Vencedor

— Já vai? — Kei perguntou deitado de bruços na cama enquanto Enji vestia as roupas e o ignorava. — Tudo bem! — O moleque saltou da cama, catou a cueca box do chão e no instante seguinte a vestia em pulinhos andando para fora da sala.

Enji terminou de se vestir, checou se não esqueceu nada e as horas no relógio. Quase três da manhã. Não dormiria aqui outras vezes desde que decidiu as regras, assim que terminou o que veio fazer se levantou e se arrumou, Kei não parecia muito surpreso. Enji saiu do quarto com o telefone em mãos chamando um táxi, não confiava nesses aplicativos, encontrou um Kei de cueca sentado no tapete da sala hipnotizado pelo brilho da televisão que era a única fonte de luz do lugar.

— Vai para aonde? Floresta ou shopping abandonado? — perguntou de repente.

— Não te interessa. — Enji respondeu.

— Parque? Eu também acho bacana! — Enji percebeu que Kei as coisas ainda mais sentido dessa vez não eram direcionadas para ele, pois Kei usava grandes fones de ouvido com microfone acoplado e segurava um controle de videogame. — Mas o meu preferido é o parque de diversões. Como assim você não gosta? — Kei riu alegre, na escuridão não dava para ver as marcas de dedos que Enji carimbou no quadril do garoto.

— Abra a porta, Kei. — Enji mandou.

— Tá aberta.

— Garoto, abra a porta. — Não diria uma terceira vez. Viu Kei trancando-a assim que chegou e jogando a chave em algum lugar que não lembraria agora.

Kei acenou o dispensando sem qualquer cerimônia. Mal prestou atenção ao homem.

— Moleque. — avisou.

Kei continuava na tagarelice sem fim pelo microfone. Enji caminhou a passos largos até ele, tampou a visão para a televisão e tomou o fone de Kei jogando-o para longe.

— O que foi? Você não ia embora? — Kei ficou levemente surpreso.

— A porta. Estou trancado aqui dentro. Abra agora.

Kei estalou a língua.

— Quanto estresse. A porta tá aberta. — Se pôs de pé e foi provar o que disse. — Epa. — Sorriu sem jeito. — Tá trancada mesmo. Espera aí. — Sinalizou e foi correndo para o quarto não sem antes pegar o fone e colocá-lo no pescoço. — Pronto! — Trouxe sacudindo a chave. — Viu só? Rapidinho. — Sorriu satisfeito e abriu a porta.

— Desculpe. — Kei pôs o fone.

Enji o ignorou com desprezo, então percebeu novamente que Kei não falava com ele e sim com a outra pessoa do outro lado da linha.

— Se eu tô com alguém? — Kei ajeitou o microfone. — Não, com ninguém, bom, só um amigo, mas ele já tá indo embora. — Kei acenou amistosamente para Enji que já estava no elevador e fechou a porta assim que as do elevador se selaram.

Enji voltou para casa e dormiu sem nenhum sonho o restante da noite, acordou com o despertador como sempre para encarar o teto vazio iluminado pelos poucos raios de luz que entravam no quarto. Umedeceu os lábios, hoje era sábado, não tinha trabalho e nada para fazer. Continuou encarando o teto até a luz tomar contar do quarto atravessando as cortinas brancas, então resolveu se levantar.

Como era sábado, não teria ninguém trabalhando na casa, então estaria só o dia todo. Adiantaria algumas coisas e daria uma olhada nos concorrentes, foi o que pensou enquanto escovava os dentes, saiu do quarto de cara limpa e roupa de dormir, no meio do caminho para a cozinha ouviu alguém revirando os armários.

Enji se encostou na parede do corredor para não ser percebido e ver quem era. Xingou por não ter o celular à mão. Como o ladrão invadiu sem ser notado pelo sistema de segurança e guardas? Quantos mais estariam na casa? Se estava na cozinha procurando por coisas valiosas como prataria então não era muito inteligente. Mais um motivo para demitir todos aqueles incompetentes.

Se esgueirou e com cuidado olhou de esguelha para a cozinha e viu uma cabeça branca com algumas mechas vermelhas sob o balcão vasculhando o armário.

— Fuyumi. — Enji falou.

Sua filha se levantou surpresa num pulo:

— Pai? O que o senhor tá fazendo aqui? — Ajustou os óculos no topo do nariz.

— Hoje é sábado.

Ela pareceu confusa por um instante e então disse ainda com a mente nublada:

— O senhor não está trabalhando no sábado?

— Hoje não. — Enji nunca parou para pensar que finais de semanas eram como dias normais para ele com ou sem trabalho no escritório. — E o que você faz aqui?

— Eu… eu vim checar se tudo tá em ordem. Shoto e Natsuo não moram mais aqui então eu…

— Shoto mora aqui.

— Quis dizer que ele passa mais tempo na escola que é um internato…

— E você?

— E eu o quê? — Foi pega de surpresa.

— Está tudo certo com você? — Enji perguntou ainda parado na entrada na cozinha.

Fuyumi engoliu em seco e suas sobrancelhas se juntaram como se tentasse processar ou traduzir o que o pai falou, olhou para a distância entre os dois, pensou em dar mais um passo para trás e aumentá-la, no entanto se manteve firme e respondeu:

— Sim, está. — Foi a primeira vez que o pai perguntou algo assim para ela. Talvez para qualquer um dos filhos.

O silêncio se fez presente no ambiente tão grosso e desconfortante como se o ar tivesse solidificado. Fuyumi estava tensa demais para falar algo e Enji sentia que não tinha nada a mais para perguntar afinal não sabia nada a mais para perguntar. Estavam parados tentando não encarar um ao outro. Fuyumi era uma adulta agora com a própria vida e o emprego que Enji desaprovava, mas ela assim como o irmão rebelde nunca foram tão talentosos quanto Shoto.

— Eu soube que o senhor é o número 1 agora. — Fuyumi fulminou o pai. — Como se sente? É bom?

E nesse momento ela pareceu muito mais com Touya na última vez em que se viram. O olhar assassino e revoltado.

— O senhor finalmente conseguiu. — Voltou a ficar nervosa e desviar o olhar. — Parabéns.

Enji não respondeu. Yagi estava podre em vida, o que tinha que ser parabenizado? Não venceu por mérito próprio como sempre sonhou, nem Shoto venceria, pois até lá Yagi estaria morto faz tempo. A constatação foi um choque.

— Eu já tô indo. — Fuyumi avisou depois de longos segundos naquele clima desconfortável.

— Por que você veio? — Enji chamou de repente.

— Desculpe ter vindo…

— Não. — Enji a corrigiu. — Não foi isso o que eu disse. — Fuyumi achava que precisava de permissão para vir a própria casa? — Qual o motivo de você vir aqui?

— Eu vim ver se tava tudo certo… com o senhor.

Enji ficou um pouco atônito, nenhum dos filhos lhe dava muita importância, principalmente Shoto.

— Está tudo certo comigo. — respondeu.

— Bom… então eu vou embora… — Ajeitou a alça da bolsa no ombro.

— Não quer ficar mais um pouco? — Enji disse. — Ainda não tomei café. Podemos tomar juntos.

— Eu estou atrasada. — falou. — Mas deixei a cafeteira pronta. Eu só queria ver o memorial do Touya também, ver se tá tudo certo.

Ela estava pedindo permissão? Enji saiu da entrada da cozinha dando espaço para a filha passar.

— Obrigada. — agradeceu sem o olhar nos olhos.

Enji se serviu do café de Fuyumi e perguntaria se ela não quereria um pouco já que não tinha sentido ela fazer para não tomar. Foi até um dos vários cômodos até ver que a filha ainda estava no memorial de Touya, ela não notou sua presença, estava muito compenetrada segurando o retrato do irmão morto há anos.

— Não pude fazer muito por você… — Fuyumi sussurrou com a voz falha. Eles ainda eram praticamente crianças quando o incêndio aconteceu. A data do acidente estava próxima. — Talvez você fosse mais feliz se eu tivesse feito algo…

Enji não entrou na sala, permaneceu quieto e então ouviu:

— Acho que não tem salvação para essa família, apesar de eu querer que fosse diferente.

Enji ficou parado, a boca seca, ouviu Fuyumi pôr retrato de volta no lugar, ele se afastou da entrada para fazer parecer que chegou agora. Esqueceu totalmente do que veio fazer aqui até a filha anunciar como quem não quer incomodar:

— Estou indo.

— Fuyumi. — chamou.

— Senhor? — Olhou sobre ombro.

O que Enji falaria? Já faz muito tempo que seu irmão morreu, não se culpe? Touya foi feliz? Até ele sabia que era uma enorme mentira? Vocês só tinham 11 anos?

"Ele só tem 5 anos!" Rei gritou desesperada.

"Ele tem 5 anos!"

As lembranças martelando na mente.

— Volte quando quiser. — Enji disse ao invés de tudo o que pensou. Fuyumi nunca voltaria mesmo não importa o que falasse.

Fuyumi ficou surpresa.

— Voltarei. — Seus olhos estavam diferentes de antes.

Então ela foi embora. Enji não saiu do lugar, olhou para dentro da sala, dentro do memorial onde antes foi o quarto de Touya e ao lado foi o de Fuyumi. O garoto ainda parecia estar lá de pé com o olhar turquesa atravessado e as pequenas mãos apertadas em punho ao lado do corpo franzino trêmulo pela raiva.

"Conseguiu o que queria, pai?"

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