Contagem

— Você sabe contar?

Keigo acenou que sim.

— Até quanto?

— Cem. — Keigo falou baixinho.

— Você vai fazer o seguinte — Kyo abriu a sacola plástica cheia de comprimidos e a sacola com sacolinhas menores na mesa — Colocar três desses — Apontou para os comprimidos — em um desse — para as sacolinhas lacráveis.

Keigo olhou para as duas grandes sacolas plásticas na mesa e seus olhos foram direto para os comprimidos. Eram os remédios da mãe!

— Você não é um bebê viciado, é? — Kyo perguntou desconfiado.

Keigo acenou que não e abaixou a cabeça envergonhado.

— Não coloque nada disso na boca ou cheire. Não quero pagar Satoshi. Ouviu?

O menino concordou.

Kyo pegou o computador e disse:

— Se você terminar hoje, vamos comprar frango frito.

Os olhos do menino brilharam de empolgação e até sua aura mudou. Kyo achou engraçada a animação do pirralho. Keigo começou a separar e envelopar os comprimidos.

Keigo colocava três na sacolinha, fechava e empurrava para o montinho pronto. Era bem fácil. O que realmente cansava era a quantidade de comprimidos, todos igualzinhos aos que a mãe usava, às vezes ela se trancava no banheiro e passava um bom tempo lá. Keigo se perguntou se ela levou os remédios com ela, e se não, se ela voltaria agora que tinham uma sacola repleta deles. Talvez só para pegar a sacola, o menino concluiu.

Ele não queria que Kyo fosse embora também, apesar de só ficar no computador. Keigo não tinha ninguém para brincar além do Endeavor-san, mas não incomodaria o moço que sempre estava ocupado no computador ou dormindo. Aprendeu que não deveria interromper o trabalho ou sono dos adultos.

Os comprimidos na sacola diminuíam enquanto a sede de Keigo aumentava, ele desceu da cadeira e abriu a geladeira.

— Lava as mãos antes de comer. — Kyo falou sem desviar o olhar da tela.

Keigo fez o que lhe foi dito e bebeu um pouco de água antes de voltar ao empacotamento. Kyo finalmente largou o notebook:

— Me acorda quando terminar. — Espreguiçou-se e foi para o quarto dormir. Pela luz que entrava nas frestas da porta já devia ser sete da manhã. Keigo sempre dormia e acordava cedo por causa do trabalho da mãe.

A pilha de pacotinhos crescia mais e mais até que parou de crescer e Keigo percebeu que havia acabado. Seu estômago roncou, já deviam estar no meio da tarde. Pegou Endeavor-san e foi para o quarto acordar Kyo.

Kyo dormia de peito para cima em um canto da cama e com a mão embaixo do travesseiro.

— Kyo-san. — Keigo chamou baixinho. O homem abriu os olhos tão rápido que fez Keigo quase pular para trás.

— Ah, é você. — Kyo ainda tinha o rosto sonolento. — Acabou? — Virou para ele.

Keigo confirmou.

Kyo sentou na cama e sua mão saiu debaixo do travesseiro, Keigo assustou-se ainda mais e recuou dois passos.

— Nunca viu? — A arma cintilava na mão dele. — Tá com medo? — Sorriu. — Eu nem apontei ela pra você.

Kyo levantou e guardou a pistola preta e prateada na parte de trás da calça, Keigo notou que era como se ela nem estivesse lá.

— Vamos ver o seu trabalho. — Kyo foi até a sala e o menino lhe seguiu como um pintinho segue a galinha.

Kyo jogou a sacola vazia de comprimidos fora e empurrou com o braço todos os pacotinhos dentro de uma nova sacola.

— Satoshi vai parar de encher o saco por um tempo. — Amarrou a sacola e jogou-a no sofá. — Bom trabalho, Keigo. Que tal a recompensa agora?

Eles saíram do prédio, foi a segunda vez de Keigo no mundo externo. Tudo continuava movimentado e colorido.

Seguiram por um caminho diferente do anterior e chegaram em uma loja apertada com algumas mesas e cadeiras e ao fundo um moço com boné engraçado atrás do balcão.

— Um balde de frango frito para a viagem. — Kyo enfiou a mão no bolso e por um instante Keigo achou que ele puxaria a arma, mas era somente o dinheiro.

O pedido não demorou e Keigo ficou exultante quando Kyo lhe deu o balde para carregar de volta à casa. Ao chegarem no conjunto de apartamentos, Keigo teve outra surpresa: várias crianças brincando no pátio. Ficou parado catatônico até Kyo se afastar para subir as escadas, o menino logo acelerou o passo.

— Gostou? — Kyo terminava de comer uma coxinha, ele não parecia gostar tanto de frango frito quando ele. Keigo não entendia o porquê, comeria todos os dias se pudesse!

Kyo espreguiçou-se, jogou da mesa mesmo o osso no lixo e levantou para voltar a se deitar na cama. Keigo guardou o resto do frango na geladeira e lavou boca e mãos. Será que Kyo já estava dormindo?

O menino espiou pelo arco do quarto e viu que Kyo dormia na mesma posição, na ponta dos dedos caminhou para o banheiro, fechou a porta lentamente e subiu na pia para observar pela janela do mezanino.

As crianças riam e se perseguiam em uma espécie de jogo que Keigo não demorou a entender. Endeavor-san também observava com ele. As crianças pulavam e brincavam até cansar, de vez em quando discutiam sobre regras que Keigo não conseguia ouvir daquela altura e distância. Queria entender melhor.

— O que tá fazendo? — Kyo abriu a porta do banheiro e por pouco o menino não caiu de susto.

Keigo abaixou a cabeça e desceu da pia, Kyo continuou parado na porta, o rosto inchado de sono e os cabelos bagunçados.

— Eu quero usar o banheiro. Sai. — Kyo indicou com o queixo.

O menino saiu e foi para a sua parede, esperou Kyo vir e brigar com ele, mas não aconteceu. Ele ficou no quarto até anoitecer, quando saiu, Keigo se levantou do chão ainda esperando.

— O que foi? — Kyo perguntou confuso.

— Desculpa…

— Pelo o que? Mexeu nas minhas coisas?

O menino fez que não.

Kyo abriu a geladeira e pegou outra torta doce.

— Esquece tudo o que a tua mãe te falou. — Kyo se largou no sofá. — Ela deve ter morrido de overdose agora ou engasgada no próprio vômito. Esquece ela.

Keigo não gostava quando Kyo falava essas coisas, voltou a deitar no lençol chateado.

— É melhor você se acostumar logo com essa ideia porque é o que vai acontecer. — Comeu mais uma garfada. — Tem que se livrar de gente inútil.

O menino se encolheu ainda mais.

— Você tem que ser útil, Keigo. Foi por isso que Tomie te largou. Sabe disso.

— Hum… — Keigo abraçou mais Endeavor-san.

Kyo ligou a televisão e ficou assistindo. A campainha tocou.

— Abre. É Satoshi.

Keigo atendeu a porta. Satoshi carregava um travesseiro e um futon sob o braço. Sorriu ao ver o menino, Keigo correu para baixo do sofá.

— Por que você não gosta de mim?! — o gângster perguntou indignado.

Os olhos dourados brilharam na escuridão do sofá.

— Eu trouxe outra coisa para você. — Satoshi foi até o lençol de Keigo e deixou o futon e o travesseiro lá.

O menino saiu devagar do sofá,  engatinhou até o futon e sem tirar os olhos de Satoshi. Estava pronto para fugir, mas o gângster foi mais rápido e agarrou o menino pela cintura. Keigo gritou sem soltar som e tentou bater nos braços do homem.

De repente, o menino foi lançado para cima. Seus olhos esbugalharam. Iria cair! Porém, Satoshi o segurou de volta e riu. O coração do menino palpitava no peito pequeno.

— Gostou? — Satoshi riu ainda segurando o menino no ar. Jogou-o de novo.

Keigo não ficou tão assustado dessa vez e a sensação de ser solto no ar não era ruim. Abriu os braços e Satoshi o pegou firme e deram um rodopio. Satoshi lançou ele mais uma vez no ar. Dessa vez Keigo riu, alto melódico e como uma criança.

— Olha só você! Sabe rir agora! — Satoshi girou com ele no ar.

— Que cena linda. — Kyo falou jogando fora a embalagem da torta.

— Ele tem que brincar com outras crianças. — Jogou mais algumas vezes. Keigo ria.

— Você é da assistência social agora?

— Ele é uma criança, não um cachorro. — Satoshi encarou Kyo que lavava despreocupado a louça.

— Ele parece mais um passarinho para mim. — Kyo respondeu enxugando as mãos na calça. — Sua droga tá separada.

Satoshi abraçou o menino e deixou o cavanhaque pinicá-lo, Keigo se afastou com as mãos no peito do homem, então de repente olhou para o cavanhaque e ficou encantado. Enfiou os dedinhos lá e puxou. Queria ter um igual.

— Que gracinha você é, garoto. — Satoshi riu, tirou os óculos e os colocou em Keigo.

— Parece um tarado. — Kyo disse.

Satoshi colocou o menino no chão e ele saiu correndo para o futon com os óculos no rosto.

— Cala a porra da boca, seu merda. — Satoshi falou. — Separou como eu falei?

— Claro. Você separou, não foi, Keigo?

O menino meneou que sim enquanto colocava os óculos em Endeavor-san e brincava com ele.

— Mandei você. — Irritado.

— Tenho mais o que fazer e ele achou divertido. — Kyo pegou a sacola e deu para Satoshi.

Keigo fez que sim com a cabeça e mostrou o número três com os dedos para Satoshi.

— Amanhã os outros arquivos estarão prontos, é só vir pegar.

— Você é um merda. Mandei você.

— Tanto faz. Tá feito.

— Amanhã é você que vai me entregar os arquivos. — Satoshi falou estressado.

Kyo apenas sentou no sofá vendo o menino brincar animado com o boneco:

— Keigo, devolva os óculos do yakuza.

Demorou, mas chegou!
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Até logo!
Bjinhus!

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