Memorial

— Eu não pago vocês para cometerem esses tipos de erros! — Enji berrava ao telefone celular enquanto a governanta abria a porta da sala para ele. — Tem ideia que eu tive que cancelar uma reunião para resolver esse problema estúpido?! Acha que eu não tenho mais o que fazer?! Quem foi o responsável por isso? É uma ordem!

— Senhor… — a velha governanta tentou chamá-lo cautelosamente.

Enji mal percebeu o gesto dela e continuou caminhando pelos corredores ouvindo a voz patética daquele incompetente inventando desculpas. Então o empresário parou ao ouvir um fósforo ser riscado:

— É ridículo isso aqui. — Natsuo falou atrás de uma porta entreaberta: o quarto de Touya e seu altar. — Até parece que ele se importa.

— Natsuo… — Fuyumi repreendeu naquele tom pacificador.

— Ele nem acende incenso para o Touya. E ele mora aqui!

— É difícil, você sabe. Eu acho que ele nem entra aqui.

— Que novidade. — Natsuo acendia os incensos.

— Não, eu acho que ele não consegue entrar aqui… — Fuyumi falou devagar e num tom mais baixo.

— Pelo menos isso. Touya não merece ouvir mais baboseiras dele.

— Ele não fala de Touya.

— Claro que não. Acho que Shouto nem lembra direito dele.

— A gente não fala muito dele também…

Natsuo apagou o fósforo e fitou a irmã mais velha ao tocá-la nos ombros. Continuava super protetor como sempre.

— Nada disso foi culpa sua, Fuyumi. Nós éramos crianças. Tudo o que aconteceu foi culpa daquele homem, se alguém tem que se sentir culpado de alguma coisa é só ele e mais ninguém.

Fuyumi desviou o olhar e apertou o braço encolhendo a postura:

— Você não acha isso de verdade.

— Eu acho que — Natsuo soltou os ombros da irmã —… eu sempre vou ficar mal e me sentir horrível por tudo, mas não tinha o que a gente fazer… só podíamos tentar apoiar uns aos outros.

— A gente devia ter contado para ele sobre o problema de Touya.

— O cretino sabia.

— Mas…

A voz de Natsuo embargava aos poucos:

— Ele sabia, Fuyumi… ele sabia que a Touya não tava bem e ele não tava nem aí.

Enji não mais prestava atenção no que seu funcionário falava do lado oposto da linha. A ligação caiu há uns bons minutos.

— Então quando Touya não servia mais para o seu propósito, ele o jogou no lixo e pegou Shouto para ser a nova cobaia. É um cretino.

— Ele é o nosso pai.

— O que não impediu ele de ser um cretino. Não sei porque você tá tentando ainda.

— Ele tá tentando mesmo.

— Mentira. Ele quer alguma coisa.

— Talvez com a idade ele esteja repensando suas atitudes verdadeiramente. Quando ele envelhecer só terá a gente.

— Não eu.

— Natsuo…

— Fuyumi…

— Não tem um jeito de você o perdoar? Ou tentar conviver?

Natsuo se ajoelhou sobre a almofada junto com a irmã, juntou as mãos na frente do corpo e antes de começar a prece disse:

— Nem se Touya ressuscitasse.

Fizeram as preces, Natsuo se levantou recolhendo o capacete e abraçou a irmã. Ela perguntou:

— Você não vem mesmo para o aniversário da morte de Touya? Não acho que ele vá ficar no caminho.

— Não quero ver ele. Eu só vim hoje porque você disse que ele não estaria aqui o dia todo. Vou rezar para Touya de casa como eu faço todos os anos.

— Tudo bem… te vejo na sexta-feira?

— Sim. — Natsuo ficou se animou. — Melhor eu ir embora antes que ele apareça.

— Ele não vai vir agora.

Natsuo apenas observou a irmã daquele jeito que ela interpretava corretamente há muito tempo, mas raramente falavam sobre. A leve tensão se dissipou e eles se abraçaram:

— Até sexta. — Fuyumi se despediu.

— Até sexta. — Natsuo concordou fechando os olhos para aproveitar melhor o abraço da irmã. — Vou levar algo para comer.

Enji saiu do corredor antes que o filho o avistasse, queria falar com Natsuo… mas o último encontro entre os dois não foi nenhum pouco bom. O homem buscou os documentos na casa e retornou ao trabalho sem que os filhos o notassem. Quando voltou para para casa, Fuyumi já havia partido, o que fez com que Enji se trancasse novamente no escritório, porém ele não conseguia trabalhar.

Resolveu por hoje deixar de lado e jantar, a casa permanecia vazia e silenciosa, as refeições apenas acentuavam o eco do vazio. Todos os empregados foram dispensados por hoje e só restava a Enji seu bento frio. Se fosse mês passado nessa mesma hora, estaria com Kei, porém Enji foi decisivo em não mais vê-lo. Nem queria se dar ao luxo de pensar no que o loiro estaria fazendo agora, provavelmente seguindo a própria vida. Tudo o que restava ao empresário era a refeição girando no microondas.

Comeu, lavou a louça e se pôs andar pela casa quieta. Antes estava tão obcecado por seu sonho que não se deu conta de quanto tudo aquilo era depressivo. De alguma forma parou em frente ao quarto de Touya. Fuyumi tinha razão, ele não conseguia entrar. Ele não conseguia entrar desde que recebeu a ligação:

“Senhor Todoroki Enji, houve um acidente, infelizmente seu filho estava entre as vítimas…”

A voz da bombeira ainda era nítida em seus ouvidos, sempre seria. Enji poderia esquecer todos os tons e notas do mundo, mesmo assim, a dessa mulher jamais se apagaria da sua memória e jamais se confundiria aos seus ouvidos. Seu coração disparou como uma marreta contra as costelas, as mãos tremiam e ele não respondeu a nada do que a mulher dizia, ficou parado em estado catatônico. Não acreditou em nada do que ela disse, não acreditou quando chegou ao prédio em chamas engolindo o céu em fumaça espessa preta, não acreditou no caminhão dos bombeiros e em todas aquelas sirenes, não acreditou nos sobreviventes com as máscaras de oxigênio enquanto seu filho ainda estava dentro do prédio metade desabado.

É o meu filho! Ele tá lá dentro! Ele ainda tá lá dentro! Tenho que salvar ele! Ele é o meu filho! MEU FILHO! TOUYA!

A polícia e os bombeiros o seguravam com força, todos o olhando com aquelas caras de pena! Por que faziam isso ao invés de salvar seu filho?! Por que ficavam o olhando ao invés de irem atrás de Touya?! Não sabiam que Touya tinha a saúde fraca e toda aquela fumaça lhe faria mal? Tinham que tirar Touya de lá antes que algo pior acontecesse!

“Senhor, o prédio desabou em chamas… só conseguimos resgatar algumas pessoas do térreo antes disso… a probabilidade de sobrevivência é quase nula…”

Seu Touya estava ali em algum lugar entre os escombros em chamas com a mão esticada esperando por alguém resgatá-lo. Sabia que seu menino estava ali. Por que não deixavam que ele fosse salvá-lo? Touya devia estar com medo, ele devia estar ali esperando por alguém…

TOUYA! TOUYA! TOUYA! TOUYA!

“Alguém imobilize esse homem!”

Tudo o que se passou depois foi um flash, Enji foi jogado ao chão e contido, outras pessoas desesperadas tentavam entrar no prédio que desabava aos poucos, elas também foram contidas. Tudo cheirava a fumaça. Por que não iam atrás de Touya? Por que não o deixavam ir atrás do filho?

Então, dias depois lhe trouxeram um laudo igual a todos os outros. Encontraram resíduos carbonizados de corpos em lugares específicos, mas o fogo foi tão intenso que não conseguiram identificar nem por exames quem era quem. Mas a contagem era correta. Enji ficou uma hora encarando o atestado de óbito, queria ter lágrimas para chorar, mas o incêndio secou todas elas. Ainda lembrava do calor das chamas lambendo seu rosto. Seu filho gritava de algum lugar daqueles escombros em brasa. O concreto armado enterrou seu corpo e os vergalhões furaram-no para depois derretê-lo.

Touya estava morto.

Mas o coração de Enji não acreditava. Mandou procurarem o filho entre as cinzas, nas filmagens das câmeras de segurança dos locais próximos, em testemunhos dos sobreviventes… tudo dava em nada, nada e mais nada.

Touya estava morto.

Enji nunca aceitou. Não era crível, o menino era muito persistente, perspicaz, devia ter escapado. Sobrevivido.

“Chega disso, Enji.” Rei falou um dia quase três meses depois do recebimento do registro de óbito. “Touya se foi”.

Ela junto com Fuyumi organizaram e separaram os objetos de Touya para doação. Natsuo não conseguiu ajudar, ele não parava de chorar.

Enji ficou furioso pois e se Touya voltar onde vão estar as coisas dele?

— Até parece que você se importa. — Natsuo desprezou entre as lágrimas.

CLAP!

— Pai! — Fuyumi gritou desesperada.

— Natsuo! — Rei correu para proteger o menino que segurava a bochecha machucada com ambas as mãos ajoelhado no chão. — Ele só está triste!

— Ele não liga pra nenhum de nós! Ele nunca se importou com Touya! Natsuo morreu e agora ele quer fingir que sim!

Enji deu um passo na direção do menino revoltado. Todo o seu corpo estava tensionado.

— Pelo amor de Deus, Enji! Ele é só um menino!

— Pai! Pai! — Ambas tentavam pará-lo de avançar.

— Touya morreu por sua culpa! Ele disse que não queria mais ir para lá! — Natsuo cuspia as palavras com nada mais do que puro ódio nos braços da mãe. — Se você não tivesse forçado ele a ir. Ele ainda estaria aqui! Você tá bravo porque sabe que é verdade! Tá feliz que ele morreu? Que ele vai ser menos um fracasso pra você?!

— Enji! — Rei implorava no desespero abraçando o filho fortemente.

— Pai! Pai! — Fuyumi tentava inutilmente o puxar para trás. — Por favor!

— Deixa ele vir! — Natsuo se debatia no abraço da mãe. — Por que você não me mata também?! Por que você não mata todo mundo dessa casa já que a vida de todos é um inferno?! Hein?! Me mata, droga! Me mata! Assim não vou ter que olhar mais pra sua cara! Me mata! — Natsuo colapsou chorando e continuou gritando sufocado no peito da mãe.

Rei também chorava dizendo ao filho que tudo ficaria bem, Fuyumi chorava tentando puxar o pai para trás e no final lágrimas também saíam dos olhos de Enji. Ele deu a volta para que ninguém visse seu rosto e foi a última vez que entrou no quarto.

Shouto observava tudo da porta sem entender bem o que acontecia, ele já tinha sido separado dos irmãos. Ele nunca conheceu o mais velho direito, talvez fosse melhor, Enji pensou, desse jeito não sofreria.

Fizeram o memorial para Touya, Natsuo nas primeiras noites dormia enrolado aos pés dele. Fuyumi cuidava dos incensos todo dia e Rei aparecia lá regulamente. Enji nunca fez nenhuma homenagem e odiava a foto que escolheram para o retrato: Touya com o cabelo já completamente branco no uniforme da escola. Não havia nenhuma emoção no seu rosto. Os três escolheram ela. Enji preferiria uma dele sorrindo determinado e empolgado, contudo essa seria muito antiga pois há anos Touya não mais sorria.

Como Natsuo pôde dizer que Enji não se importava com Touya? Como ele pôde falar simples assim? Como se só ele sentisse falta do mais velho? Enji não era família dele também? Por que Natsuo se comportava como se só ele estivesse sofrendo? Eu não sou o pai dele? Ele não é o meu filho também? Como eu poderia estar feliz com a morte do meu filho? Que pai quer isso?

Eu fui o primeiro a pegar ele no colo quando nasceu. Enji lembrava do quão ele era pequenininho, cabia na palma de sua mão e tinha medo de segurá-lo forte demais e machucá-lo sem querer. Ele era tão frágil e eu estava tão feliz…

— Ele tem seus olhos, Enji. — Rei disse sorrindo. — Ele é todo você.

Enji sorriu para o recém-nascido e por um instante pareceu que ele sorriu de volta.

— Ele parece com você. Só o cabelo e os olhos são meus.

— Qual vai ser o nome dele? — Rei perguntou no quarto do hospital enquanto Enji ainda encarava mesmerizado o filho em seu colo. Eu fiz isso… eu fiz ele e ele é lindo.

— Touya. — Enji disse como uma saudação. — O nome dele é Touya.

Todas aquelas lembranças o inundavam parado na porta do quarto sempre aberta. Podia ver o seu menino parado na frente do memorial, os braços enfaixados e o rosto machucado. A doença deixando-o fraco. Nos seus sonhos nos primeiros dias depois do acidente às vezes escutava-o gritando consumido pelo fogo. Pai! Pai! Pai! Não me deixe aqui! Isso quando conseguia dormir. Nada daquilo foi justo. Não é correto os filhos morrerem antes dos pais. Não é correto os pais verem os filhos morrerem.

Touya era o primogênito e o seu preferido. Ele era inteligente, engraçado e gentil. Então sua saúde enfraqueceu abruptamente, por ela ser fraca Enji queria que ele fosse forte. Queria que Touya fosse o que ele próprio não era, mas no final tudo o que o menino se tornou foi uma criança infeliz que morreu cedo demais.

Enji não conseguia entrar no quarto assombrado, não importava a força e perseverança que colocava nas pernas, elas permaneciam fincadas ali tão imóveis quanto os vergalhões que desabaram sobre seu menino.

— Touya… — Enji sussurrou o nome que não dizia há anos. Não tinha coragem de perguntar “será que algum dia você vai me perdoar?” Nunca teria a resposta e não era merecedor dela.

Se ele estivesse vivo, seria um jovem homem e trabalharia consigo. Gostava de imaginar seus subordinados como se fossem seu filho, todos tinham uma idade aproximada e um perfil semelhante. Touya andaria de lá para cá e resolveria tudo com poucos gestos e eficiente. Touya seria seu braço direito em tudo como antes queria. Natsuo não o odiaria tanto e quem sabe as coisas não estariam tão ruins. Ou tudo estaria muito pior, Touya o odiaria muito mais, porém estaria vivo. Odiando-o, mas respirando.

Enji não conseguia entrar no quarto, seu menino estava olhando-o do batente da porta, os olhos como fogos fátuos e a cabeça branca erguida como jamais fez em vida depois que Enji decidiu que ele não era o herdeiro adequado. Os mortos não têm mais medo de nada. Enji fungou tentando retroceder as lágrimas das bochechas. Enji esticou a mão trêmula para o filho.

— Eu não consigo.

Touya o fitou do mesmo modo que Enji o fitava quando tentava fazer algo e fracassava. Eu não esperava diferente, mas isso pouco importa.

Enji desabou de joelhos cobrindo o rosto chorando.

É, gente. O capítulo hoje foi pesado.
O que acharam? Deixem suas críticas comentários, elogios e teorias.
Obrigada por lerem!
Bjinhus!


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