V | O Grande Baile Anual
"Ninguém se salva sozinho".
- Dostoiévski
OS DIAS PASSARAM EM UMA NÉVOA DE NERVOSISMO, eu descontava tudo nos treinamentos. Empurrei meu corpo ao limite.
Esperei
esperei
esperei...
até a oportunidade perfeita surgir.
O grande baile anual.
Enrolo o pano envolta do meu ferimento na mão. Depois de tanto tempo rasgando e remendando minha carne ela se tornou fria. Quase indolor.
— Trouxe tudo? — A curadora está posta em frente ao caldeirão.
Assinto.
— A receita está toda no caderno.
— É como uma memória desbotada, vagamente familiar. Me lembro da minha mãe me ensinar essa receita quando eu era uma menininha, duas doses e tudo está acabado. — Ela olha para minha mão ferida. — Precisa de ajuda com isso?
Nego.
Gosto do leve incomodo, isso me mantem atenta, concentrada.
Depois de algum tempo o veneno está pronto, ela coloca em um frasco. O liquido é verde e viscoso.
Adalie finalmente faz a pergunta que queria desde que coloquei os pés aqui:
— E o príncipe?
Silêncio.
Encaro o vidro cheiro de veneno por um tempo.
— Entre meu povo e ele. — Penso na garotinha. — Eu escolho meu povo.
— Você falar como se tivesse alguma obrigação com eles.
Estreito os olhos.
— Mas eu tenho. Toda vez que saio dessas muralhas eu consigo ver a esperança em seus olhos. Eles esperam que eu acabe com a guerra que atravessou décadas, que mate o rei. Então sim, eu tenho obrigação com eles.
Adalie põe a mão sob a minha cabeça e envia energia de cura e saúde, é um simples encanto que faço antes de cada guerra. Dessa vez, ela demora mais e é tudo intenso.
— Que Deus lhe abençoe com a vitória guerreira. Que as estrelas iluminem seu caminho.
Trocamos um longo olhar, um sentimento flui entre nós, algo cru e verdadeiro.
Conforme a dia transcorre o peso no meu peito aumenta.
O rei havia encomendado um traje especial para mim, ele não permitiria que eu usasse as minhas armaduras.
O longo vestido azul royal arrasta o chão. Ao colocá-lo tenho a plena consciência que parecia exatamente como as mulheres da nobreza. Essa noite eu não seria a guerreira do rei, mas sim uma mulher com um título. Ranjo os dentes.
É noite, o céu está tempestuoso, raios cortam o ar.
Sigo para o salão de festas, o lugar é enorme. Há comida e bebida para matar a fome do país inteiro.
Pego uma bebida, o peso no meu peito aumenta ao ponto de me sufocar. Viro o líquido de uma vez na boca.
Parte dos convidados estão dançando no meio do salão, enquanto os outros estão fuxicando com os olhos em mim. Talvez eu devesse arrancar a língua deles.
Um silencio recai sob o recinto. Então, eu sei que a realeza chegou.
Para onde quer que eu olhe para o rei há ouro.
— Sua majestade, o Rei Felipe II e a Vossa Alteza, o príncipe Dário. — Um aguarda anuncia a chegada e abre a porta adornada em ouro.
O rei está vestindo um longo manto vermelho, sua mão envolve um cajado dourado com a ponta redonda. A coroa sob sua cabeça possui longas linhas a rodeando como cadeias montanhosas.
Ele se acomoda no trono no posto no salão. Logo atrás vem seu único filho, o príncipe Dário.
Meu corpo enrijece.
Eu não o via desde o fatídico dia no quarto. Ele rouba meu fôlego. Dário está usando um longo terno escuro com alguns detalhes dourados.
Ele se senta ao lado do seu pai. Seus olhos nunca se cruzam com os meus.
Durante toda a noite ninguém me pede uma dança, todos me temiam, e deveriam mesmo. Seus dias de abundância estão chegando ao fim.
— Uma dança, dama? — Louis diz em um tom quase zombeteiro.
Estreito os olhos e aceito sua mão. Ele está bem na roupa da guarda italiana.
Ele passa o braço na minha cintura, rodopiamos pelo longo salão. Louis abaixa a mão algumas vezes, quase tocando minha bunda. Dou um tapa.
— Acho melhor nos afastarmos, não quero perder a cabeça. — Ele diz, olhando para trás.
Me viro.
O príncipe está furioso; os lábios pressionados em uma linha fina e as mãos fechadas em um punho descansando no braço do trono.
Ciúmes. O mesmo que senti ao descobrir que ele estava comprometido com outra pessoa.
Um serviçal se aproxima dele com uma bandeja.
Minhas mãos tremem.
Havia duas taças, a mais enfeitada em ouro era do rei, a outra do príncipe.
Apenas uma tinha o veneno.
O príncipe não tira os olhos de mim quando pega uma das taças. A errada.
Meu corpo vira pedra.
NÃO.
Seu eu fizer um movimento o rei perceberá. Não havia o que fazer, não sem me entregar no processo.
Ele aproxima a taça nos lábios.
Amor ou liberdade?
Redenção ou vingança?
Vida ou morte?
A borda da taça toca seus lábios.
Dário já havia feito sua escolha, ele escolheu o rei. No entanto, como eu poderia deixar o homem que amei durante quase toda a vida ser morto bem na minha frente?
Corro em direção ao trono e com um golpe derrubo o veneno.
A taça cai, o veneno escorre.
Eu havia o salvado,
Eu havia me sentenciado.
Eu havia falhado com meu povo.
Desvio os olhos do príncipe perplexo e encontro os do rei. Sua testa está franzida enquanto olhava para o líquido esparramado, no momento que nossos olhos se encontraram vi a verdade sendo exposta na escuridão. Ele sabe.
Tremo.
— Parece que temos uma traidora.
Os guardas erguem suas espadas e esperam uma ordem do rei.
— Eu cuido dela. — Ele me encara por um longo tempo e puxa sua espada flamejante do cajado. — Ela é minha para matar.
Pego a espada escondida no meio da costa, ela reluz sobrenaturalmente.
— E você é meu para destruir. — Falo e parto para o ataque.
O rei desvia com um movimento, não hesito em atacá-lo de novo e de novo. Nossas espadas colidem, faíscas flutuam. Minhas pernas tremem com o esforço de afastar sua espada. Sabia que não aguentaria por muito tempo.
As nossas espadas cruzadas se aproximam do meu rosto.
— Esperei por esse momento durante muito tempo. Ratinha, achou mesmo que eu não sabia que você mantinha aquecida a cama do meu filho? Nunca me satisfez a ideia de matar minha melhor soldada por um simples caso, você é maior do que isso. — Meus braços estavam prestes a ceder, a se quebrarem como um galho. — Sabia que não ia me decepcionar, a reino nunca esquecerá a mulher que quase matou o rei, ou melhor, o príncipe, seu amante.
Desmorono.
Como no meu primeiro dia nesse castelo amaldiçoado; estou de joelhos, derrotada. A ponta da sua espada pressiona meu peito desprotegido.
Meu rosto está erguido, uma grossa máscara de frieza recobria minha face.
— Pode não ser eu, pode não ser hoje; mas, seu reinado tirânico chegará ao fim da mesma forma que começou, com sangue e traição. E quando esse dia chegar saiba que estarei bebericando um bom vinho e dando uma gargalhada estrondosa que vai percorrer toda essa maldita terra.
Seus lábios se curvam para baixo em fúria.
A espada corta meu peito lentamente, atravessando meus ossos, mas antes que possa destroçar meu coração alguém intervém. Alguém não. Dário.
Uma arma está posta em suas mãos, e antes que qualquer um posso reagir, ele atira na perna do pai.
Os guardas atacam para defender seu rei, mas o príncipe puxa a cabeça do pai e pressiona a arma, jorrando uma ameaça:
— Se aproximem e o rei está morto.
Eles hesitam. Eles abaixam as armas.
Que vergonha. Riu.
— Onde está ela?! — O príncipe rosna. — Onde está minha mãe?
Tudo para.
Sua mãe.
A rainha exilada, a louca.
O príncipe nunca me falou sobre ela, mas ouvi rumores correndo como roedores pelo reino. Alguns dizem que ele matou sua esposa em um de seus surtos, diziam que ela estava possuída. Outros contam que o rei a isolou do restante do mundo.
— Se me matar nunca vai encontrá-la garoto. — Ele ri. — E se não me matar, pode dizer adeus a sua amante.
Dario não olha para mim. Ele olha para o chão, os pensamentos o envolvem tempestuosamente.
— Tudo bem. — Falo com a voz rouca. — Dário, não estou com medo. Estive esperando por esse momento desde que coloquei os pés aqui... Está tudo bem, ainda podemos nos encontrar na morte. Talvez esse não seja o nosso fim, talvez seja apenas o começo.
Uma lágrima escorre do seu olho.
Dor. Dor é tudo que vejo nele, parecia uma inundação.
Ele afrouxa o aperto em volta do pescoço do seu pai.
Dário abaixa a arma.
Com um movimento repentino o rei toma a arma dele e aponta para mim.
Dessa vez fecho os olhos.
Penso nela. Na minha mãe.
— Aí está meu sol, estivesse procurando por você.
Meu vestido florido é chacoalhado pelo vento, meus olhos grandes e inocentes admiram o rosto caloroso da mulher que me colocou no mundo.
— Você demorou pra me encontrar, achei que tinha me afastado demais. — Respondo, fungando.
— Não chore meu sol, eu sempre vou te encontrar.
Seguro meu joelho ferido.
— Está doendo.
Ela gentilmente limpa o arranhão.
— A vida faz a gente sangrar às vezes, um dia irá ter que limpá-los sozinha. — Ela se entristece. — Mas não importa quando ou onde, eu ainda estarei olhando para o meu sol.
Sorriu.
— Promete que sempre estará comigo?
— Prometo. Sempre estarei com você, mesmo quando não consiga me ver ou se lembrar de mim.
A mulher observa a criança voltar a brincar, mas seu coração ainda está cheio de aflição. Então, ela ergue o rosto ao céu e implora: por favor, cuide dela. Cuide do meu sol, o mundo irá precisar do seu calor.
O tiro nunca é disparado. Em vez disso um grito corta o ar, um grito que esperei mais de uma década para ouvir e quando soou parecia uma linda canção de ninar. A besta dentro de mim rosna, ela queria mais.
O rosto do rei perde a cor e os olhos se esbugalham. A sua espada flamejante está enterrada em seu estômago, sob as mãos do príncipe.
— Você nunca mais irá machucá-la novamente.
Ele arranca a espada para deferir o golpe final, mas eu o interrompo.
— Ele é meu.
Dário me olha em conflito apenas por um segundo e responde:
— A vingança é sua.
Sorrio.
— Diga a vadia da morte que eu dei um oi.
Dou golpe final no seu coração, mas isso não foi o suficiente para minha besta. Então, arranco sua cabeça e a observo rolar até os pés de Louis que assistia tudo com a boca escancarada, assim como o resto do salão.
Sinto uma mão no meu ombro. Dário.
— O antigo rei está morto. Se ajoelhem para o novo. — Sua voz potente ecoa por todo o salão, tirando a coroa ensanguentada de seu pai e colocando na sua. — E para sua nova rainha.
Houve silêncio. Hesitação. Entendimento. Aceitação.
Louis foi o primeiro a se abaixar, depois os outros imitaram seu gesto.
Dário me puxa ao lado, ele sentando no trono antes pertencente ao meu, eu; antes pertencente a ele.
— Tudo bem, minha rainha? — Ele murmura.
Desvio os olhos da cena diante de mim e olho para ele. O novo rei. Depois de um longo tempo consigo lhe responder.
— Sim, meu rei.
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