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Hibernação
– Acho que ela está acordando – uma voz bizarra e grotesca sussurrou ao fitar o rosto de Elizabeth.
– Não é possível, ela está em hibernação, nunca acordará! – Outra voz sibilou do lado oposto da sala.
– Acho que ela mexeu os olhos – o primeiro chegou mais perto do bloco de gelo. Fitou-a e viu as pálpebras tremerem.
O que Liz mal sabia era que algo a aguardava além do mundo que vivia, algo que mudaria sua vida pra sempre. E para começar, ela fora parar em mãos erradas, capturada por guidous, anões horríveis, de pele caracachenta, orelhas pontudas, olhos pretos esbugalhados, bichos carecas e de pele verde, a menina jazia inconsciente dentro daquele bloco de gelo.
Após ter colidido em cheio com a árvore na floresta do vilarejo de Oriente, quando corria pela mata à procura de sua mãe, a menina fora capturada pelas exóticas criaturas nomeadas guidous, ou melhor dizendo, guardiões de Ogash.
– Não seja tolo Frank, ela não irá acordar tão cedo! – O segundo guidou exclamou enquanto despenava um pássaro ainda vivo sobre o beiral da janela.
Por pior que possa parecer, Liz estava em hibernação, exposta em cima de uma mesa de pedra, dentro de um bloco de gelo, onde era resfriada por magia, completamente incógnita e em estado vegetativo.
– Ela mexeu os olhos de novo! – Frank fitou o rosto branco de Liz e em seguida olhou para seu amigo, que saboreava um delicioso bem-te-vi. – Garu, acho melhor vim ver isto – se assustou ao ver os olhos de Liz abertos.
– Eu já disse que ela não vai acordar, a não ser que permitimos, e além do mais eu estou bem ao meio de uma deliciosa refeição – a criatura retrucou sem dar importância às palavras do amigo.
Frank continuou a observar os olhos azuis de Liz, contemplou sua beleza e pensou que realmente não havia como a moça acordar da hibernação.
– É, acho que tem razão – se afastou do caixão congelado, onde Elizabeth dormia profundamente.
Ambos desconheciam a verdadeira capacidade da moça. A pele branca de Liz parecia estar azulada, o olho fora aberto, o corpo tremia, o coração saltitava, o sangue corria, e a menina retomava a vida. Sem a importância que dera os guidous, Elizabeth começara a acordar, seus músculos se contraíram e em uma atitude estúrdia, o bloco de gelo derreteu, como se uma chapa quente o encostasse. Um suspiro profundo tomou a pequena sala onde a menina estava, assustando as duas criaturas, encharcando o assoalho de madeira e dando vida ao corpo frio de Liz.
– Onde eu estou? – Sua voz fina penetrou nos ouvidos das criaturas, enquanto a menina sentava-se na mesa de pedra.
– Eu não disse que ela abriu os olhos! – Frank se impressionou ao virar-se de frente para a moça, junto de Garu, que fizera o mesmo após acabar de lambiscar o dedo polegar, arrancando todos os restos saborosos do bem-te-vi.
– Isso não é possível! – Olharam perplexos.
O rosto de Elizabeth fitou a entrada semicírcula da sala, mirou os galhos extorquidos no batente da mesma, observou o chão de madeira, desceu os olhos à mesa de pedra e em seguida arqueou o pescoço na intenção de ver onde estava, no lado esquerdo contemplou uma parede lisa, feita de uma única madeira, em seguida, fitando o direito, alcançou as duas coisas verdes erguidas de frente à uma janela quadrada.
– Aaaaaaaaaaaaaah – Liz berrou em um som agudo e longo, fazendo os guidous assustarem-se e gritarem juntos.
A menina ficou tonta e só não desmaiou por causa de sua essência forte, que a impedira, inúmeras vezes, de desmaiar.
– O que são vocês? – Ela ainda gritava.
– Prazer! Chamo-me Frank, sou um guidou, mais conhecido como guardião de Ogash – Se aproximou de Liz, estendendo uma de suas mãos para cumprimentá-la.
– Não chegue perto dela sua toupeira – Garu interrompeu o companheiro puxando-o para trás. – Você sabe muito bem do que ela é capaz!
Liz ignorou o que o bicho havia dito. Pensou estar sonhando, ou melhor, pensou estar em um pesadelo. Olhou assustada para os dois anões e não se deu conta do que eram. Observou os olhos negros, a pele verde, as verrugas espalhadas pelo pequeno corpo gorducho e a couraça velha, feita de cascas de árvore e panos maltrapilhos. Frank, ela percebeu, usava uma calça rasgada até os joelhos, cor cinza, repleta de borrões de terra e remendos. Trajava uma chapa de madeira amarrada por cipós nas costas e na barriga. Enquanto o outro, ela ainda não sabia o nome, vestia uma calça preta, de mesmas características e uma camisa semelhante ao do amigo. Ela olhou-se por inteiro. Fitou os pés descalços, as pernas brancas com pequenos pelos, o pijama rosa que usara antes de desmaiar, o tronco e por fim, os braços e os seios. Notou algo diferente, ela estava maior, seios maiores, pernas maiores, corpo maior e o pijama menor. Contemplou-se novamente e saltou outro berro.
– O que aconteceu comigo?
– Tenho ordens de não falar com a Senhorita – Garu proferiu com firmeza.
Logo Elizabeth compreendeu de fato as criaturas. Parecia ser um inteligente fanfarrão e outro burro simpático, ela pensou. Imaginou seus sonhos passados e concluiu que nunca tivera um daqueles, onde existiam bichos horrendos e hibernação humana. Sorriu e entrou nessa, mesmo desacreditada do que acontecia.
– Como se chama homenzinho verde? – Sorriu levantando-se da cama de pedra.
– Como eu disse, sou Frank, e esse é meu amigo Garu – traquejou intrometendo-se na pergunta de Liz. – Somos guidous, vivemos nas florestas...
– Cale a boca Frank, já disse que ela é perigosa! – Interrompeu o amigo.
– Não sou tão má assim – ajeitou o pijama curto em seu corpo. – Não tem outra roupa pra usar? Sinto-me desconfortável com essa fatiota curtíssima!
– Infelizmente não! – Foi ríspido. – Você também não precisará, volte para a mesa de pedra, a senhorita não pode ficar perambulando por aqui!
– Por quanto tempo eu fiquei em hibernação? – Ignorou o dizer de Garu.
– Cinco anos! – Frank respondeu dando um passo à frente, o que fez Liz encolher-se.
– Cinco anos sonhando? – Ela brincou mesmo sentindo-se desconfortável.
– Isso não é um sonho, não se lembra quando colidiu com a árvore? Quando sua mãe desapareceu... – O guidou ríspido articulou.
– Onde está minha mãe? – Ergueu-se.
– Em um lugar muito longe daqui – Garu continuou.
– Oriente fica tão longe assim? – Interrogou esboçando um pequeno sorriso.
– Ela não está no seu vilarejo inepto! – O guardião bravio sorriu de canto de rosto, expondo os dentes podres e amarelos.
– Ah claro, não está lá! – Liz foi sarcástica.
Os guidous se entreolharam.
Enquanto Elizabeth se divertia com o sonho, lembrou-se dos momentos difíceis que passara antes da "hibernação", sentiu-se aliviada por estar sonhando e aproveitou o momento para se entreter, já que não era sempre que tivera sonhos esquisitos como o que pensava estar tendo.
– Vamos logo, volte para a mesa de pedra, precisamos te congelar antes que Cona volte! – Frank pareceu preocupado com Liz, e na verdade estava. Achara a moça tão linda que sentira um pouco de pena da situação que estava passando.
– Então essa tal de Cona também é perigosa? – Retorquiu achando graça da situação.
– Ela é uma feiticeira, nunca ouviu falar do que elas são capazes? – Garu tentou assustar a menina.
– Existem feiticeiras no meu sonho? – Arqueou as sobrancelhas esboçando um sorriso branco.
– Não é um sonho! – Os guidous falaram juntos.
Elizabeth fitou o teto desnivelado, rodeou os olhos na sala, observou a mesa de pedra bem ao centro do cômodo vazio, a água descongelada no chão, contemplou a única janela, as paredes de madeira e concluiu que o salão parecia ser escavado dentro de um tronco de árvore.
– Se não é um sonho – fitou os bichos –, como explica a hibernação humana em um bloco de gelo?
– Que pergunta idiota – Garu gargalhou. – Logicamente é magia!
– Não existe magia, nem feiticeiras e nem guidous! – Liz sibilou séria. – Não vejo a hora de acordar desse sonho idiota! Olha só pra mim, eu estou alta, meus seios estão grandes, minhas pernas robustas e eu tenho 15 anos!
– Não vejo problemas em sua aparência! – Frank voltou à bajular a menina.
Elizabeth revirou os olhos e antes de voltar a falar foi cortada por Garu:
– Só não entendo como você conseguiu se livrar da hibernação – coçou o queixo.
– Talvez porque isso seja um sonho? O meu sonho! E eu posso fazer o que quiser nele – encurvou o tronco.
– Já disse que isso não é um sonho! Mas não vou discutir com você, volte logo para a mesa, vamos congelá-la – o anão fanfarrão irritou-se.
– Agora que não volto! – Ela não voltaria de maneira nenhuma.
Garu e Liz se encararam num olhar fulminante, sentiu vontade de dar um soco nas fuças do guidou, mas se segurou já que não queria sujar as mãos com aquele energúmeno.
Suspirou.
– Frank querido – foi educada com o que a bajulara –, poderia me mostrar esse lugar tão belo? – Apontou para o bosque que via pela janela.
– Mas é claro...
– Que não! – Garu o interrompeu.
O guidou simpático encolheu as orelhas pontudas e deu a perceber quem era o líder ali. Liz sentiu-se em uma situação engraçada, aliviou-se novamente por estar sonhando e correu para fora da sala, pisoteando o chão frio e balançando os cabelos longos, que batiam nas coxas devido aos anos de hibernação.
– Volte aqui Elizabeth! – Garu berrou irritado, como sempre.
A menina transpassou toda a sala correndo, esquivou-se pelo portal e deu de cara com outro cômodo vazio, continuou a correr, onde chegou à uma porta dupla de madeira grossa, abriu-a bruscamente e deparou-se com um bosque esplêndido diante dos olhos, fitou-o e viu uma trilha de folhas secas no decorrer das árvores, olhou para trás, viu os guidous correndo em sua direção e entrou floresta adentro, veloz feita uma raposa.
– Volte aqui agora! – Liz ouviu ao longe a voz de Garu. Ignorou-o e continuou disparada em meio às árvores de diferentes espécies.
Depois de longos minutos percorrendo a trilha seca e estreita, a moça parou de frente a uma rocha, com as costas curvadas e as mãos nos joelhos, seu coração saltitava rapidamente, seu corpo movia junto da respiração e gotas de suor escorriam de seu rosto. Ela pensou no quanto o sonho era estranho, refletiu sobre as criaturas engraçadas que a vigiava e o quanto eles eram burros, a ponto de deixá-la escapar.
Recuperou o fôlego, sentou-se apoiando o dorso na pedra e ajeitou os cabelos para frente, observando-os maravilhada. Já que era um sonho, ela queria aproveitar. Apesar de achar aquilo tudo uma palhaçada, sua mente mudara muito, ela percebeu. Recordou-se das brincadeiras que brincava junto de seus amigos no vilarejo de Oriente, que para ela parecia ser ontem, e pasmou-se ao ver o quanto era infantil. Contemplou as coxas novamente e por fim os seios. Achou-se bonita, despertando em si uma coisa incomum no estômago, que ela mesma não sabia identificar.
Limpou o suor das bochechas, olhou entre a copa das árvores, mirou os raios fortes de sol que transpassavam as folhas e por fim, avistou o céu azul semelhante às seus olhos. Deu um forte suspiro e pensou estar com fome, mas imaginara que nos sonhos as pessoas não sentiam apetite. Soltou uma bufada no canto da boca e fechou os olhos, com a intenção de acordar para contar tudo para sua mãe, sobre os guidous, a hibernação, a feiticeira e o desaparecimento de Clarissa. Mas nada aconteceu.
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