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Traçando o Caminho

  Já era manhã quando Elizabeth acordou, abriu os olhos e viu Afonso esticado a seu lado dormindo feito anjo. A princípio não lembrou de nada.

  – O que aconteceu? – Sussurrou sentando em cima de duas almofadas muito confortáveis.

  Fitou a sua volta e logo constatou que estava na sala das histórias. Ainda confusa, contemplou as paredes de gesso e as colunas douradas, passou a mão sob o tapete felpudo e correu os olhos novamente para Afonso. Sentiu uma coisa estranha percorrer seu corpo, uma coisa que nunca sentira, uma coisa inexplicável, o que ela chamou de carinho e afeto, já que tais sentimentos só se manifestavam na presença do rapaz. Pensou no quão gentil fora o arqueiro com ela e sua bondade infinita a conquistou. Só foi aí que lembrou-se do que acontecera, tudo foi voltando como feiches de luz, algumas imagens, e em poucos minutos tudo voltara perfeitamente. Ainda zonza, tocou no ombro de Afonso com muita delicadeza e sussurrou:

  – Acorde!

  Foi preciso repetir a palavra algumas vezes e sacudi-lo um pouco. Mas não demorou muito e Afonso já estava de olhos abertos.

  – Bom dia! – Liz cumprimentou-o ao ver o olhar negro do arqueiro manifestar-se no ar.

  – Bom dia – ele respondeu sentando em cima de algumas almofadas.

  Ficaram um de frente para o outro, erguidos de pernas cruzadas, rodeados por almofadas macias e um tapete maravilhoso, no qual exibia uma coloração creme.

  – Está melhor? – Afonso indagou após bocejar.

  – Sim... – Sorriu. – Um pouco confusa... Não me recordo de muita coisa.

  – Até onde você se lembra?

  O diálogo estava tão sereno, que se alguém estivesse lá, seria capaz de dormir ao ouvir as doces e calmas vozes se dispersando pelo ar.

  – Até a chegada de Águila no extremo do passadiço, depois disso, nada mais.

  – Bem, quer que eu te conte o que aconteceu? – O arqueiro sorriu de relance.

  – Claro, espero que nada de ruim tenha acontecido, aquele terremoto nos pegou de surpresa. Eu não sabia que Ogash tinha esses tipos de fenômenos...

  – Como assim? – Afonso engasgou-se tossindo várias vezes. – Foi você quem causou aquilo tudo, seus poderes se manifestaram! – A conversa dispertou-se.

  – Hã? – A menina caiu na gargalhada. – Então eu tenho poderes?

  – Liz, desculpe, mas já chega de brincadeiras! – O arqueiro fitou-a seriamente. – Você já está passando dos limites, isso tudo é real! Estamos em um mundo mágico, você é uma Elementure, dominadora dos elementos, prometida para salvar nossas vidas. E sua mãe está presa em Éron, e só sairá de lá quando você – deu ênfase –, acabar com a Dama de Ogash!

  Um silêncio horrível tomou o lugar, um ar seco encontrou o pulmão de ambos, Afonso arrependeu-se de gritar com Elizabeth e a menina só não chorou por muito esforço.

  – Desculpe... – Liz mordeu os lábios proferindo cabisbaixa.

  A Elementure mantinha um jeito único, onde aprendera com sua mãe, que nunca rebateria aos berros com alguém, algo que possivelmente seria verdade. Seu sorriso se foi e o "carinho" que ela sentia por Afonso pareceu diminuir, lhe causando uma sensação não muito boa.

  – Não, não – o arqueiro gaguejou envergonhado. – Eu quem peço desculpas, não deveria gritar com você... Oh que vergonha!

  Seu rosto corou, não acreditou no que fez. Afonso não era de gritar, pelo contrário, era doce e calmo.

  – Sem problemas... Você tem razão... Sou uma tola, tudo está acontecendo há dois dias, ou melhor, cinco anos, e eu ainda fico com essa ideia na cabeça. Na verdade, eu sei que tudo isso não é um sonho, mas me entenda, tudo é novo. Não faço ideia do que tenho ou do que posso fazer – falou tudo de uma só vez, suspirando por fim.

  – Esqueça o que aconteceu... Vamos comer?

  – Minha mãe, ela está presa? – Só aí Elizabeth se tocou do que Afonso dissera antes.

  – É... É... Eu falei de mais, não queria dizer aquilo!

  – Afonso, não minta, onde está minha mãe? – A voz de Liz se agravou, causando um frio na barriga do arqueiro.

  – Bom... Ela está em... Ela... Ela está em Éron!

  – Que maldito lugar é esse? – Gritou histérica.

  Apesar das explicações de Águila, Liz não entendera quase nada. Não fazia ideia do que tinha que fazer, apenas sabia que existia um lugar com flores assassinas e que nesse lugar existia um portal. Nada se encaixava em sua cabeça.

  – Se acalme – Afonso sibilou sereno. – Sua mãe está bem! Apenas presa, mas não passa por necessidades. Águila lhe explicará melhor tudo isso!

  – Não quero explicações daquela mulher! – Gritou. – Bem, se aquilo for uma mulher... – Sussurrou mais para si do que para Afonso.

  – Então fique desordenada, como preferir. Se quiser ser morta por Cona e seus capangas, sinta-se a vontade!

  Liz abaixou a cabeça e pareceu pensar. Na realidade, ela não tinha escolha. Já entendera que a mãe fora raptada para ser salva pela filha, qualquer um entenderia. Pois então, acalmou-se e disse:

  – Então vamos, temos que traçar nosso caminho o quanto antes!

  Afonso surpreendeu-se com o que Liz falara, já que outrora a menina não acreditava em magia.

  – Está falando sério? – O arqueiro indagou.

  – Claro, já que não tenho outra escolha...

  Os dois levantaram-se do chão num pulo. Andaram rapidamente pelo corredor e quando pensaram estar perdidos, ouviram sussurros de empregados. Seguiram as vozes e logo chegaram à cozinha. Perguntaram por Águila, mas antes que a empregada pudesse responder, a Elementar surgiu junto de Moglim em uma das portas da cozinha e os chamou. Afonso e Liz os seguiram por alguns minutos, apenas ouvindo o clop clop das sapatilhas escondidas pelo vestido deslumbrante de Águila e os passos silenciosos do guepardo.

  – Existe uma sala... Uma sala onde ninguém nos ouvirá – a moça mágica proferiu animada.

  Pelo que parecia, Moglim sabera de tudo o que acontecera. Águila lhe contara tudo antes que Afonso e Liz acordassem.

  Os quatro traspassaram inúmeros corredores até chegarem a uma porta não muito grande, feita de cobre, coberta por detalhes dourados. Adentraram o local e estavam diante de um lugar simples. Talvez o mais simples do palácio.

  – Nossa! – Liz sibilou ao ver as paredes da sala forradas por madeiras de eucalipto. Um aroma maravilhoso lhe percorreu as narinas. Varreu os olhos no cubículo e avistou uma mesa feita de um tronco grosso de árvore, rodeada por banquinhos redondos. O assoalho era de mesmo material das paredes, entretanto, a sala que estavam seria a que mais atraíra Afonso e Liz, talvez pelos contornos simples e humildes.

  – Onde estamos? – O arqueiro indagou.

  – Na Sala dos Segredos! – Águila respondeu animada. – Aqui ninguém irá nos ouvir, podemos falar tudo o que quisermos.

  A Elementure olhou perplexa e logo sentou no banquinho de madeira, acompanhada de Afonso que fez o mesmo logo em seguida.

  – Querem saber o que fazer, não é? – A mulher perguntou enquanto sentava-se na frente dos dois, fazendo que Moglim erguesse suas duas patas dianteiras jogando-as por cima da mesa ao lado da Elementar.

  – Sim – responderam em uníssono.

  – Pois bem, já contei que o nosso país está ameaçado, uma mulher prometeu destruir tudo que existe. Mas como diz a profecia, não será nada fácil. Ainda não se tem relatos sobre a Dama de Ogash, ninguém nuca a viu, nem mesmo Cona e seus adoradores. A única coisa que peço Elizabeth, é que encontre o portal de Élkans, sele-o com o Diamante Negro e pronto. Terá sua mãe de volta e sua vida correrá normalmente, como se nada houvesse acontecido!

  – Só preciso selar o portal? Mais nada? Arranje-me um mapa e hoje mesmo faço isso! – gargalhou irônica.

  – Mal sabes o que tem que enfrentar... – Águila sorriu ignorando as palavras medíocres de Liz.

  Apesar de sua doçura, Liz em certas ocasiões se mostrava um pouco arrogante, como naquele momento, que esnobou das palavras da Elementar, achando que tudo aquilo seria fácil. Uma personalidade um tanto que complicada, que só pensa em seu próprio nariz, com pensamentos inóspitos e rígidos.

  – Mostre-me o mapa, vou partir o quanto antes – a menina proferiu animada.

  – Acalme-se Elizabeth – Moglim sorriu de seu modo –, sei que está eufórica, mas tome cuidado! Sei que entende o que digo... – O guepardo fitou-a com seus olhos amarelos e logo em seguida olhou para a Elementar, acenando com a cabeça.

  Águila fez surgir em sua frente uma folha de papel creme, quase branco, onde ainda estava intacta. A mesma fechou os olhos, seu cabelo azul turquesa brilhou, dirigiu a mão direita por cima do papel e desenhos surgiram sem que ninguém tocasse com um grafite se quer.

  – Esplêndido! – Afonso exclamou maravilhado.

  O rosto de Liz encheu-se de alegria, não havia sensação melhor ao ver um mapa se formar sozinho.

  – Não é lindo? – Moglim sorriu.

  Os dois não tiravam os olhos do papel, fizeram que sim com a cabeça enquanto o mapa dava-se os últimos toques finais. Em fim, os riscos pretos acalmaram-se, o mapa estava feito. Expondo montanhas, rios, árvores e montes. O melhor era que tudo parecia saltar do papel.

  – Nós estamos aqui – Águila apontou para o Palácio Perdido, destacado por um contorno egípcio –, vocês terão que atravessar a floresta de Ogash na direção noroeste – deslizou o dedo verde com unhas brancas e longas pelo mapa – e chegar à sua fronteira pelo Monte de Ágzul, lá, acharão monstros terríveis e animais arrepiantes, mas tenho certeza que isso não impedirá vocês. Tomem cuidado para não perderem-se, essa é a única saída pela fronteira.

  – Mas Águila, você disse que existe um portal que leva direto para Éron, como a árvore que trouxe-nos até aqui – Liz interveio.

  – Sim, existe, mas vocês não querem perder dias procurando esse lugar, ou querem?

  – Claro que não, porém deve saber onde fica o portal, ou estou errada?

  – Ninguém sabe minha filha, ninguém sabe! Agora vão... Tendes sair o quanto antes, já sabem o caminho, e se por acaso perderem-se, olhem no mapa... – A Elementar proferiu levantando-se.

  Liz enrolou o mapa e guardou-o no cinto por dentro da blusa. Sua expressão decidida animava qualquer um.

  – Afonso, estou certa de que acompanhará Elizabeth nessa jornada, não estou? – Águila falou despertando em Liz um sentimento estranho, pois era certo de que o arqueiro lhe iria acompanhar, já que estava com ela até ali.

  – Claro madame, não deixarei que Liz vá sozinha, ela precisará de ajuda! – O rapaz respondeu e um sorriso acanhado surgiu no rosto da menina.

  Todos saíram da câmera em passos rápidos, a ansiedade era inevitável. A Elementure nem quis saber suas origens, pensou que ali não seria o momento adequado, apenas refletiu sua jornada e de súbito​ parou confusa.

  – Águila, como derrotarei a Dama de Ogash, como saberei identificá-la, se nem mesmo seus adoradores a conhece?

  – Menina, tudo acontecerá em seu devido tempo – a Elementar sibilou deixando-lhe escapar um sorriso doce e gentil.

  Logo estavam na porta principal do palácio, onde tudo era pintado por ouro e pedras preciosas. Já haviam enchido a mochila de água e alimento, o essencial não faltara-lhes mais. Afonso pegou sua aljava reforçada com muitas setas que ganhara de Águila e seu arco com uma corda mais flexível, ele carregava a arma e Liz a mochila. A porta de duas folhas abriu-se ao Águila erguer as mãos, desceram os cinco degraus e já estavam na clareira do bosque.

  – Agora vão, já sabem o que fazer! – Águila falou dando-lhes tchau com uma das mãos.

  Na verdade não sabiam, a não ser a parte de chegar ao portal. Lembraram-se de que selariam o portal com o Diamante Negro, mas o que seria isso?

  – Se cuidem crianças! – Moglim gritou.

  Despediram-se da Elementar e do guepardo, desaparecendo em seguida por entre os arbustos, adentrando o bosque úmido e oculto.

––––––

  Enquanto isso, no Palácio Perdido, Águila conversava com Moglim.

  – Saberão se cuidar madame? – O guepardo indagou ao ver a Elementar fechar a porta, fazendo que o palacete ocultara-se aos olhos do bosque.

  – Tenho certeza que sim caro amigo – ela respondeu.

  – Assim espero... Preciso ir, minha raça está em Novo Ogash e espera por mim! – O animal proferiu preocupado.

  – Infelizmente, Moglim, não estão mais... Receio que Cona tenha fechado a entrada da câmara e seus animais estejam acuados em algum canto do bosque. Peço-lhe que tente achá-los, tragam-os para cá e vigie o palácio. Terei que voltar para a Ásia, não nos veremos por um bom tempo!

  – Perfeitamente – o guepardo reverenciou-se.

  Águila despediu-se dos empregados, que mais pareciam amigos e deixou-os naquela tarde, voltando para o continente de origem, no mundo onde os humanos reinavam.

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  Afonso e Liz já haviam caminhado por cerca de três horas, esquivando-se de rochas e arbustos, atravessando córregos e escarpas, correndo por clareias e pastos.

  – Ei, agora que isso veio a minha cabeça... Quando estávamos em Novo Ogash, o Sr. Moglim falara algo sobre um livro – Liz proferiu.

  – É verdade! – Bradou o arqueiro. – Esquecemo-nos completamente do livro... O Sr. Moglim dissera que tínhamos que achá-lo... Já estamos longe para voltar, e se...

  – Está maluco? Não, não podemos desviar de nossa rota, podemos nos perder! – Elizabeth proferiu seriamente.

  – Pense comigo, não acha que se acharmos o livro de Sophia, tudo isso será prático? Saberemos o que é esse Diamante Negro e sobre mais coisas que ainda não sabemos.

  A menina parou, olhou profundamente nos olhos de Afonso, arqueou as sobrancelhas e disse:

  – Pois bem, tentaremos encontrar esse livro, mas não podemos nos desviar muito de nossa rota!

  Pegaram o mapa e traçaram-no outra rota. Um pouco diferente da de Águila. Antes, percorreriam um caminho curto e seguro, traspassando o Rio de Cárcara, esquivando pelo bosque acima da Árvore de Cona e por fim chegando ao Monte de Ágzul. Mas agora tudo mudara, para encontrar o livro, que na última vez fora vista no Pico dos Lobos, teriam que andar muito mais. Atravessando o Rio de Cárcara, correndo abaixo da Árvore de Cona, apanhando o livro no Pico dos Lobos, esquivando-se ao leste do Castelo de Mou, sem delongas já estariam no Monte de Ágzul. E foi essa a nova rota que fizeram, completamente perigosa e sombria, mas que para eles, seria uma grande aventura e uma grande resposta a tudo o que precisavam saber.

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