Quase morte - Dia 2


Dia 2, manhã. Sobre a fina areia da praia, um pequeno molusco se arrastava tranqüilo e sem pressa, ao raiar de um novo dia. Os primeiros raios de luz iluminavam o céu em um límpido azul.

O mar costumava ser tranquilo e pacífico naquela enseada, mas também tinha seus momentos nervosos. Uma onda mais forte atingiu a praia e banhou o pequeno ser, desviando seu curso na areia e jogando-o sobre um obstáculo que repousava à beira mar.

O molusco, ainda perdido, viu-se entre panos e trapos, de onde surgiu um braço que logo o agarrou. E foi seu último adeus.

...

Comida! Um pingo de proteína, para um organismo já quase sem vida.

E, no fim das contas, o molusco tinha gosto de rollmops, iguais aos que eram servidos no Boteco Preferido, sempre acompanhados de uma dose de 51.

Após nadar freneticamente até o esgotamento para escapar de um tubarão faminto, ele bem que merecia uma medalha ao mérito. Aproveitou o lanche ofertado pelo destino, com toda a calma.

Nem tentou se mexer na areia, pois seus braços e pernas doíam imensamente, mesmo parados; seus olhos queimavam sob a luz do sol.

Permaneceu ali, deitado na areia, de olhos cerrados, sendo banhado pelas ondas calmas e o sopro do vento naquela enseada de águas claras, pensando em tudo que havia passado até então.

Infelizmente, ainda estava vivo.

Dia 2, tarde. Mais quente do que o tórrido sol da tarde, em uma paradisíaca ilha isolada. Mais rápida e ardente que uma água viva, dessas que surgem sem se esperar. Mais perigosa do que a falta prolongada de água, que resseca a pele e o corpo. Ele sabia bem o que era uma ressaca, e os efeitos dela em seu organismo. Seu corpo já estava acostumado a sofrer, mas quando sentiu sua testa arder em febre, o desespero bateu à sua porta. Ao mesmo tempo em que suava frio, os tremores tomavam conta de seu corpo esgotado.

Tentou abrir os olhos, rapidamente, e ver a situação: ainda estava deitado na areia, sendo banhado pelas ondas do mar, mas sem forças para reagir.

Viu alguns poucos coqueiros e palmeiras ao longe, com uma sombra perfeita para se proteger do sol escaldante. De canto de olho, observou um novo "amigo" ao seu lado: um pequeno caranguejo, saído de seu buraco, fitando-o com seus olhos curiosos. O pequeno ser distraiu-se por alguns segundos, e deu seu último olhar para a praia. Uma gaivota em voo rasante o capturou, levando-o como seu jantar pelo céu azul.

...

Basta. Estava cansado de ficar ali, sem reagir, sendo espectador da natureza naquela praia deserta. A vontade de evacuar o pouco que tinha no estômago foi o combustível que faltava para se arrastar adiante. Após muito esforço e muita energia gasta, conseguiu se mover por alguns metros. Suas pernas e braços tremiam, fraquejando a cada tentativa de fazerem algo útil por aquele ser rastejante.

Quase no fim da tarde, havia enfim alcançado a agradável sombra de uma palmeira. Era ali. Juntou suas forças para seu momento "necessidades básicas" e, com um sorriso de alívio e gratidão, não se importou em colaborar com a adução daquela frondosa árvore verdejante.

Dia 2, noite. O cricrilar dos grilos inundou o ar ao seu redor, despertando sua consciência. Voltou à realidade e abriu seus olhos, ainda deitado sob a proteção da palmeira, mas só viu escuridão. A noite estava em breu, e pouco podia enxergar à sua volta.

Tentou esticar os braços, tateando plantas e arbustos em torno da palmeira, quando acabou encontrando algo que conhecia bem: uma garrafa de vidro. Reconheceu, pelo cheiro, que era alcoólico... Logo levou a boca, mas somente uma gota escorregou, lentamente, de seu interior.

Ironia do destino; ele sempre soube que nunca deveria ter ido além dessa gota, mas de fato não conseguia impor limites para o álcool. Desde que a vida o levou para este caminho, de bar em bar, de gota a gota, garrafa em garrafa, acabou se tornando o que era hoje. Um nada... Um Zé ninguém.

Como um golpe, as lembranças de uma vida inteira agrediram sua alma, acelerando seus batimentos... Casa, família, 51. Velho 51... Velho 51... Velho 51...

Com um grito assustador, atirou a garrafa pelos ares. Ouviu somente o barulho do vidro desfeito em pedaços, atingindo uma pedra ao longe. Sentiu que junto com a garrafa, estilhaçou também seu coração.

...

As memórias voltavam à tona, a cada sobe e desce da maré. O som calmo das ondas do mar embalavam sua noite, indo e vindo em sintonia. Finalmente sentiu-se sereno, pensando em algo que tanto lhe atormentou por toda a vida. Agora sóbrio, reconhecia seu erro, prometendo a si mesmo que manteria distância daquilo que arruinou sua vida.

Agora em paz, assistiu o sereno banhar as folhas das palmeiras, até ter seu merecido repouso, estirado na areia. Por fim, duas gotas de orvalho caíram em câmera lenta, despertando em seu íntimo a certeza de que água era mesmo um bônus divino. Logo estaria roncando, de boca aberta, fazendo coro a sinfonia dos insetos locais, sem se importar com aqueles seres pequeninos que voavam em círculo sobre seu corpo maltrapilho.

Madrugada. Os insetos que voavam em bando logo encontraram sua vítima perfeita, deitada e indefesa. As picadas impiedosas logo formaram bolhas de sangue, naquele ser prestes a ser devorado pelos mosquitos. Em segundos, uma luz azul surgiu no alto do céu. Seu brilho intenso, refletido no tronco e folhas da palmeira, logo atraiu os insetos que circulavam nas redondezas.

Um grilo verde, disfarçado nas folhas da palmeira para tentar escapar de seus predadores, acabou sendo descoberto. Teve que se virar e, em segundos, acabou pousando sobre a cabeça daquele homem indefeso. Dali observou que além dos mosquitos, uma coruja também fora atraída pela luz. Seria um sinal de sorte... Para o grilo e para o homem.

...

O dilúculo seguiu seu curso, sem que o ser humano tivesse sequer despertado. Logo os primeiros raios do novo dia surgiriam no céu e luz cianótica voltaria para seu rotineiro caminho por entre as nuvens.

Ainda pouco antes do amanhecer, uma atenta formiga descobriu um novo caminho a ser trilhado. Subindo pelos pés imundos daquele ser vivo, logo alcançou o alto de sua cabeça. Ao sentir a coceira provocada pelos pés do pequeno ser, o homem levou as mãos aos cabelos, automaticamente. E acabou sentindo mais do que uma simples formiga. Por instantes, achou que havia sido tocado pelas mãos de alguém.

A luz azul se desfez, despedindo-se novamente sem enfrentar os raios solares que despertavam o novo dia.

Continua...

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