanto quanto apreciaria uma foto dele... Isso seria muito engraçado! – Ela ri tanto que uma lágrima escorre por sua bochecha. Sinto minha mão levantar por vontade própria e quando percebo estou limpando seu rosto. Não haveria nada de errado nesse pequeno movimento se Valentina não tivesse parado de repente. Seus olhos azuis se arregalam e sinto-a enrijecer sob me toque.
- Você não precisa chorar pelo Ansel. Ele tem todos os pandas do mundo para lhe confortarem agora que levou um fora seu. – Forço as palavras para fora em uma tentativa de desfazer a estranheza do momento. Funciona, pois Val revira os olhos e solta outra risadinha.
- Você está com a lista? – Ela pede depois de alguns segundos em silêncio. Faço que sim e lhe entrego o pedaço de papel. – Precisamos mudar algumas coisas.
Ela se debruça na beirada da cama e apanha uma das canetas, em seguida rabisca alguns pontos da lista. Aproveito para enviar uma mensagem para Zander pedindo que ele me ajude a convencer Ryan a sair com Valentina. Quando ela finalmente fica satisfeita me devolve a lista e pede para que eu mantenha segredo.
- Você quer sair com Ryan nessa sexta? – Pergunto ao ler a resposta de Zander, que veio mais rápido do que eu esperava.
- De jeito nenhum! Sexta é nossa noite de filmes, você sabe. Tenta marcar o encontro para sábado. – Ela me olha como se eu tivesse acabado de machucar fisicamente um filhote. Eu me sinto satisfeito com sua resposta, pois isso significa que essa ideia louca de encontrar um acompanhante para uma festa não é tão importante quanto nossa amizade. Eu e Val passamos todas as noites de sexta feira assistindo filmes e falando besteiras desde que nos conhecemos. O programa acabou se tornando uma espécie de ritual só nosso e nunca ninguém fez com que perdêssemos uma noite de sexta sequer.
Digito uma resposta e em segundos Zander diz que Ryan aceitou.
- Fechado. – Eu me levanto após verificar as horas e dou um beijo de despedida na testa de Val. – Você tem dois dias para se preocupar com que roupa vestir.
- Eu não me preocupo com essas coisas. – Ela revira os olhos, mas acaba me dando um abraço antes de se afastar. – Até amanhã.
- Boa noite.
Ela me lança um sorriso contido e ao invés de sair pelo quarto de Liza desço a escada e saio pela porta principal. Não quero correr o risco de encontrar a irmãzinha da minha melhor amiga junto com a visita dela. Durante todo o caminho de volta para casa eu só consigo pensar em uma coisa: de jeito nenhum vou deixar Val ficar perto de Ryan Evans sem que eu esteja lá, por isso envio uma mensagem para Suzie convidando-a para me encontrar no mesmo lugar do encontro.
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Agora, uma curiosidade para vocês entenderem melhor o que aconteceu com o Zander e o V. no restaurante: a venda e o consumo de bebidas alcóolicas nos Estados Unidos é proibida a menores de 21 anos.
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