05 - Valentina
Assim que o último sinal toca eu corro para o banheiro mais próximo e após aplicar um pouco de gloss incolor e pentear meus cabelos vou para a porta principal da escola. Não faço ideia de quem procurar, portanto me concentro apenas em controlar meus batimentos cardíacos que estão à mil pela ansiedade. A multidão ao meu redor faz com que eu consiga esquecer de tudo por um momento, mas não tempo o bastante para que o frio em meu estômago se espalhe pelo resto do corpo. Vejo minhas amigas descendo a pequena escada de quatro degraus e ao passarem por mim a única que para é Barbara. Ela ajeita os cabelos ruivos em corte chanel atrás das orelhas e cruza os braços como se exigisse saber o que está acontecendo. O problema é que não somos intimas o suficiente para que eu conte tudo o que me acontece para ela e vice-versa.
— Vou até Boston mais tarde. Quer vir comigo? — Ela pergunta ao perceber que não vou lhe dar a resposta que ela realmente quer.
— Não posso.
— Tem planos para hoje? — Barbara passa uma mão pelos cabelos fingindo não estar interessada, mas conheço seus defeitos e sei que a curiosidade é o pior deles. Limito-me a dar de ombros e encaro as pontas enlameadas de minhas botas. — Tudo bem então. Falo com você amanha.
— Tchau.
— Até mais. — Ela olha por cima de meus ombros e revira os olhos. — Não entendo mesmo como você anda com ele. — Ela aponta com o queixo para alguém atrás de mim, mas não preciso me virar para adivinhar que está falando de Valentin.
Mesmo sabendo que ele está provavelmente fazendo algo que Barbara desaprova, eu viro e vejo encostado na parede de tijolos com Suzie logo à frente. Eles não estão fazendo nada além de conversar, mas pelo modo como as bochechas de Suzie estão coradas e seus olhos estão mais apertados que o normal, aposto que meu amigo está flertando com ela. Quando volto a olhar para frente Barbara não está mais por perto e perco a chance de defender Valentin mais uma vez, porque sempre que ela aponta para algo errado foge depois e eu nunca consigo provar o quão errada ela está. Para falar a verdade, eu não entendo o motivo de Barbara não gostar de Valentin. Volto a encarar meu amigo e mal reparo que a movimentação de alunos diminui. Ele ergue os olhos como se sentisse meu olhar sobre si e faz um sinal com a cabeça para que eu me aproxime, o que eu preciso dizer que não deixa Suzie nem um pouco satisfeita. O olhar mortal que ela me lança me deixa mais confortável para andar até eles e desfazer o que quer que estivesse acontecendo.
— ... só não consigo entender o motivo disso. — Escuto ela terminar de dizer e um biquinho aparece em seus lábios.
Ao invés de responder Valentin me encara pedindo por ajuda e eu quase sinto prazer ao pular no meio dos dois e puxar meu amigo para um abraço muito mais demorado que o necessário. Suzie bufa ao meu lado e escuto seu pé bater contra o chão, mas isso não me apressa nem um pouco. Sinto o corpo de Valentin tremer com sua risada silenciosa e ele esconde o rosto em meus cabelos, provavelmente para que Suzie não veja que ele está rindo às custas dela.
— Olá Valentina. — Ela diz por cima de mim e reparo no quanto soa irritada.
— Ah, nem tinha te visto. — Olho por cima do ombro para ela, porém mantenho um braço envolvendo Valentin. — Tudo bem?
— Sim. Eu estava tendo uma conversa séria com ele, será que você pode nos dar um momento? — Ela finge ser educada e eu preciso morder minha língua para não começar a gargalhar. Eu realmente não entendo o motivo de eu me divertir tanto ao provocá-la.
— Ah, desculpa. Não dá agora. Depois você pode ligar pro V. e ficar reclamando, mas eu preciso do meu amigo nesse minuto.
— Valentin? — Ela cruza os braços em expectativa e aposto que acredita que meu amigo vai me dispensar, mas à medida que os segundos passam e ele não faz nada além de me puxar para perto de si Suzie percebe que estava enganada. — Tudo bem. Nós conversamos depois.
E com isso ela marcha em direção ao carro tentando manter a compostura.
— Acho que a sua namorada ficou magoada. — Rindo, empurro Valentin para longe e encaro o espaço vazio onde o SUV preto de Suzie estava estacionado há segundos.
— Ela não é minha namorada e nunca vai ser. — Ele responde rindo, o que me faz revirar os olhos. Sempre achei engraçada a mania que Valentin tem de fugir dos compromissos; em todos os anos que o conheço ele nunca teve uma namorada fixa e sei que o lance com Suzie vai terminar mais rápido do que sou capaz de soletrar banana.
— Você não tem pena de iludir a garota?
— Essa é boa. — Ele solta uma risada sem humor e aperta um ponto entre minha costelas que me faz gargalhar. — Você sabe que eu nunca prometi nada para nenhuma delas.
— Esqueci que você é a sinceridade em pessoa. — Provoco um sorriso malicioso em seus lábios. — E o que você ainda está fazendo aqui? Não vai trabalhar hoje?
— Mudei meu turno hoje. Tenho que resolver um assunto. — Ele diz sem muita convicção e sinto que há algo errado. A mesma sensação que tive hoje de manhã volta e não consigo deixar de acreditar que Valentin está escondendo algo de mim pela primeira vez. Isso me incomoda profundamente.
— O que está acontecendo?
— Nada. — Seus ombros caem com alívio ao ver um carro velho e batido encostar no meio fio. — Minha carona chegou. Divirta-se no encontro.
Ele beija minha bochecha e corre para dentro do carro, fugindo tanto do frio quanto de mim. O cano de descarga do carro solta um ruído ao acelerar e à medida que o observo desaparecer na saída do estacionamento percebo que estou mais preocupada com o que meu amigo está escondendo de mim do que com meu encontro às escuras. Surpreendentemente a ideia de passar a tarde com um desconhecido se tornou banal agora que estou desconfiada de que meu amigo está se afastando de mim. Pelo modo como Suzie estava balançando os braços no ar e usando sua voz em um tom mais histérico que o habitual eu acredito que ela seja o motivo do que quer que esteja prestes a acontecer com minha amizade. E se eu descobrir que ela é a mente perversa tentando nos afastar eu juro que vou fazer a garota pagar. Talvez ela considere ter o cabelo pintado de azul um aviso.
— Valentina Kozlov? — Alguém chama por mim e eu pulo ao ver um garoto parado bem à minha frente. Não sei como não o vi antes.
Ele afasta os cabelos cor de trigo dos olhos e me encara em duvida. Dou uma boa olhada em sua aparência, tomando o cuidado de não demonstrar nada. Reparo que suas calças são curtas demais para sua altura, terminando nos tornozelos e revelando que ele usa duas meias diferentes.
— Você é a Valentina? — Ele pergunta mais uma vez, acreditando que não escutei na primeira. Faço que sim ainda em duvida e ele dá um passo hesitante em minha direção, mas acaba desistindo e volta para perto de uma bicicleta da mesma cor de abacate do casaco que veste. — Eu sou Ansel Moose, muito prazer.
— O-oi. — Forço um sorriso, porém ao julgar pelo olhar de Ansel eu sei que não estou parecendo tão animada quanto eu gostaria. Não é por mal, eu juro que ainda quero ir ao encontro, eu só esperava por alguém diferente dele.
— Você está pronta? — Ele pergunta alheio ao meu choque inicial.
Antes que eu possa responder Ansel me estende uma mão e sorri, fazendo com que seus olhos negros se destaquem por debaixo de todo o cabelo. Faço que sim e ele me puxa para sentar na bicicleta. Eu me pergunto onde exatamente eu poderia me sentar e ele, percebendo minha confusão mais uma vez, aponta para a barra entre o banco e o guidom e eu me forço a sentar. O frio do metal atravessa a barreira de minhas calças e me faz tremer por dentro. Por mais que eu queira correr para longe, repito para mim que eu preciso ir até o fim. Não conheço Ansel e ele pode ser um cara bem legal apesar de não se vestir bem e ser o único maluco que prefere andar de bicicleta a um carro no meio do inverno.
— Eu trouxe comida. — Ele diz ao se sentar atrás de mim. — Espero que você goste de alfafa.
— Alfafa? — Sinto meus olhos se arregalarem e uma risada nervosa me escapa.
— Eu não como carne nem nada que possa prejudicar o mundo em que vivemos. E nosso corpo também é nossa casa, não é? Por isso prefiro as comidas saudáveis.
Pensando bem, até que faz sentido o que ele diz. Eu nunca liguei muito para o que eu como de qualquer maneira. Talvez eu precise de Ansel para me ajudar a ser uma pessoa mais saudável.
Ele pedala em silêncio até o parque, que para nossa sorte não é muito longe da escola. Ao chegarmos eu preciso me controlar para não dar pulinhos de alegria por não ter mais que aguentar o ar gelado cortando minha pele e fazendo meu cabelo voar para os lados. Estico minhas pernas e disfarçadamente passo a mão pelo local dolorido por eu estar sentada sobre a barra. Acho que depois de hoje nunca mais vou aceitar uma carona em uma bicicleta, não importa se será de Ansel ou qualquer outra pessoa.
— Podemos sentar por ali. — Ele aponta para um pedaço de grama queimada perto do parquinho infantil.
Ao ver o escorrega enferrujado e os balanços recordo do dia em que conheci Valentin e um sorriso bobo surge em meus lábios. Ainda lembro do jeito que ele me encarou, de pé no alto do escorrega, enquanto eu fingia não dar ouvidos ao que ele dizia. Era minha primeira semana na cidade e por mais que eu estivesse morrendo de medo dele, eu queria muito brincar naquele escorrega e acabei derrubando-o lá de cima. Foi um acidente e demorou algumas horas para que eu o convencesse, mas quando o dia terminou nós havíamos nos tornado os melhores amigos do mundo. Ele costumava dizer que seríamos sempre nós dois contra o mundo. Com o passar do tempo Valentin parou de repetir o mantra, mas eu sei que ele continua acreditando nisso assim como eu.
— O que você quer? Tem salada de beterraba, rúcula, alfafa e cenoura ou um sanduíche de pão sem glúten com um antepasto de berinjela. — Ansel retira um cobertor xadrez e alguns potes de vidro de dentro do alforje da bicicleta.
Antes que meu rosto entregue minha repulsa pela comida que Ansel trouxe eu me apresso em tirar o cobertor de suas mãos e cubro o chão. Ansel logo se senta e abre as embalagens, revelando várias opções de comida vegetariana. Ele me estende um conjunto de talheres de prata, o que faz com que eu goste um pouco mais dele já que ele se preocupou em trazer talher de verdade ao invés de produtos descartáveis.
— Que legal você ter se preocupado em trazer talheres de verdade. — Eu forço um início de conversa com o que eu acho que é um assunto seguro.
— Não, na verdade, eu só uso esse tipo mesmo. E os potes também. — Para enfatizar ele bate contra um dos potes de vidro e sorri. — Sou contra coisas descartáveis. Nós produzimos muito mais lixo do que é o necessário. Se todo mundo usasse talheres de prata ao invés dos descartáveis em um piquenique nós já estaríamos fazendo muito pela natureza. Sabe, eu sempre falo que os seres humanos deveriam valorizar mais a regra dos 3R: reduzir, reutilizar e reciclar. Você não acha que eu estou certo?
— Claro. — Balanço minha cabeça positivamente incapaz de falar alguma coisa mais sobre o assunto. Por mais que eu tenha um pouco de consciência ambiental não me preocupo em nada com a quantidade de lixo que existe no mundo. — Você gosta bastante da natureza hein? Já deu para perceber.
— Como eu disse, nós precisamos preservar o mundo em que vivemos. A poluição é o maior inimigo da natureza. E sabe o que a poluição faz? Acaba com a camada de ozônio. Isso pode não parecer muito, mas enquanto eu falo as calotas polares estão derretendo e os rios estão sendo invadidos pela água do mar. — De novo me limito a balançar a cabeça ao perceber que Ansel discursa com afinco. — E nosso país é o maior poluidor do mundo. Eu não consigo acreditar que as pessoas tem tão pouca consideração pelo planeta. Será que ninguém percebe que nós estamos afetando nossas gerações futuras? É o que acontece hoje que vai dizer como vamos viver amanhã.
— Verdade. — Forço alguma resposta quando ele faz uma pausa para recuperar o ar. Sinto que Ansel ainda tem muito mais a falar sobre o assunto e começo a me arrepender por ter puxado conversa. — Então, o que mais você faz além de seguir a regra dos 3R?
— Eu iniciei um grupo em minha escola chamado ProNa, que significa pró-natureza. Nós tentamos arrecadar assinaturas e doações para salvar espécies que habitam as florestas temperadas ao redor do mundo, em especial o panda-gigante na China. Atualmente apenas cerca de mil e seiscentos animais dessa espécie vivem nas florestas, mas só uns novecentos deles vivem em áreas protegidas. Você entende a seriedade da situação? Isso se deve pela baixa taxa de natalidade deles e a destruição do habitat natural. Como eu disse antes, se a gente se preocupasse um pouco mais com a natureza e seguisse a regra dos 3R estaríamos salvando muitos animais em perigo de extinção.
— Eu entendo—
— Na verdade, eu acho que o ser humano é egoísta. Acho um absurdo quando vou coletar novas assinaturas e o pessoal da minha escola faz piadas e tentam me impedir. Eles também não entendem a escolha que fiz de não usar desodorantes. Isso é culpa do que vemos na mídia. Nós somos manipulados desde que nascemos, eles nos fazem acreditar que precisamos de coisas que não precisamos e a sociedade nos impõe a seguir essas regras ridículas, mas o que realmente importa passa despercebido.
— Espera um pouco! — Eu praticamente grito para que Ansel pare de falar. Primeiro ele me corta para falar de pandas e depois ele revela que não usa desodorante. Eu devo ter escutado errado. — Você disse que não usa desodorante?
— Sim. — Ele me encara em confusão. — Você sabe o que o desodorante faz com a camada de ozônio?
— Eu posso imaginar. — Corto antes que ele inicie mais um discurso. — Eu acho que você deveria ir para a China salvar os pandas, porque eu estou indo para casa.
Ansel se levanta com os olhos arregalados e a boca aberta, mas eu faço um sinal para que ele continue sentado e lhe dou as costas. Sinto meu sangue borbulhar de alívio por estar deixando esse lunático para trás, mas algo me diz que o maior culpado pelo desastre desse primeiro encontro é Valentin e por isso ele vai precisar se explicar. Sem pensar, puxo meu celular do bolso e lhe envio uma mensagem para me encontrar em minha casa depois que seu turno no restaurante acabar.
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É, parece que não foi dessa vez, mas ainda tem muito tempo (e muitos encontros) até a festa... certo??
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