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Rebelde

  Liz levantou-se do chão e adentrou a mata, não quis seguir a trilha, a certo ponto, ela estava com medo de Cona e não ficaria muito contente em topá-la no meio do caminho. Limpou as mãos, sacudiu o pijama e adejou lentamente entre as árvores.

  Avistou plantas de todos os tipos, flores, cipós, musgos, araucárias, mangueiras e várias outras, na qual nunca vira na vida. Refletiu enquanto caminhava sobre sua mãe, sentiu saudades e desejou acordar. Parou, fitou-se por inteira e deu-lhe um beliscão no braço. Ao ver que não adiantara apertou mais forte, quando a pele já estava vermelha, parou e achou estranho. Por que eu não acordo? Ela pensou.

  Apesar de tudo parecer estranho, Liz não tirava da cabeça que aquilo não passava de ilusão, mesmo sentindo-se incrivelmente “na vida real”.

  Andou quilômetros e quilômetros, irritou-se por não acordar, choramingou em pensar que estava perdida e lamentou-se quando o sol se tornava mais fraco. A noite estava chegando. Seu estômago parecia estar em festa, nunca sentira tanta fome na vida. Chegou abaixo de uma mangueira, viu mangas verdes, pensou em deixá-las para lá, mas o apetite era tanto, que subiu na árvore e comeu as frutas ainda imaturas. O gosto era horrível, ela admitiu, mas a fome foi saciada rapidamente com dois daqueles frutos.

  Enquanto descansava abaixo da mangueira, pensou seriamente em sua situação. Na verdade ela mantinha bem no fundo a certeza de onde se metera e que aquilo não era um sonho, porém o que lhe restava era esperar até que ela de fato “acordasse”. Em meio a tantos pensamentos, uma flecha cortou o ar e fincou-se na árvore, à cerca de cinco centímetros de sua orelha, deu um solavanco pro lado e jogou-se no chão com as mãos no rosto. Esperou até que algo se manifestasse, mas ao perceber que nada se mexia levantou-se lentamente varrendo os olhos em sua volta. Experimentou a posição sentada, retirou algumas folhas grudadas no cabelo e encostou-se novamente na árvore.

– Tem alguém... – Antes de terminar a frase um vulto saltou de trás de um arbusto, arrastou-se sobre as folhas e pulou em cima de Liz, fazendo-a rolar sob o chão seco.

  Enquanto seu corpo era arrastado junto da coisa que a segurava, mais uma vez, ela sentiu medo, lembrou-se das histórias que sua mãe contara sobre lobisomens e bichos das florestas. Sem hesitar, soltou um forte grito enquanto se debatia nos braços da criatura. Depois de cinco giros eles pararam, um em cima do outro, foi então que os olhos de Elizabeth avistou um rosto humano, de olhos pretos, sobrancelhas grossas, pele parda, cabelos castanhos, barba rala e contornos magros. Soltou outro grito, mas dessa vez, fechou a mão direita e dirigiu o braço com todas as suas forças no rosto do homem, transferindo-lhe um forte soco na bochecha, o que o fez ficar tonto e se afastar de Liz.

  – Pra que tanta agressividade!? – A voz suave do rapaz penetrou nos ouvidos de Elizabeth, enquanto ele alisava o rosto.

  – Quem é você? – A menina, sentada, arrastou-se para trás até bater numa árvore, encostando as costas na mesma. Fitou o homem por inteiro, contemplou suas roupas maltrapilhas e seus movimentos desengonçados.

– Me chamo... É... Não interessa meu nome! – Levantou-se do chão sacudindo as roupas.

  Trajava uma calça marrom solta, que adentravam as botas de couro caprino e borracha, tinham uma coloração um pouco mais escura do que a peça de cima. No tronco, uma camisa creme de mangas longas, bem suja, descia até os joelhos. Olhando de longe, ele parecia ser um mendigo, mas ao ver a aljava e as flechas penduradas nas costas, dava a perceber que o rapaz era um arqueiro.

  – Por que pulou em cima de mim? – Liz contraiu os ombros e indagou com uma voz fraca e trêmula.

  – Pensei que você fosse a feiticeira – as palavras do rapaz saiam rápidas, em um tom misterioso e seco.

  Elizabeth não respondeu, levantou-se lentamente arrastando as costas na árvore, até ficar com os pés juntos e o corpo ereto. Jogou os cabelos pretos para trás, o que fez cair algumas folhas secas grudadas no mesmo e suspirou.

  – Como se chama moça? – O homem indagou observando as pernas destampadas da menina.

  Liz continuou calada, de olhos arregalados e brilhantes como blueberries, uma fruta típica dos Estados Unidos. Abaixou o pijama em uma forma inútil de tentar esconder as coxas e apertou o corpo contra a árvore.

  – Não precisa ficar com medo, não mordo. Mas pra te ajudar, só porque eu sou uma pessoa muito boa, vou me apresentar. Chamo-me Afonso, sem sobrenome nenhum, apenas Afonso – esticou a mão na direção da menina.

  Liz fitou o rosto do homem sem mover nem se quer um dedo, não encontrou grande beleza, achou estranho ele não ter sobrenome, mas não questionou.

  – Não vai me dar a mão? – Afonso indagou ainda de braço erguido, esboçou um largo sorriso branco, tentando demonstrar-se gentil para não assustar a moça.

  – Prazer, me chamo Elizabeth Shetspea – cumprimentou-o apertando-lhe a mão delicadamente.

  Bem no fundo, Liz ainda sentia medo do rapaz, lembrou-se de quando sua mãe falara: "Filha, preste atenção no que digo, nem todos os homens são como seus amiguinhos, gentis e legais. Existem alguns que só querem machucar as meninas, por isso, tome cuidado com quem conversas." No momento, não entendeu o que sua mãe dissera, mas como sempre sabia, ela sempre tinha razão. Pensou em sair correndo, mas como imaginara que tudo era um sonho, deixou de lado o medo e mostrou-se corajosa diante de Afonso.

  – O que faz aqui? – Ele perguntou-a.

  – Estou fugindo de... – esqueceu-se dos nomes das criaturas que a mantivera em hibernação. – Estou fingindo de...

  – De guidous?

  – Sim, deles mesmos... E você, o que faz nesse bosque? – Fitou a sua volta e percebeu o quanto já estava escuro.

  – Sou um rebelde perdido em Ogash, tento sair desse inferno a anos, mas nunca encontro a saída!

  Liz não entendeu absolutamente nada do que Afonso dissera, não sabia o que era rebelde, muito menos Ogash.

  – Como assim? – Indagou tirando as costas do tronco da árvore.

  – Como assim o que?

  – É que sou nova por aqui – soltou um pequeno sorriso não acreditando no que falara, então continuou. – Digo, esse sonho é confuso.

  – Sonho? Ah Elizabeth, quem dera... Eu também pensava assim há alguns anos atrás, mas depois que percebi que nunca acordaria, tirei essa hipótese da cabeça.

  – Você só diz isso porque está no meu sonho. Aqui nada é real. Onde já se viu criaturinhas verdes? Ou feiticeiras? – Liz ainda mantinha viva a ideia de que tudo não passara de uma fantasia barata.

  – Pense como quiser! Mais tarde verá a verdade...

  – Eu não quero ver nada, só quero acordar desse pesadelo! – Irritou-se e pôs-se a correr na direção oposta de Afonso.

  – Volte aqui garota, ta querendo morrer? Se a feiticeira te pegar já era! – Ele gritou mostrando-se preocupado de verdade.

  Liz lembrou-se das palavras de Garu e Frank, os guidous capachos de Cona: “Nunca ouviu falar no que as feiticeiras são capazes?”. Elizabeth parou de costas para o homem, sentiu medo do clima gélido, do tempo escuro, dos seres que vira e principalmente dos contornos medonhos de Cona.

  – Melhor assim – sorriu satisfeito. – Venha, vamos para um lugar mais seguro!

  Afonso ajeitou a aljava de couro nas costas e caminhou à sua direita, transpassando árvores e moitas de espinhos. Logo atrás vinha Liz, com uma expressão de desdém estampada no rosto. Seguiu o arqueiro calada, apenas ouvindo os grilos e cigarras que zumbiam em meio às folhagens. Depois de uma longa caminhada chegaram numa pequena clareira, forrada por folhas secas e rodeado por árvores bem juntas.

  – É aqui! – Afonso sorriu colocando as mãos na cintura.

  – Você mora aqui? – Liz não entendeu. O lugar não tinha nada além de mato.

  – Sim! – Mostrou-se firme na resposta enquanto fitava o céu negro clareado por feixes da lua.

  Elizabeth ficou séria subitamente. Sentiu vontade de chorar, mas não queria demonstrar-se fraca na frente de quem ela mal conhecia. Contou até dez em sua psique e exclamou:

  – Afonso, não podemos dormir aqui, está frio!

  – Eu sei – não trocou de expressão.

  – Então para onde vamos? – Começou a se irritar.

  – Vamos ficar aqui!

  – Eu não estou de brincadeira! Arrume um lugar descente pra dormir-mos ou eu te dou uma surra aqui mesmo! – Gritou fechando as mãos.

  – Calma! – Gargalhou. – Estou de brincadeira! Não tem senso de humor?

  – Não!

Afonso ainda ria quando se ajoelhou e começou a retirar as folhas secas do solo.

  – Vai ficar aí ou vai me ajudar? – Fitou-a seriamente.

  Liz deu um forte suspiro e agachou com cuidado para que seu pijama não subisse e mostrasse tudo o que ela não queria mostrar. Ajudou Afonso a tirar as folhas e encontrou uma portinhola de madeira úmida de meio metro, terminou de arrastar o resto de terra e folhagens e levantou-se de olhos grudados na entrada.

  – Por que não disse que sua casa era aí em baixo? – Indagou.

  – Porque você não perguntou! – Falou dando um forte solavanco em um anel de metal sujo de terra.

  Liz revirou os olhos enquanto fitava as árvores folhudas de diferentes espécies umas juntas das outras. Formavam o que parecia ser uma barreira, protegendo a entrada da vivenda de Afonso.

  A porta foi aberta e os olhos de Liz brilharam quando avistou uma pequena escada de madeira iluminada por feixes amarelos. O homem deu um pulo para dentro e desceu rapidamente, desaparecendo da vista de Liz.

  – Vai ficar aí fora? – Afonso colocou a cabeça para fora voltando às escadas.

  – Ah sim, já estou entrando! – A moça acordou do transe e desceu as escadas delicadamente.

  – Feche a porta!

  Liz tornou a subir dois degraus puxando o anel da parte inferior, fechou a portinhola e se sentiu aquecida.

  Os olhos de Elizabeth brilharam quando colidiram com a lareira embutida na parede. Varreu os olhos no cubículo e desceu os sete degraus bem devagar, tomando cuidado para que não caísse. Contemplou os móveis velhos do quartinho, feitos de madeira mal cortada e corroída por cupins. Ao lado direito da escada, Liz observou uma estante de pinheiros reclinada na parede, forrada por madeiras pútridas, com três prateleiras cheias de livros velhos. Fitou o assoalho de terra batida, coberta por tábuas de carvalho. Deu um passo a frente e falou:

  – Sua casa é fantástica! – Sua expressão perplexa não se desmanchava. Os olhos brilhavam junto da luz amarelada da lareira enquanto  ela contemplava o casebre de um único cômodo.

– Eu sei – sentiu-se orgulhoso pelo trabalho feito, pois ele sabia o quão suado fora construir a vivenda subterrânea.

  No quarto, ao lado esquerdo da escada de nove degraus, uma parede seguia uns dez metros a diante e depois dobrava-se percorrendo mais dez metros e outros dez e mais dez. No entanto, o cubículo se tornara uma aconchegante casa, com paredes de madeiras grudadas na terra, teto de lenhas lascadas e folhas longas de bananeiras. O cômodo era mobilhado por uma cama de palha, uma mesinha e a estante que Liz vira ao tocar os pés no chão de madeira, na qual eram tão juntas que a terra nem ousara a passar.

  – Você que fez tudo isso? – Liz indagou fitando os móveis do quarto.

  – Sim, eu mesmo! Sabe, aqui não tem marceneiros – respondeu com certo tom de deboche, além do mais, Afonso não era um homem que se podia se dizer "maravilhoso".

  – Deve ser legal morar aqui, não é? – a menina arqueou as sobrancelhas aproximando-se do centro do casebre.

  – Se é legal? – Retirou a aljava das costas e pôs sobre a mesinha de madeira. – Se você acha legal viver se escondendo de guidous, de animais inteligentes e daquela feiticeira sexy, então é maravilhoso morar aqui!

  – O que é sexy? – A menina perguntou-o, fazendo Afonso branquejar e engolir em seco. – Significa que ela é muito má, certo?

  – Não sabe o que é sexy? – Fitou-a seriamente, repousando o arco ao lado da aljava. – Digo, nunca ouviu falar?

  – Na verdade, já ouvi uma vez, o pai de meu amigo, lá de Oriente, gritar de dentro da casa: "Vem cá, minha delícia, que corpo sexy!" – Lembrou-se de quando andara entre os casebres vizinhos em uma manhã e ouvira tais palavras, que para ela não fizera sentido algum.

  A inocência de Elizabeth não se comparara aos entendimentos de Afonso, que já passara por muitas coisas nessa vida. Para ela, sexy talvez fosse má, ou até bonita.

  – Bom... É... – A certo modo, o moço de cabelos crespos e castanhos não se sentiria muito bem em explicar à menina o que era na verdade o significado de sexy, então, preferiu não contar. – Isso não importa! A questão agora é o porquê de sua ilustre presença nesse "bosque maravilhoso" – balançou os dedos no ar indicando as aspas que usara.

  – Ah sim, claro, posso me sentar?

  – Fique a vontade! Algum problema em sentar no chão? É que a cama fica longe da lareira e aqui em baixo é um pouquinho frio! – Abraçou-se tentando demonstrar a friagem que entrara pelas gretas na portinhola e por um buraco a cima da fogueira, a qual levava a fumaça para a superfície.

  – Claro que não, até prefiro sentar-me perto do fogo, esse pijama é para o verão e não para noites frias como essas...

  – Acho que tenho algumas roupas, mas são para homens... Algum problema em usar?

  – Não... Não ligo para essas coisas!

  Afonso dirigiu-se até a cama, agachou e puxou de baixo da mesma um baú rústico, contornado por metais. Abriu-o e apanhou algumas roupas limpas, que não usara há tempos. Entregou à Liz e virou-se para a parede, esperando que a mesma se cobrisse. Os dois sentaram-se em cima de almofadas de couro e plumas de pombos, esticaram as mãos sob a clareira e suspiraram, a espera que alguém se pronunciasse.

  – Então... Você disse que é um Rebelde? Isso é um tipo de religião? – Quem começou foi Liz, indagando-o diante das palavras que Afonso dissera quando se conheceram.

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