Parte 1


Yan tentou se levantar, mas as pernas bambearam e ele foi ao chão. Abriu os olhos e a visão turva o deixou tonto. Decidiu fechá-los. A cabeça girava. Não tinha ideia de onde estava e muito menos de como havia chegado ali. Inalou um ar velho e pesado e tossiu ao senti-lo nos pulmões. Recorreu à memória em busca do último lugar onde estivera, mas a cabeça não o obedeceu. Decidiu dar mais uma chance aos olhos, desta vez com calma.

A pouca luz do local não foi suficiente para ofuscar a vista, mas ainda assim causou algum incômodo. A imagem do lugar se materializou aos poucos. Estava no que parecia ser um imóvel comercial ainda em construção. Não havia paredes separando cômodos, apenas uma área aberta com grandes pilastras dispostas de forma espaçada. Andaimes e ferramentas permeavam o ambiente e as janelas estavam todas cobertas, com exceção de uma.

A mão de Yan percorreu os bolsos a procura de ajuda. Encontrou a carteira e a chave do carro, mas o celular não estava ali. Aos poucos os pensamentos começaram se ordenar. A visão do pé direito acorrentado o fez entender a situação.

"Droga," pensou.

A figura humana à janela no fundo do salão percebeu que Yan havia acordado e foi em direção a ele.

— Você está bem? — ela perguntou ao se aproximar.

Era uma garota jovem, no fim da adolescência. Tinha o rosto bonito e familiar, mas para Yan todo rosto era familiar. A profissão o obrigava a lidar com centenas de pessoas diariamente e seria impossível conhecer todas elas. Nada se destacava muito na garota, a não ser seus olhos. Eles estavam mortos.

— Acho que sim — Yan respondeu. — Quem é você?

— Me chamo Meili.

— Se importaria em me soltar das correntes, Meili? Tenho uma reunião importante hoje.

Ele não fora o primeiro homem do Partido a ser sequestrado. Era raro, mas acontecia. E por isso ele havia sido treinado para aquele tipo de situação. O protocolo dizia para não irritar os sequestradores, mas descobrir informações sobre eles poderia ser útil nas negociações. Uma pergunta casual como aquela serviria de termômetro para que o homem avaliasse até onde poderia ir.

— Me desculpe, mas não posso — disse a garota.

A ausência de hostilidade em sua voz manteve Yan calmo. Ele poderia ficar preso por dias e não sabia que tipo de tratamento iria receber. Então era importante que não se desgastasse muito no começo. Eventualmente o resgate seria pago e ele estaria livre.

— E por que me acorrentou aqui, Meili?

— Não fui eu que o acorrentei — ela respondeu sem alterar o tom de voz.

Yan concluiu que sua sequestradora não estava agindo sozinha. Quantos mais estavam ali? Ele esperava descobrir em breve. O fato de Meili não cobrir o rosto era uma coisa boa. "Devem ser amadores," ele pensou. Se esse fosse o caso, a polícia agiria mais rapidamente.

— Sabe onde estamos, Meili? — ele perguntou, novamente de forma casual.

— Em Junming.

Com certeza eram amadores. Mesmo o que o local tivesse sido uma boa escolha, seria um erro revelar a localização do cativeiro. "A não ser que ela esteja mentindo," Yan pensou.

— E se importa em dizer o que fazemos aqui?

— Eu moro aqui — ela disse.

A resposta causou estranheza no homem. Ninguém vivia em Junming. Era uma cidade fantasma. A garota deveria estar mentindo, mas algo ali não parecia certo. Ela não parecia mentir. Ela não parecia saber mentir. Yan não sabia se era seu tom de voz inalterável ou a forma como ela respondia suas perguntas — sem hesitar ou sequer pensar nas respostas. Ela não parecia querer esconder nada.

Antes que ele pudesse trabalhar numa hipótese, a garota fez uma pergunta.

— E o que o senhor faz? — A voz não emanava curiosidade, apenas palavras inertes. — Disse que tem uma reunião importante hoje.

— Sou membro do Partido — ele respondeu. — Sou responsável por implantar as políticas públicas nas cidades e distritos da região. Trazer a prosperidade ao povo.

Talvez fosse impressão de Yan, mas a última frase causou um leve tremor no olho esquerdo da garota.

"Os olhos," ele pensou. Eram os olhos da garota que não estavam certos.

— Me parece um trabalho muito nobre — ela disse.

— De fato é. E é justamente por causa dele que conheço Junming e sei que ninguém vive aqui. Sabe... esse lugar costumava ser uma vila de pescadores antigamente...

— Eu sei — ela o interrompeu de forma seca. — Meu pai era um pescador aqui.

Apesar da frase de Meili não ter nada de diferente de tudo que ela dissera até ali, Yan sentiu um peso muito grande nas palavras. Elas carregavam um sentimento ruim que ele não soube identificar. Algo no fundo da alma dele gritou para que se calasse, mas sua curiosidade falou mais alto.

— E o que aconteceu com seu pai? — perguntou.

A garota deu um passo em direção ao homem. Ele se afastou num movimento inconsciente. Yan se deu conta de que estava com frio.

— Um dia alguns homens apareceram aqui e disseram que todos os pescadores precisavam sair. Disseram que nossa vila fora escolhida para a construção destes prédios em que estamos agora. — A garota usou as mãos para apontar para o local. — Meu pai e os outros pescadores se recusaram a sair, é claro. Houve muita discussão na época.

Yan conhecia bem a história, ele mesmo participara do ocorrido na vila anos atrás. Meili deu mais um passo e ele percebeu como sua pele era pálida. O olhar apagado penetrava nele como sal numa ferida aberta e a calma do homem se esvairia aos poucos como grãos de areia ao vento. A garota continuou.

— Todos os dias os homens da vila saiam bem cedo para pescar rio acima. E foi em uma destas ocasiões que as máquinas apareceram. Sem qualquer aviso, demoliram toda a vila. Foi rápido e covarde. Minha mãe quase não conseguiu escapar de casa.

A garota ficou muda e Yan a acompanhou. Ele se lembrava daquele dia e toda a comoção que houve no lugar. Meili não estava errada em descrever o ato daquela maneira, mas foi algo necessário. Ordens do Partido.

O silêncio angustiante fez Yan se questionar se deveria ou não parar de falar por enquanto. A conversa tomara um rumo inesperado e sem sentido e já não parecia ajudar em nada o homem. Na verdade, nada ali fazia sentido. A atitude da garota não condizia com o que ele vira no treinamento antissequestro. Ela havia dito seu nome, a localização do cativeiro, não estava cobrindo o rosto e respondia a todas as perguntas sem vacilar.

Meili deu mais um passo em direção a Yan e ele recuou novamente. O frio começava a incomodar. A tranquilidade presente no início da conversa já não existia. Um turbilhão de ideias inundou a mente do homem e de todas elas apenas uma se fixou. Uma ideia irracional. Yan não acreditava naquele tipo de coisa.

— Meili. — A voz de Yan falhou e ele limpou a garganta. — Pode pedir para alguém me trazer água? Acho que todo esse pó está me fazendo mal.

— Estamos sozinhos aqui — ela respondeu.

Um calafrio cruzou a espinha de Yan. Não podiam estar sozinhos. Não podiam. O pensamento louco de antes martelava incessantemente sua cabeça. Ele tentou refutá-lo, mas ele não ia embora. "Não é real, não pode ser," ele repetia em sua mente. Mas era inútil. De repente ele não estava mais preocupado com sequestros ou nada do tipo. Algo muito pior o incomodava. Algo mau.

— Você disse... — Yan começou devagar e escolheu bem as palavras. — Você disse que sua mãe quase não conseguiu escapar de casa quando as máquinas de demolição chegaram naquele dia. — Estivesse ele numa situação normal, teria vergonha da pergunta que estava prestes a fazer. Mas naquele caso, ela parecia apropriada. — O que aconteceu com você naquele dia?

Ele tinha que saber que não era real. Ele tinha que saber que sua mente estava pregando peças nele. Ele tinha que saber que...

— É isso que está pensando? — Meili avançou mais um pouco. — Acha que eu não consegui sair de casa antes dela ser demolida. Acha que estou morta?

A pergunta atingiu a alma do homem. Sua respiração pesava e o coração explodiria se batesse mais rápido. Apesar do frio, uma gota de suor escorreu em sua testa e por um momento tudo que Yan conhecia na vida virou nada.

— Achei que as pessoas da cidade não acreditassem mais nessas coisas — Meili disse e deu mais um passo.

Yan se encontrou com as costas pressionadas contra a pilastra e sem mais espaço para recuar. Meili levantou a mão para tocá-lo e ele nada pôde fazer, estava paralisado. Teria de aceitar o que o destino reservava. Esperava sentir o toque gelado da morte, mas o que sentiu foi uma mão quente e macia encostar em seu rosto.

— Não sou um fantasma — Meili disse. — Antes de sair de casa, minha mãe correu até meu quarto e me pegou nos braços. Isso quase custou nossas vidas, mas conseguimos sair juntas.

A garota se afastou e Yan sentiu o peso de mundo sair de seus ombros. Lágrimas escorriam de seus olhos e ele ao menos sabia quando começara a chorar. Treinamento nenhum o prepararia para aquele tipo de situação.

— Além disso — Meili continuou sem esperar que o homem se recuperasse —, se eu fosse um fantasma, como poderia acorrentá-lo aqui?

— Ma... Mas você disse que não foi você.

Um sorriso maligno se desenhou no rosto da garota.

— Eu menti.

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