Última visita, primeiros passos
Todos os dias em que estava no hospital pensou muito sobre o que Kei falou e em nenhum momento seu celular apitou dando qualquer notícia dele. No entanto, a televisão não parava de falar sobre o pai dele e todos os escândalos da Comissão.
Os noticiários adoravam as suposições dos crimes que Kyo poderia ter cometido e os que ele realmente cometeu. Todos estavam curiosos revisitando cada transgressão física e digital e também perguntando qual era a relação do pai com o filho.
Enji talvez fosse uma das poucas pessoas que sabiam todos os detalhes ou supostos detalhes.
Vejam a cara do crime! Os jornais anunciavam estampando fotos de Keiichi Kyo que se perguntavam como que alguém poderia ser bonito mesmo sendo um dos maiores criminosos do país. Era isso que causava a fascinação das pessoas e da mídia. Se Keiichi Kyo fosse só um gênio da informação e criminoso perturbado ninguém se importaria muito com ele, mas como era gênio da informação, criminoso perturbado e lindo de um jeito que poucas pessoas eram, tudo ao seu redor ganhava esse ar mítico.
Para Enji, ele apenas era um maluco.
Ele fez Kei ajudar a preparar um assassinato, presenciar um e depois a tentativa de outro, embalar drogas, usar armas... e a ler e a escrever, usar um celular...
Tudo era muito irreal. Apertou a base do nariz, respirou fundo. Kei teria virado uma espécie de Dabi se seguisse os passos do pai? Enji lembrou dele atirando num dos seus captores e depois a cabeça voltava a doer. Tudo doía e Kei só fez com que doesse mais.
Não conseguia pensar.
Kyo estava na cadeia aguardando sua sentença, Kei sumiu e Dabi também.
"Bateram na sua cabeça várias vezes, pai" Fuyumi dizia.
Kei não queria seguir os mesmos rumos do pai e fez a escolha sozinho. Ele precisava realmente que mais alguém escolhesse por ele? Imaginou Kyo apontando a arma para a cabeça imatura de Kei ainda uma criança sem qualquer defesa.
Olhou para as próprias mãos. Nunca estava sem balas.
Seu peito ardeu, não tinha forças para erguer o rosto ou os ombros. Queria apenas esquecer que existia.
A porta do quarto foi aberta, Fuyumi entrou com a expressão preocupada:
— Pai?
Timidamente ela deu dois passos para o lado e um rapaz robusto usando jaqueta de motoqueiro entrou. Ele não tinha uma cara boa.
— Natsuo? — Enji ficou boquiaberto.
— Não vim falar com você. — Ele desviou o olhar, o nariz franzido e a boca apertada demonstravam dor. — Vim só acompanhar pra ver se você não faz nenhuma merda.
Ele saiu da porta dando espaço para que uma figura menor aparecesse. Ela carregava uma bolsa, tinha linhas ao redor dos olhos e seu cabelo era distintamente branco.
— Rei?
— Você não é o único responsável por essa família. — ela carregava uma determinação que Enji jamais viu.
Foi mesmo com essa mulher que casei?
— Soube do seu sequestro pela televisão. Ainda não recebi alta, mas decidi visitar mesmo assim.
— A senhora não precisava vir, mãe. — Natsuo falou.
— Eu quis vir, filho. — ela sorriu com ternura. Há anos que Enji não a via sorrir. — Nós já conversamos sobre.
— Mamãe tem algo pra falar com o senhor, pai. — Fuyumi segurava um dos braços nervosa.
— A senhora não precisa ficar só com ele se não quiser, mãe. — O filho estava sensível e delicado. Inseguro como só seria com Touya. — O que esse homem fez...
— Está tudo bem, Natsuo. Eu decidi isso. — ela insistiu tentando lhe passar segurança. — Vocês podem? — pediu para os dois.
O rosto todo de Natsuo era dor e hesitação.
— Sim. — Fuyumi falou e puxou Natsuo pelo braço.
— Qualquer coisa estou lá fora! — Natsuo falou não querendo ser guiado para longe pela irmã.
Rei respirou fundo aliviada quando eles foram embora e sentou na poltrona ao lado do leito de Enji. Fuyumi a arrastou para perto depois que Kei partiu pois assim poderiam assistir televisão juntos e compartilhar as refeições.
Rei deixou a bolsa sob o colo, Enji viu que ela não usava a aliança.
— Encontraram você em um prédio em chamas. — Ela começou. — Fuyumi e Natsuo me contaram.
Enji encarou as próprias mãos e o soro que recebia em uma das veias. Lembrou das chamas, da fumaça e de olhos azuis.
— Deve ter sido difícil pra você. É muito difícil para todos nós.
Enji não queria falar sobre isso.
— Fuyumi e Natsuo também contaram sobre Kei.
Seu coração quase parou, encarou Rei e ela estava com o mesmo rosto.
— Natsuo ficou decepcionado com ele. — Rei continuou. — Do mesmo modo que ficou decepcionado comigo por eu nunca ter me separado antes.
Enji definitivamente jamais esperou ter essa conversa com Rei ou tocar nesse assunto. Por ele, Rei jamais saberia sobre sua história com Kei. Depois do divórcio o máximo que ela e seus filhos saberiam seria que Kei era um conhecido e colega de trabalho que frequentava a sua casa com periodicidade. Não sabia nem como começar.
— Rei, me desculpe, eu fui...
— É a minha vez de falar. — Interrompeu. — Nem dá pra considerar isso uma traição. Não nos vemos há dez anos e não é sobre Kei que quero falar.
— Ele... ele...
— Ele é um pobre coitado. — Rei falou com verdadeira pena e tristeza. — Mal posso imaginar o que deve ter passado com os pais que teve.
Ela lhe encarou:
— Mas sei o que os nossos filhos passaram. E sou tão responsável quanto você. — completou.
— Rei, eu...
Ela lhe ignorou:
— Também joguei Touya e os outros de lado e me foquei só em Shouto. Touya era impossível pra eu lidar em certo momento e decidi ignorá-lo e deixar aos seus cuidados, mas você também não conseguia. Achei que conseguiria proteger o menor da sua influência, porque Natsuo ficava cada vez mais teimoso, Fuyumi mais calada e Touya mais enfiado em uma espiral de desespero.
Ela respirou fundo.
— Antes eu achava que ninguém poderia controlá-lo que havia algo de errado nele que você passou. Tentei conversar com ele várias vezes e ele não entendia. Perguntou como eu poderia me pôr no lugar dele se até eu fui comprada da minha família por você.
Enji não tinha a minha ideia de que ele havia dito isso ou sabia que era um casamento arranjado. Touya não era tão alheio ao redor quanto pensava, talvez fosse atento demais.
— Hoje vejo que ele era só um menino doente com pais irresponsáveis. Eu não conseguia mais olhar para nenhum dos meus filhos porque achava que a cada dia todos ficavam muito parecidos com você até Shouto. Queimei o rosto dele por esse motivo.
A voz dela pesava, mas não falhava.
— Minha ideia de família não era muito diferente da sua na época. Eu errei também, não é justo comigo você ser o único culpado de toda história.
Ela permanecia determinada:
— Agradeço muito que meus filhos puderam me perdoar pelos meus erros e me dar outra chance. Que Natsuo compreendeu a minha situação, que Fuyumi sempre me apoiou e Shouto ainda queira contato comigo. Toda vez que olho para o rosto dele lembro dos erros que cometi e do que não quero me tornar. É triste que esse tenha sido o meu lembrete.
Quando encontrou Shouto segurando o próprio rosto queimado no chão da cozinha e Rei gritando desesperada pelo o que fez ao mesmo tempo que acusava os filhos de serem como ele, Enji soube que ela estava doente e precisava ser separada antes que cometesse algo a mais ou pior contra eles.
— Eu nunca fui um bom marido ou pai.
— E eu devia ter me separado de você justamente por esses motivos, mas ninguém da minha família me apoiaria dependiam demais do seu dinheiro e esse é mais um motivo para eu ter me separado a todo custo. Achei que se aguentasse até eles crescerem tudo que de ruim desapareceria. Nada passou, tudo acumulou e eu queimei o rosto do nosso filho.
— Um divórcio naquela época seria péssimo... — Enji falou lembrando do horror judicial que seu eu de anos atrás inflingiria a Rei.
— É, você jamais deixaria eu levá-lo embora.
— Shouto quereria ir com você, ele já me odiava nessa época.
— Estou falando de Touya, Enji.
Ele não soube por que sentiu o impacto das palavras dela sobre si como um murro.
— Você jamais permitia qualquer coisa relacionada a ele que lhe desagradasse. Eu nunca teria conseguido o levar comigo. Touya sempre esteve fora de questão. A doença dele mexeu muito com a sua cabeça.
Era como se Enji pudesse ler o diagnóstico bem na sua frente de novo. Touya sentado no seu colo brincando com as mãos na sala do médico e um vácuo profundo se abrindo no seu peito.
— Ele era doente... ia morrer antes dos vinte... todos os médicos falaram...
"É preciso que o senhor se acalme e entenda." Ouvia o médico repetir.
"O que foi, papai?" Touya ergueu o rosto perguntando preocupado. Ele era tão pequeno, uma coisinha mirrada com grandes olhos turquesa que Enji adorava ver quando chegava do trabalho.
Ele não gostava de lembrar disso, não gostava de falar disso e nem de pensar nisso.
— Mas ele morreu antes mesmo, não foi?
Ouviu alguém fungar e uma lágrima brilhar, achou que fosse Rei, mas ao olhar para ela viu que era ele quem chorava.
— Meu filho. — As lágrimas não paravam de escorrer pelos seus olhos, sentia-se estúpido afogando-se no próprio choro enquanto Rei que passou por muito mais continuava ali forte. — Eu quero meu filho de volta. — Era só o que conseguia dizer entre soluços. — Eu achei que ele voltaria... mas não...
— Não dá para voltar no passado. — ela falou.
— Se Touya tivesse sobrevivido ao incêndio...
— Eu penso nisso. — Rei confessou. — Não conseguiram identificar as cinzas das vítimas, só a contagem. Mas então por que não voltou pra casa? Isso quereria dizer algo. Mas a contagem de vítimas estava certa e Touya não saiu do prédio.
Algo apertou forte o peito de Enji. Sentia que sufocaria. As lágrimas embaçavam a visão.
— Eu devia ter insistido pra ele ficar na escola especial. — Rei falou. — Tinha tanto a guarda quanto você, mas só deixei desenrolar porque estava muito cansada de lidar com o trem descarrilhado que era a nossa família.
Enji limpou o nariz e esfregou as lágrimas para longe. Mas não adiantava porque elas voltavam.
— Ainda é a nossa família. — Rei falou. — Espero que todos nós possamos nos resolver. — Ela abriu a mão na bolsa e tirou um papel de dentro. — E esse é um dos passos.
Ela colocou o papel sobre o colo de Enji. Ele viu o nome do documento e a assinatura de Rei ao lado da sua. Era o divórcio completamente assinado.
— Eu mesma quis trazer. — Não havia nenhuma amargura.
— Um dia tudo ira se resolver, Enji, mas isso é um trabalho constante. Os psicólogos e Shouto me ensinaram a ver isso. — Ela estava satisfeita. — Incrível pensar que o meu filho mais novo é o meu herói. É bom que você tenha começado a entender também fora do trabalho.
Ela levantou da poltrona.
— Seus filhos estão torcendo por você, bom a maioria. — confessou. — E tenho certeza que o garoto que você gosta também. Não os deixe esperando.
— Rei... — Enji não sabia o que dizer, o papel do divórcio pairava em seu colo.
A ex-esposa se afastou e disse:
— Não temos que cometer os mesmos atos porque não sabemos como agir fora do ciclo. Já aprendemos muito com os erros do passado. Faça seu melhor, Enji.
Ela saiu tranquila do quarto e para sua nova vida. Natsuo abraçou a mãe e a porta que estava encostada finalmente foi fechada.
Deu um trabalhão postar esse capítulo. O que acharam? Deixem seus comentários, críticas, teorias e elogios.
Até logo!
Bjinhus!
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