Quase morte - Dia 4
Dia 4, manhã. Lar doce lar... A frase reluzia como se estivesse estampada na porta, janela e paredes daquele casebre de palha. Ao menos, ele sentia assim. Após tanto sofrer, na mendicância das ruas e nas noites passadas ao relento na ilha, enfim teve uma boa noite de sono. Sem mosquitos, sem frio, sem chuva. Estava no conforto de um abrigo, protegido da natureza implacável.
Desceu da rede e, com cuidado, pôs o pé no chão. Foi até a pequena janela, espiar o nascer de mais um dia. O sol subia no horizonte e nuvens de todos os tipos e formas despontavam no céu azul. Ficou admirando a paisagem selvagem por algum tempo. Uma deliciosa brisa praiana soprava em seu rosto, partindo diretamente das camadas mais altas do firmamento. Viu uma nuvem que lembrava um reluzente castelo da antiguidade; Outra em forma de um feroz dragão, soprando fogo sobre o castelo. Mas a que mais o deixou intrigado foi uma pequena nuvem, comprida e pardacenta, que o fez lembrar um cachorro passeando pelos jardins do castelo, enfrentando o poderoso dragão pelos céus.
Uma palavra de admiração saiu de sua boca, ao sentir saudades de seu companheiro de longa data... Seu pequeno Dachshund, que enfrentava a dureza da vida ao seu lado. Não sabia por onde ele andava, mas sabia que, de algum lugar, ele lhe observava feliz, desejoso de estar ao seu lado.
O vento soprou mais forte, desfazendo aos poucos as nuvens imaginárias. Despediu-se com carinho de seu amigo que se desmanchava no céu, parecendo olhar para aquela praia perdida no tempo com uma pontinha de saudades.
...
Sentiu dores em sua barriga, que reclamava de fome e sede. Tinha que admitir que precisava finalmente de água para beber e de algo para comer. O sangue de seu pé ferido havia coagulado, formando uma crosta negra que anestesiava sua dor. Melhor era nem olhar, pensou ele. O corpo não sente o que o coração não vê. Deixou então o casebre e foi em busca de algo para se alimentar. Seguiu a trilha de algumas formigas, ocupadas em montar um novo formigueiro para criar e alimentar seus descendentes. Viu um siri na areia, que rapidamente entrou em sua toca, buscando proteção. Avistou um casal de pássaros planando no vento, observando juntos o mar em busca de peixes. Percebeu assim que seria difícil achar algo para comer. A cada passo, olhava para trás sentindo saudades de casa, de seu lar doce lar. Parecia enfim ter aprendido a dura lição: um lar e uma família, nunca se abandona...
Dia 4, tarde.
Veja hoje no jornal da tarde: Defesa civil em alerta na cidade
De acordo com o novo boletim meteorológico divulgado pela Defesa Civil, uma nova frente fria deve trazer ainda mais chuva e instabilidade ao Estado neste 4º dia do mês. Áreas de baixa pressão provocam novas tempestades com trovoadas e rajadas de vento, e o acumulado de chuva esperado pode passar de 150 mm, entre a noite de hoje e início da manhã. Atenção para o risco de novos deslizamentos. Evite o contato com água contaminada e não transite em lugares alagados. Não caminhe em pontes submersas e muito cuidado ao se aproximar de rios e bueiros. Qualquer problema deve ser comunicado à Defesa Civil, através do telefone de emergência ou para o Corpo de Bombeiros. A Defesa Civil conta com atendimento de 24 horas, com equipes de prontidão.
Novidades sobre o indivíduo desaparecido no Morro do alemão, antes das fortes chuvas desta semana:
Foi reencontrado na manhã de hoje o cachorro Biscoito, que acompanhava seu dono nas imediações do Morro do Alemão antes de seu desaparecimento. A Defesa Civil recolheu o animal, que apareceu em meio ás águas, cansado e faminto. Depois de tratado e medicado, o prestativo Dachshund prontamente se dispôs a ajudar nas buscas por seu dono desaparecido. A história comoveu os Bombeiros locais, que hoje reforçaram as buscas pelo senhor conhecido como Velho51. Mais informações no Jornal da Noite, ou a qualquer momento em nosso plantão de notícias.
Dia 4, noite. Um movimento brusco quebrou o balanço vagaroso da rede no casebre de palha. Seguido de outros, em uma sequência febril. As fibras da rede tremeram junto com o corpo convulsionado e delirante, que jazia em seu abrigo. A febre invadia aquele organismo, que sofria calado a inflamação de sua extremidade inferior. Tremores e delírios tomaram conta daquele ser, que logo acordaria de seu mais novo pesadelo. Ao abrir os olhos e sentir o gosto de sangue na boca, não pôde deixar de perceber que estava ferido. Havia mordido a própria língua, durante a convulsão... E o inchaço de seu pé continuava piorando. O caco de vidro ainda estava ali, fincado em sua pele. E a inflamação também. A dor lancinante que se espalhava agora por toda a perna indicava que seu corpo pedia socorro. Nem ousou tocar em seu pé. Só de pensar, sentiu uma vontade latente de gritar. Mas tentou não entrar em pânico.
...
Olhou para a parede, procurando um consolo, mas a foto de família não estava mais ao seu lado. Uma lembrança vazia preencheu sua mente, ao lembrar-se do dia em que saiu de casa, deixando somente aquele recado de Adeus... Pobre família!
Pensou em seu cachorro Biscoito, o único que o viu abandonar o lar naquela noite de dor e mágoa. Ele o seguiu pelo portão, estrada afora, por toda a vida, como seu mais fiel amigo e protetor. Biscoito foi o único que acompanhou sua vida, no antes e depois daquele dia fatídico, que acabou o transformando no andarilho anônimo e alcoólatra, o Velho51.
Madrugada. Uma aranha vagava pela noite solitária, a procura de alimento. Depois de um passeio sem sucesso pela beira da praia, acabou se ajeitando em meio à parede de palha do casebre. Encostado na parede, um corpo febril repousava na rede, próximo à aranha. O animal logo se interessou em explorar o calor daquele corpo, que talvez pudesse lhe oferecer alguma vantagem alimentar. Caminhando sobre o corpo em repouso, a pequena aranha assustou-se com o movimento involuntário das mãos, e logo levantou suas presas na tentativa de morder sua vítima indefesa. Mas foi impedida por um intenso feixe de luz que cegou seus oito olhos desconexos. Mesmo sem enxergar, a aranha não se entregou. Buscou proteção, escondendo-se embaixo do corpo adormecido até recuperar sua visão.
A luz azulada direcionou-se então para os olhos do homem, que logo acordou espantado. Novamente aquela luz...
Logo percebeu algo estranho junto ao seu corpo; a aranha foi descoberta e enxotada dali por uma mão agitada e furiosa. Achou melhor montar sua teia e procurar alimento longe dali, próximo à praia.
A tranquilidade retornou ao lar daquele sofrido ser humano. Mas sua mente estava repleta de dúvidas e incertezas s sobre a misteriosa luz azul da madrugada. Ao levantar sua mão e tocar no feixe de luz azul, sentiu a paz e quietude da madrugada, que logo embalaram seu sono providencial.
Continua...
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