O Fim
Fiz menção de sair abruptamente, mas Príncipe segurou meu braço. "Temos que ser prudentes", sussurrou ele. Eu não queria ter cautela, eu queria sair e voar na garganta das pessoas que estavam ali nos ameaçando. Já estava cansado de tudo isso, de sair correndo e fugir para lugar nenhum. Porém, ele tinha razão, provavelmente sairíamos mortos dali se algo desse errado. Comecei a pensar. Se Garry tinha gritado "vocês dois", foi um aviso para nós.
Abri a porta do depósito alguns milímetros e foi o suficiente para ver dois trogloditas apontando armas para Gary. Meu amigo estava encurralado num canto da sala. Tateei as prateleiras tentando achar alguma coisa que pudesse ser útil, mas não encontrei nada além de vassouras e desinfetantes. Se eu fosse um daqueles personagens de filmes que sempre tem uma solução para tudo, daria um jeito de fazer uma bomba química, mas não, nada a ver.
O clima tenso fez passar qualquer pensamento em relação a Príncipe, meu foco era salvar Gary. Eu estava cada vez mais nervoso. A discussão dos três continuava e eu nada tinha a fazer. Ao ouvir uma arma sendo destravada não pensei duas vezes. Segurei uma vassoura e, ao sair do depósito, quebrei o cabo dela, fazendo uma estaca pontuda. O homem que estava de frente a Gary nem teve tempo de pensar. Enfiei a ponta com toda minha força em suas costas e ela saiu do outro lado.
O homem soltou um urro e, no reflexo, disparou a arma. O recuo da arma fez com que ele caísse em cima de mim e o companheiro dele ficou desesperado. Príncipe apareceu por trás e lhe deu uma pancada com um extintor de incêndio, fazendo-o cair. Quando consegui levantar, meu coração disparou ao ver Gary caído no chão, esvaindo sangue abaixo do peitoral.
— Não tem mais ninguém — disse Príncipe após voltar do outro cômodo.
— Corre! Deve ter um kit de primeiros socorros em algum lugar — falei desesperado. Eu tentava estancar o sangramento, mas Gary já estava desmaiando.
— Rogan... — ele começou — não adianta mais... promete pra mim... que você vai dizer pra ele... não perca tempo... diga que gosta dele...
Algumas lágrimas irromperam pelos meus olhos ao ver Gary cuspir sangue. Meu amigo estava morrendo e eu não podia fazer nada.
— Eu prometo — fiz que sim com a cabeça e ele se foi.
Quando príncipe voltou com uma maleta branca na mão já era tarde. Não que o kit fosse ajudar em alguma coisa, a bala deve ter acertado algum órgão vital. Eu estava ajoelhado ao lado de Gary, maldizendo o inferno que o mundo tinha se transformado e nas pessoas perversas que agora o habitavam. O homem atingido pelo extintor começou a acordar e, na minha ira, comecei a chutar seu rosto até que ele tivesse o mesmo destino que seu amigo.
Minha vontade era gritar e pisotear aquela cabeça até me sentir vingado. Príncipe olhava pela janela, ele avistou um carro vindo e disse que precisávamos sair dali o mais rápido possível. Quando Príncipe apareceu com algumas roupas eu estava encostado numa parede, meu choro era de tristeza e raiva. Eu não tinha me dado conta que ainda estava de toalha.
— Vista-se precisamos ir, depressa — ele me entregou as roupas e percebeu que eu não me mexi — rápido, Rogan, precisamos sair daqui, tem mais gente chegando.
— Eu... não posso deixar ele aqui — como eu iria embora e deixaria o corpo de Gary ali?
— Não podemos, precisamos ir — nesse momento, Príncipe colocou sua mão na minha nuca e sacolejou, assim como Gary fez com ele um dia atrás — confie em mim.
O inesperado aconteceu. Príncipe foi me puxando para cada vez mais perto, nossos rostos se aproximaram até que nossas bocas se tocaram. "Confie em mim", disse de novo e me beijou novamente.
Aquele beijo me fez despertar. O sangue voltou a circular em minhas veias e eu recobrei a consciência. Peguei as roupas de suas mãos enquanto olhava em seus olhos, agradecendo. Sua expressão urgente me fez vestir uma bermuda, calçar os tênis e sair pela porta do fundo enquanto vestia a camiseta. Foi o prazo de sairmos quando escutamos outro carro estacionar. Nós nos encostamos na parede e vi, pelo canto, quatro pessoas saírem do veículo.
Eles entraram no posto rodoviário e exclamaram sobre a cena que viram. "Ainda devem estar por aqui, achem eles!". Olhei assustado para Príncipe que parecia estar calculando muitas coisas ao mesmo tempo. Porém, não tivemos tempo de pensar em nada, quando escutamos alguém se aproximar, corremos para as árvores que ficavam a alguns metros dos fundos do posto. Era uma floresta de sequoias e estava muito escura devido a noite.
Ainda escutando as vozes imperativas se dividindo para nos encontrar, continuamos a correr floresta adentro. Devemos ter nos distanciado por uns quinze minutos, até pararmos de ouvir qualquer voz. Provavelmente eles não viriam atrás de nós tão longe. Encostei-me numa sequoia gigante, o peito arfando muito depressa, o suor escorrendo pelo pescoço, a boca seca. O bolo na garganta ainda permanecia, meu amigo, Gary, se foi.
Príncipe, cansado como eu, retirou de uma bolsa, que eu só havia percebido naquele momento, uma garrafa de água e nós nos saciamos.
— Você está se tornando um sobrevivente profissional, não é mesmo? — Quando levantei o rosto, nossos olhos se encontraram — Muito obri...
Não deu tempo de terminar o agradecimento, ele me agarrou e nós nos beijamos longamente, esquecendo que estávamos cansados ou aflitos. E aquele beijo... Ah! Que beijo. Ele subia a mão até o meu cabelo e segurava com força, como se tivesse medo de que eu fosse rejeitá-lo. Como eu poderia? Agarrei sua cintura e não queria soltar mais. Nossos lábios ardiam com tanto atrito, mas era impossível não ser intenso.
Aquele desejo estava reprimido desde que o conheci. Nem precisei cumprir a promessa que fiz a Gary. E foi quando pensei nele que o beijo cessou. Encostei minha cabeça no ombro de Príncipe e respirei profundamente, deixando algumas lágrimas escorrerem. Num abraço apertado, ele me disse que tudo ficaria bem, pois tínhamos um ao outro. Eu queria acreditar naquelas palavras, mas nos demos conta de onde estávamos.
No meio de uma floresta escura, não fazíamos menor ideia do quanto a adentramos. Sentados no chão de folhas secas, esperamos um tempo até voltar. Mesmo tendo certeza que estávamos no caminho certo, nós andamos muito mais do que estava previsto. A lua já estava no centro do céu, o que ajudava a iluminar um pouco, mas o vento uivava entre os galhos das copas das árvores. Andamos e andamos e andamos e nada encontramos além de mais floresta.
Era só o que faltava mesmo, ficar perdido no meio do mato. Enquanto eu andava, volta e meia sorria como um bobo, mas também me lamentava. É estranho sentir uma ligação tão forte com pessoas que passei três dias junto? Talvez fossem as circunstâncias frenéticas e atípicas. Sim, é totalmente possível se apaixonar no apocalipse. Príncipe era a prova disso. Segurei sua mão com força, deveríamos continuar a caminhada.
Quando nossas pernas não aguentaram mais, decidimos descansar. Eu não sei quanto tempo fiquei parado no posto rodoviário, mas deu tempo do meu companheiro encher uma bolsa com toda sorte de itens: isqueiro, água, comida seca, enlatada e algumas outras coisas. Ponderamos se era seguro fazer uma fogueira, mas a temperatura caiu de uma vez que não havia outro jeito. Eu juntei alguns gravetos e galhos secos caídos e ateamos fogo.
O rosto dele ficava ainda mais bonito iluminado pelas chamas. As sombras dançavam nas árvores e o vento havia dado uma trégua. Príncipe chegou mais perto, passou seu braço pelos meus ombros e pudemos nos aquecer. Era como um dos acampamentos de verão, com a pequena diferença que as pessoas eram zumbis ou loucas. Pelo menos ali não haveria ninguém, a mata já estava muito fechada.
— Como sabia que eu... — fiquei vermelho — que eu queria você?
— Impossível não saber. Não tirava seus olhos de mim. Aquele momento no depósito eu senti... uma coisa me cutucando...
Não era possível! Eu quis abrir um buraco no chão para enfiar a cabeça.
— Me desculpe, sabe como é, a gente não manda nele.
— Não se preocupe, eu gostei — ele levou sua boca próxima a minha orelha e sussurrou — muito.
Os pelos da minha nuca se eriçaram e ele riu baixinho.
Dormimos ali, abraçados, fornecendo calor um para o outro. O dia raiou e nós precisávamos sair dali, de qualquer jeito. Subi numa das árvores e avistei uma montanha, algumas colinas e uma cabana, bem longe, mas era nossa única chance. Comemos as últimas barras de cereal e começamos a andar, seria uma longa caminhada.
Estranhamente eu me sentia menos triste pela morte de Gary, acho que a companhia do Príncipe me dava boas energias. Durante todo o caminho fomos conversando e tentando conhecer um ao outro. Ele sempre foi de Fresno e nunca tinha saído de lá, virou modelo de cuecas para juntar uma grana e ir embora. Tinha seus vinte e cinco anos e sempre teve vontade de beijar um rapaz, mas nunca pôde realizar seus desejos com medo dos pais.
Já eu, com meus trinta e três, sempre fui mais independente, acho que a vida em Los Angeles é diferente, as pessoas não se importam muito com quem você namora. Apesar de sempre haver aqueles que te julgam, eu levava uma vida feliz. Mesmo com o trabalho monótono e rotineiro do escritório, eu tinha bons colegas. Mas isso tudo era passado, nada mais importava além do aqui e do agora.
Com sorte, chegaríamos na cabana antes do sol se por, mas já passava do meio-dia e nós estávamos famintos. Para a nossa surpresa, um barulho de água corrente chegou aos nossos ouvidos. Sem nos desviar muito da rota, apressamos o passo até encontrar um riacho que corria como se o mundo não existisse. Após muito esforço e tentativas, conseguimos pegar dois peixes. Fizemos outra fogueira e comemos o peixe assado, nossa melhor refeição desde o início do caos.
De barriga cheia, continuamos a caminhada. As sombras das árvores nos protegiam do sol forte e o chão era mais ou menos plano, não nos deixando muito cansados. Deveria ser por volta das quatro da tarde quando alcançamos a cabana. Numa clareira bem no meio da floresta, a pequena construção de madeira parecia ser bem antiga. Uma das janelas tinha um vidro quebrado e a porta de treliça batia com o vento.
Nos aproximamos com cuidado, não sabíamos o que nos esperava. Porém, o universo resolveu nos ajudar pelo menos uma vez: não havia sinal de gente ou de zumbi. Antes de descansar, vedamos as janelas com tábuas e impedimos a porta de ser aberta por fora. O interior era modesto, mas tinha uma cama pequena e uma mesa com três cadeiras de madeira bem gasta. Havia uma lareira de pedra como o chão, algumas prateleiras e utensílios, mas tudo muito simples. Aparentemente, alguém não vinha ali há muitos anos. A grossa camada de poeira podia ser vista em cima de qualquer superfície.
— Sabe, eu poderia viver o resto minha vida aqui. Não tenho a mínima vontade de voltar pro inferno que o planeta virou — disse eu, enquanto vasculhava o lugar em busca de algo útil.
— É uma pena que morreríamos de fome e de sede antes de fazer aniversário — Príncipe riu e puxou um pedaço velho de papel de uma das prateleiras — Achei um mapa!
— Mandou bem, universo, valeu mesmo!
Descobrimos que seria fácil chegar em Springville, mas que passaríamos a noite ali. Voltamos no riacho para tomar um banho de água muito gelada, mas nem percebemos devido ao calor de nossos amassos. Conseguimos mais uns peixes e na volta pegamos galhos e gravetos. Acendemos a lareira e ficamos ali, abraçados, como se ignorássemos a existência de um apocalipse em andamento.
Em certo momento, começamos a nos beijar. Primeiro príncipe tirou sua camiseta e eu pude perceber, de perto, como sua pele era gostosa ao toque. Ele tirou a minha camiseta e passou a mão nos pelos do meu peito. "Seu apelido deveria ser urso" e antes que eu pudesse rir, sua boca se encontrou com a minha mais uma vez. O calor daquela noite foi maior do que a lareira pudesse emanar. Minha barba havia crescido um pouco e arranhava o pescoço dele, arrancando sons que me faziam arrepiar.
Nossos corpos se esfregavam alucinados, como se fosse a última vez que pudéssemos fazer sexo. Eu beijava suas costas e sentia o gosto salgado, mas isso não importava, eu queria provar cada parte de sua pele. Eu queria uma experiência completa. Mais uma noite quase sem dormir, mas dessa vez valeu a pena. Acordei com uma cabeça sobre o ombro e uma mão no meu peito, ele dormiu alisando os pelos, tão senil, quase angelical.
Levantamos sem muita vontade de partir, mas não havia outro jeito. Precisávamos encontrar um lugar onde ficar permanentemente. Springville era uma cidade pequena, estávamos torcendo para que não tivesse sucumbido como as outras maiores. Com as mesmas roupas esfarrapadas, deixamos a cabana e seguimos para as colinas.
Levou uma grande parte do dia para que chegássemos na pequena cidade. O sol ardente deixou nossos rostos vermelhos e nos causou uma canseira fora do normal. Quando avistamos os telhados de cima de uma colina, nossos sorrisos se abriram e ganhamos uma força extra. Aparentemente não tinha nada pegando fogo ou hordas de mortos-vivos. Seria nossa salvação?
Passamos pela escola e pela igreja. Apesar de danificadas, não havia maiores danos. Algumas casas com janelas quebradas e portas penduradas, mas parece que as pessoas foram embora logo que tudo começou. Avistamos uma loja de conveniência e entramos para procurar algo de comer. Quase tudo ainda estava nas prateleiras e nós comemos e guardamos um pouco.
Assim que saímos da loja, avistamos alguns zumbis no meio da rua. Sorrateiramente, entramos na casa ao lado. Havia um deles no segundo andar, mas foi morto com uma facada no olho, como Gary me ensinou na primeira vez que lidamos com esses bichos. A casa era boa, quatro quartos e muitos cômodos, parecia ser de alguém rico. Não havia muitas roupas nos armários ou porta-retratos nas prateleiras, as pessoas conseguiram arrumar tudo para fugir.
Ficaríamos por ali mesmo, lidaríamos com os zumbis que nos importunassem e seríamos um lindo casal feliz, certo? Trancamos toda a casa, vedamos janelas e portas, não acendemos nenhuma luz forte que pudesse atrair atenção. O banho, frio como sempre, foi em dupla. Estávamos íntimos após a noite do dia anterior, já não sentíamos mais vergonha de olhar para o corpo do outro, nem tocar... Mas estávamos exaustos, esgotados, não houve ânimo para nada além de deitar e dormir. E assim fizemos.
Príncipe e eu estávamos na frente de um orfanato. As alianças douradas reluziam em nossos dedos anelares. Era tudo muito brilhante e lindo, o mundo estava inteiro outra vez, tudo em sua perfeita ordem. Uma menina veio em nossa direção e nos abraçou antes de entrar no carro. Olhei para Príncipe e com um beijo selado lhe disse "eu te amo".
— ROGAN!
Com o susto, despertei do sono com o coração acelerado. As vistas meio embaçadas não eram exatas, mas eu vi Príncipe se debater. Quando realmente pude ver com clareza, haviam dois bichos dentro do quarto atacando ele. Levantei de um pulo e chutei um deles contra a parede, enfiando um abajur com toda a força em sua cabeça. O outro acabava de ser degolado com uma tesoura por Príncipe.
— Como eles entraram aqui? Não deixamos nada aberto! — Seus olhos assustados buscavam qualquer indício de outros mortos-vivos.
— Não sei, mas temos que verificar se não há mais deles — falei enquanto colocava uma camisa, andando em direção a porta do quarto.
Quando apontei o rosto para fora, tive que desviar de duas mãos rápidas. "Tem mais aqui", gritei e Príncipe saiu atrás. Fomos descer a escada para fugir, mas fomos surpreendidos na metade dos degraus com alguns bichos no fim. Tentamos voltar para cima, porém mais deles vinham atrás de nós. Foi então que me dei conta de que não bloqueamos a porta do porão. Provavelmente era por onde eles estavam entrando e por onde nós sairíamos.
Indiquei para Príncipe onde deveríamos ir e pulei da escada. O joelho em recuperação deu uma fisgada e eu caí. Meu companheiro veio em meu socorro, mas eles eram muitos. Não conseguiríamos. Tudo pareceu ficar em câmera lenta, não era possível, era o nosso fim. Lutando contra garras e bocas, Príncipe me olhou pela última vez com seus olhos muito escuros e, de sua boca, saíram apenas quatro palavras:
— Rogan, eu te amo.
Um grito ecoou quando um dos monstros morderam no ombro dele. "NÃO!". Eu não acreditava que aquilo estava acontecendo de verdade, tinha que ser um pesadelo. A massa de zumbis o puxava para longe e eu paralisei. Olhei ao redor e pude perceber que eu também não conseguiria. O Príncipe do Apocalipse estava morrendo e eu só consegui dizer que também o amava. Por fim, me entreguei, sucumbi, acho que nem dor eu senti, estava incrédulo demais.
As memórias foram mais fortes e não me deixaram. Gary, meu grande amigo se foi. Príncipe, meu amante se foi. Mas eles estavam comigo, eu também precisava ir. Algo vermelho foi tomando conta da minha visão. Fechei os olhos e nada mais vi. Nada além do fim.
***
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