Capitulo Cinco

Arthur Kaymin:

Sila me arrastou sem cerimônia para onde iríamos comer, e foi só então que percebi o quão longe minha imaginação estava da realidade. Eu esperava um grande e sombrio salão de banquetes, com velas tremeluzindo em castiçais de ossos e um trono imponente no fundo, onde o Lorde Demônio beberia vinho de um cálice feito do crânio de um herói derrotado. Mas não.

No lugar disso, havia uma mesa absurdamente longa, como se tivessem juntado várias mesas de casamento até o infinito. Criaturas bizarras se sentavam lado a lado, suas enormes asas se fechando sobre os corpos como capas vivas. Algumas delas pareciam ocupadas demais para notar minha presença; outras, no entanto, viraram suas cabeças — algumas até demais, desafiando as leis da anatomia — para me encarar com expressões que variavam entre a curiosidade e a fome.

E então, bem diante dos meus olhos, algo que imaginei ser um pedaço de carne foi arrancado por um demônio de aparência robusta. Só que... não era exatamente um pedaço de carne. Era uma parte do tronco de outro demônio, que simplesmente pegou o próprio pedaço de volta, pressionou contra si e — pasmem — a carne se fundiu como se nunca tivesse sido removida. Para completar o espetáculo, ele ainda piscou para mim com olhos verde-musgo, como se dissesse: Relaxa, cara. Isso é só a hora do almoço por aqui.

Devo admitir, o Lorde Demônio tinha um jeito um tanto... peculiar de lidar com seus subordinados. Não havia gritos, ameaças ou aquela formalidade rígida que os humanos adoram ostentar. Aqui, a hierarquia parecia algo fluido, menos baseado no medo e mais em uma aceitação mútua de que, se alguém tivesse poder suficiente, poderia ditar suas próprias regras.

Se fosse no castelo de Trengis, onde meu pai e minha madrasta governavam... Bom, seria um outro tipo de inferno. Um inferno bem mais polido, repleto de sorrisos falsos e jogos de poder silenciosos.

Lembro-me bem — ou melhor, Arthur lembrava — de que ele evitava a sala de jantar como quem foge de um abismo sem fundo. Nunca queria cruzar o caminho do rei ou da rainha, e com razão. Ele sabia que sua existência era um incômodo, um lembrete inconveniente de que seu pai tinha cometido o "erro" de conceber uma criança ilegítima. Não era como se ele tivesse pedido para nascer.

Mas ali, sentado naquela mesa cheia de demônios que mastigavam partes do próprio corpo sem se incomodar, percebi que talvez o inferno tivesse maneiras mais honestas de tratar seus habitantes do que a nobreza humana.

Toda vez que Arthur entrava naquela sala de jantar, o ambiente se tornava pesado, sufocante. A rainha mantinha uma expressão de indiferença tão impecável que parecia esculpida em mármore. Seu olhar passava por ele como se fosse um objeto sem importância, algo que poderia muito bem ser ignorado. Seu pai? O mesmo. Um fantasma de um pai, presente apenas em carne, mas ausente em qualquer coisa que realmente importasse. 

Mas era o meio-irmão que tornava tudo pior. Havia algo cruel na forma como seus olhos se estreitavam ao vê-lo. Não era ódio, nem desprezo comum. Era o olhar de alguém que via um inseto rastejante e se perguntava se valia a pena esmagá-lo ou simplesmente ignorá-lo. 

Senti minha mandíbula se apertar, um gosto amargo subindo pela garganta. Essas memórias não eram minhas, mas, ao mesmo tempo, eram. Eu não as vivi, mas as sentia como se fossem marcas profundas cravadas dentro de mim. Como se alguém estivesse enfiando uma faca na minha alma e girando devagar, só para ter certeza de que eu sentiria cada centímetro da dor. 

Meus olhos começaram a arder, e um nó se formou na minha garganta antes que eu pudesse impedir. 

— Tio Arthur, você tá bem? — A voz de Silas me puxou de volta. 

Pisquei algumas vezes, afastando as memórias como quem tenta enxotar um pesadelo que insiste em pairar sobre os ombros. 

— Sim, estou bem — respondi, forçando um sorriso, mesmo que algo dentro de mim estivesse longe de estar inteiro.

Olhei para os pratos à minha frente, observando com um misto de surpresa e alívio enquanto a comida surgia magicamente. Nenhum pedaço de carne demoníaca, nenhum membro regenerando no prato ao lado—apenas comida mundana, simples e reconfortante, igual à que eu estava acostumado. Silas também recebeu o mesmo tipo de refeição, e, ao perceber isso, ele sorriu satisfeito. 

— Tio, eu gosto de ter outra pessoa que coma igual a mim — disse ele, com uma felicidade genuína que me pegou desprevenido. 

Franzi a testa, estranhando sua escolha de palavras. 

— O que quer dizer com isso? — perguntei, pegando os talheres, mas antes que ele pudesse responder, um som estrondoso cortou o ar. 

As trombetas soaram, ecoando pelo grande salão, e as portas se abriram com um impacto que fez o chão tremer. Uma onda de silêncio se espalhou pela mesa conforme uma figura imponente cruzava a entrada. Lorde Thales avançou com passos firmes, sua presença esmagadora tornando impossível ignorá-lo. O ar ao seu redor parecia vibrar com poder bruto, e mesmo os demônios que estavam à mesa endireitaram suas posturas. 

Ele caminhou até a cadeira no centro da mesa, imponente como um monarca que retorna ao seu trono. Mas antes de se sentar, sua atenção desviou. Seus olhos pousaram sobre Silas, que, alheio à tensão do momento, continuava comendo feliz da vida ao meu lado. 

Então, o olhar do Lorde caiu sobre mim. 

O leve franzir de sua testa não passou despercebido. 

— Silas, meu filho, venha se sentar mais perto de mim — ele disse, sua voz carregada de um tom que parecia mais uma ordem do que um convite. 

A resposta de Silas veio rápida, infantil e completamente despreocupada: 

— Não, obrigado, papai. 

Um silêncio pesado pairou sobre a mesa. 

Eu, que já achava estar testemunhando um momento tenso, agora me perguntava se havia acabado de presenciar um evento histórico: um demônio desafiando seu próprio pai... e o fazendo do jeito mais casual possível.

Os olhos do Lorde Thales caíram sobre mim com toda a intensidade de uma tempestade prestes a desabar. Era como ser atingido por uma parede de pura fúria. O brilho raivoso em seu olhar deixava claro que, em sua mente, toda essa situação tinha um único culpado: eu. A péssima influência, o intruso, o responsável por corromper seu filho com hábitos inadequados e, pior, recusando-se a demonstrar a devida reverência ao todo-poderoso Lorde Demônio.

Eu engoli em seco, me preparando para o que quer que viesse a seguir.

Mas... preciso admitir algo.

Mesmo com a expressão carregada de raiva, mesmo com aquele olhar fulminante que poderia muito bem me reduzir a cinzas se fosse possível... Lorde Thales era simplesmente lindo.

E não do jeito comum, tipo um príncipe de conto de fadas. Não. Ele tinha aquela beleza perigosa, intensa, que fazia o coração acelerar por instinto—seja pelo medo ou por outra coisa que eu preferia não nomear.

A mandíbula bem definida, o olhar afiado como lâminas, a postura digna de um rei de guerra... Tudo nele exalava poder e dominância. Se eu não estivesse ocupado tentando não ser morto pela força do olhar dele, talvez até teria aproveitado a visão.

Mas, considerando que ele parecia pronto para me rasgar ao meio com os olhos, acho que esse não era o melhor momento para apreciar os detalhes.

— Como realmente admiro o senhor, Lorde Thales — falei, permitindo que um sorriso divertido se formasse em meus lábios. — Apenas por lançar seu olhar na minha direção, meu coração já quase não aguenta tamanha beleza.

O silêncio que se seguiu foi quase palpável.

O barulho dos talheres cessou. As conversas ao redor evaporaram. Até o som ambiente parecia ter se retraído em choque absoluto.

Se eu tivesse prestado atenção nos demônios sentados à mesa, tenho certeza de que teria visto bocas escancaradas e olhares arregalados. Mas, honestamente? Meu foco estava inteiramente na reação do Lorde Thales.

Ele me encarou, impassível.

Por um momento, pensei que o universo fosse se dobrar sobre si mesmo e me arremessar para fora da existência só por ter ousado dizer algo tão ousado.

Então, ele finalmente falou, com a voz carregada de uma frieza cortante:

— Não seja abusado, Arthur Kaymin.

O tom era afiado, seco, e claramente pretendia me cortar no ato.

Mas eu, sendo eu, não podia simplesmente deixar por isso mesmo.

Então, antes que qualquer resquício de juízo pudesse me impedir, pisquei para ele.

Sim. Pisquei.

E foi nesse instante que vi.

Uma reação mínima. Um detalhe quase imperceptível. Mas estava lá.

As orelhas do todo-poderoso, intimidador e furioso Lorde Thales estavam vermelhas.

Tive que morder a língua para não rir.

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Enquanto caminhava pelos corredores do castelo, sem muito o que fazer após o banquete, deixei minha mente vagar. Silas tinha ido para o treinamento de esgrima—o que, honestamente, me fazia questionar o senso de normalidade desse mundo. Quero dizer, que tipo de criança da idade dele empunha uma espada e treina para combate como se fosse uma brincadeira de pega-pega? Mas, considerando onde estávamos, acho que fazia sentido.

Pelo menos, eu sabia que o próprio Lorde Thales não estaria treinando Silas por enquanto. Ele tinha dado permissão para o garoto aprender, mas, aparentemente, só assumiria o papel de instrutor quando Silas estivesse mais velho. O que, pelo visto, significava "idade adulta" nesse mundo.

Com as mãos nos bolsos, segui pelos corredores do castelo, observando os vitrais distorcendo a luz do lado de fora em tons sombrios e avermelhados. Eu podia sentir a presença mágica impregnada no ar, uma energia densa e quase tangível. Era como se tudo aqui fosse movido por forças que, no meu mundo original, existiam apenas em histórias.

Falando em equilíbrio de forças, esse mundo tinha uma hierarquia clara—algo que as memórias de Arthur original ajudaram a esclarecer.

No topo da cadeia de poder estavam aqueles que dominavam a magia antiga: os deuses. Ou melhor, os deuses que desapareceram há muito tempo, deixando apenas seu legado para trás. Logo abaixo deles, vinha a atual soberana dos demônios, a Rainha do Reino Demoníaco, cujo nome, por algum motivo, me escapava no momento.

Abaixo dela, estavam os cinco Lordes Demônios, cada um governando uma região distinta. Lorde Thales era um deles, e, pelo que percebi, sua presença e influência eram imensas.

Do outro lado do equilíbrio, os humanos tinham sua própria estrutura de poder. A Torre de Obsidio era a maior autoridade mágica entre eles, funcionando como aquelas torres de magia clássicas que eu já tinha visto em várias histórias de fantasia. Livros antigos, poções misteriosas, magos sábios e uma aura de segredos escondidos—o pacote completo. No topo da torre, um Mago Mestre governava, provavelmente sendo a figura mais poderosa entre os humanos quando se tratava de magia.

Logo abaixo disso, havia os reinos e impérios menores, que tentavam manter algum nível de influência nesse jogo de forças.

E então, ali estava eu, um forasteiro com lembranças que não eram minhas, vagando por um castelo demoníaco sem um plano real.

Ótimo.

Se ao menos houvesse uma biblioteca ou algo para passar o tempo...

Se eu pudesse descrever tudo o que me lembro sobre o Arthur original, diria que ele era... comum.

Um rosto que não era nem bonito nem feio. Uma altura que não era nem muito alta nem muito baixa. Um corpo sem traços marcantes, sem força ou fraqueza aparente. Ele era o tipo de pessoa que passava despercebida na multidão. Não havia nada nele que fosse excepcionalmente bom ou terrivelmente ruim. Apenas... normal.

Mas, para o mundo ao seu redor, ele nunca foi visto assim. Para a família real, ele não era apenas um garoto qualquer—ele era um bastardo, um erro, um incômodo permanente cravado no lado deles como um espinho impossível de arrancar.

Se isso já não fosse o bastante, ele era constantemente comparado ao seu meio-irmão mais velho. E, claro, sempre saía perdendo.

Seu irmão era brilhante, prodigioso, um guerreiro talentoso. Arthur? Bem... Ele não era tão inteligente, tampouco hábil com uma espada.

Mas a parte mais estranha era que, mesmo com todas essas comparações injustas, ele nunca sentiu ciúmes ou inveja. Nunca quis ser como o irmão que ignorava sua existência. Pelo contrário.

De alguma forma, Arthur sentia uma espécie de orgulho silencioso por ser quem era.

Ele era um fantasma, uma sombra na grandiosa tapeçaria da família real. Insignificante aos olhos do mundo, mas, talvez por isso mesmo, livre de expectativas sufocantes.

Ser invisível tinha suas vantagens.

Eu estava tão absorto em meus pensamentos, tentando ignorar o desconforto crescente que as memórias do Arthur original me causavam, que não percebi quando meus pés decidiram testar minha paciência.

O choque veio rápido—bati contra algo sólido, quase tropecei e caí de cara no chão. Felizmente, me segurei a tempo, mas não sem um pouco de vergonha.

— Deveria se desculpar — disse uma voz carregada de autoridade e impaciência. — Você estava ali, olhando para o nada, e esbarrou em mim.

Eu pisquei, me recompondo, e me virei para ver quem era.

E, claro, só podia ser ele.

Lorde Thales me encarava com aquela expressão impassível, como se eu tivesse cometido um crime imperdoável apenas por existir no mesmo espaço que ele. Ele era exatamente o tipo de líder que se esperaria para um exército de demônios—postura impecável, olhar calculista, cada movimento medido e preciso.

Eu podia imaginar que seus subordinados deviam estar constantemente no pé dele, sugerindo que me expulsasse ou me matasse de uma vez. Afinal, um humano dentro de um castelo demoníaco? Mesmo com o acordo que tínhamos, minha presença era algo que incomodava mais do que um espinho no pé.

Bem, esse seria meu novo normal.

— Lorde Thales... — comecei, tentando medir minhas palavras.

Ele cruzou os braços, arqueando levemente uma sobrancelha.

— O quê? Não se incomode em pedir desculpas. Como se suas palavras valessem alguma coisa, sendo que você é um sonhador.

Eu abri um sorriso e respondi sem hesitação:

— Você é ótimo!

A reação dele foi digna de uma obra-prima.

Hein? — Ele piscou, parecendo um pombo que acabou de ser atingido por uma arma de chumbinho.

Aproveitando a brecha, continuei, gesticulando com entusiasmo:

— Você tem lacaios que podem fazer qualquer coisa para você, mas mesmo assim faz o seu próprio trabalho sujo. Não depende de ninguém! Além disso, sabia exatamente de onde eu vinha e usou magia para chegar na minha frente e me fazer causar uma cena onde você teria o poder de me expulsar, caso eu fosse rude com você! Isso é brilhante! Eu não esperaria nada menos do incrível Lorde Thales.

Hein...? Hein?! — Ele parecia cada vez mais confuso, e eu me divertia cada vez mais.

Eu sorri ainda mais, inclinando levemente a cabeça como se estivesse analisando uma obra-prima.

— Assim como eu pensava, você é uma pessoa humilde, que prefere agir como se o outro lado fosse o tolo, evitando desmanchar o acordo que a Rainha dos Demônios estabeleceu sobre não brigarem dentro da própria propriedade até que alguém realmente provoque sua honra.

Então, sem nem hesitar, concluí com a cereja do bolo:

— Eu te amo muito, meu lorde.

O silêncio que se seguiu foi precioso.

Lorde Thales congelou. Seu olhar, antes impassível e intimidante, agora piscava entre incredulidade e puro pânico.

— O-O que você é...? — Ele murmurou, virando-se bruscamente nos calcanhares.

E então ele simplesmente fugiu.

Sim.

O grande e temido Lorde Thales, um dos cinco governantes demoníacos, saiu abruptamente da cena, murmurando algo sobre estar assustado.

Eu sorri para mim mesmo.

Isso estava ficando divertido.

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Gostaram?

Até a próxima 😘

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