17
Um Corpo Enfeitiçado
Como já era de se esperar, O Bosque de Ogash pregou uma peça em Afonso. Mas também, quem poderia imaginar que aquelas suculentas amoras seriam na verdade frutas mágicas, capazes de transformar alguém em pedra? E agora, tudo estava nas mãos de Elizabeth.
Tudo começou quando o arqueiro desapareceu entre as rochas, a primeira a sentir sua falta foi Ara, que ao olhar para trás não o viu.
– Para onde ele foi? – Sussurrou mais para si do que para os outros. – Afonso! – A fada gritou.
– O que foi Ara? – Liz indagou parando de caminhar e fitando o rosto preocupado da garotinha.
– Afonso, ele desapareceu!
Os três pararam e se entreolharam, Elpros não mostrou nem se quer um pingo de apreensão, a única coisa que disse foi:
– Ah, deixe o magrelo para trás! Ele nem faz falta!
A fada olhou para os lados e gritou por Afonso várias vezes. Voltaram para trás e nem se quer perceberam que haviam passado diante da fenda onde o arqueiro entrara, andaram por minutos na direção contrária do rapaz, que já estava do outro lado da montanha. As meninas lamentavam-se por não ter percebido o repentino sumiço, porém, tinham que continuar a andar, mesmo sem saber o destino. Quando se deram conta donde estavam, concluíram que entraram na mata fechada e que precisavam voltar pelo mesmo caminho, porém, para o desprazer de ambas, Elpros com sua capa grossa de pele de lobo acabara involuntariamente de apagar todos os rastros, pois ele estava na retaguarda.
– Não acredito! – Elizabeth gritou. – Não sei nem pra que você está nos seguindo!
– Oh meu Deus Elpros, o que vamos fazer agora? sua capa apagou todos os rastros! – Ara retorquiu desanimada.
– Acalmem-se, conheço o Pico dos Lobos como a palma de minha mão. Vamos, sigam-me – o homem as chamou e já saiu a andar entre os galhos e os cipós congelados.
Ambas seguiram o rapaz até encontrarem-se novamente com a parede de mármore escuro, tomaram o mesmo caminho e esquivaram-se até onde Afonso sumira. Por sorte, Liz, ao passar em frente a primeira das fendas que levara para a caverna, viu a fissura na rocha e logo constatou que alguma coisa passara por lá, já que havia rastros na neve no começo da passagem.
– Olhem, uma fenda! Acredito que Afonso fora por aqui – a Elementure apontou para a entrada.
– Para a Caverna das Águas Boas? Para que ele entraria aí? – Elpros retrucou indiferente.
– Vamos entrar! – Ara disse dirigindo-se até a abertura na rocha e já entrando-a facilmente.
– Não consigo passar por aí – Elizabeth proferiu.
– Muito menos eu – o rapaz tornou a dizer.
– Então fiquem vocês onde estão, vou dar uma olhadinha lá dentro e já volto – a fada falou já desaparecendo entre a rocha.
Transcorreram longos minutos de silêncio entre Elpros e a menina, até queriam conversar, mas a vergonha não permitia, tentavam olhar para todo o lado, menos um para o outro. Quando por fim, o rapaz pronunciou-se:
– Você é muito bonita, também ficou perdida em Ogash?
– Obrigada – Liz foi educada. – Estou aqui para... – Quase que põe tudo a perder. – Para... Sim, estou perdida aqui faz menos de uma semana...
– Ah sim... Se quer saber, estou aqui desde que nasci – deu um riso desanimado.
– Conte-me a sua história... Talvez eu conte a minha...
– Ah, claro – começou. – Meu pai era o fabuloso...
– Não tem ninguém lá dentro – Ara surgiu do nada entre a fissura, assustando ambos ao lado de fora. – Só um poço de águas maravilhosas, sem nada, nada mesmo – olhou para Elizabeth tentando dizer que se aquela era a caverna do livro, lá não tinha nada.
A Elementure entendeu o recado instantaneamente. E previu por um momento que mais cedo ou mais tarde teriam de invadir o Castelo de Mou. Mas o repentino sumiço de Afonso os encabulava excessivamente, não sabiam o que fazer e nem onde procurar, não podiam deixar o companheiro para trás.
– Vamos continuar a andar, talvez ele fosse para o outro lado da montanha – Ara proferiu tornando a andar ao lado da parede rochosa.
Se a observasse bem, acharia graça de sua estrema coragem, pois apesar de sua aparência infantil, a fada tinha 202 anos.
Entretanto, voltaram a andar. Até chegarem ao fim da enorme parede rochosa e desbocarem em um morro completamente congelado. Olharam o horizonte, as árvores enormes e os vales do bosque lá em baixo. Fitaram o céu escuro e constataram que uma tempestade estava para chegar e eles não pretendiam encontrá-la no extremo monte. Rodearam a montanha e logo estavam do outro lado. Tudo começara a ficar escuro. Branco. Tenebroso. Os três contemplaram o pico pontudo recoberto por neve no alto da montanha. Ouviram um falcão gritar e retomaram a caminhar rapidamente. Foi quando, por sorte, avistaram pegadas em formato de botas altas.
– Vamos, andem depressa, ele foi pra lá – Liz retorquiu acelerando o passo e apontando para o começo da nova floresta.
As nuvens escureciam-se cada vez mais. Um bloco negro cobria o céu, as nuvens claras pareciam ser devoradas. Elpros sentiu medo, sabia perfeitamente o que aquilo significava.
– Olha, amoras! – A Elementure apontou para a árvore nem muito grande quando acabara de entrar na mata.
– Fique longe delas! São venenosas! – O rapaz gritou.
Liz não ouve tempo para tocar as frutinhas, quando se aproximou da planta, viu embaixo da mesma uma pedra. Mas não uma pedra comum, uma em formato humano.
– Meu Deus – gritou dirigindo as mãos à boca. – Afonso?
Ara e Elpros dirigiran-se até Liz, que correra na frente apressada. Ela estava tão ansiosa, que percorrera toda a caminhada na frente de Ambos.
– O que houve? – A fada indagou com sua voz doce. Não percebera o corpo petrificado. Fitou o rosto ainda mais branco da Elementure e seguiu seus olhos para baixo da planta, que inibiam a visão, pois os ramos caiam quase no chão. – Oh céus, Afonso?
– Ora essa, que homem burro esse! Qualquer um saberia do poder das Amoras de Fogo...
– Cale a boca Elpros! – Gritou histérica. A menina mantinha-se imóvel. Os olhos encheram-se de lágrimas e não demorou para uma gota percorrer as curvas de seu rosto e cair no solo não muito congelado.
Elizabeth caiu de joelhos na terra, fitou o corpo magro do arqueiro esparramado no chão e chorou. Como uma criança.
– Calma – Elpros ajoelhou-se ao seu lado. – Ele não está morto, apenas dormindo!
– Como assi-i-im? – Liz soluçou.
– Seu amigo, sem sombras de dúvida, comeu das frutas dessa árvore, elas tem o poder de transformar qualquer coisa em pedra, porém, em seu interior existe lavas de fogo ferventes, que se tocarmo-la nos queimaríamos na certa, mas quem é enfeitiçado, só sobrevive por causa dela – respondeu calmamente, como se aquilo tudo não passasse de um fato comum.
– E como isso é revertido? – Ara indagou assustada.
– Somente com o poder dos Elementares...
Ara encarou Elizabeth num sorriso acanhado. Trocaram olhares incógnitos. Ambas pensavam na mesma coisa.
– Elpros – a Elementure disse –, se quiser nos deixar agora e voltar para sua vida...
– Não, não, não... Não quero voltar para minha vida normal, não há o que fazer – o rapaz interrompeu-a seriamente. Falou tão decidido que seu cabelo loiro chegou a brilhar.
Liz fitou o rosto de Ara.
– Devemos contar? – Indagou pondo as mãos na cintura.
– Acho que sim, além do mais se ele estivesse com outras intenções já teriam feito-as antes – a fada opinou.
– Do que estão falando? – O rapaz levantou-se confuso.
– Bom – Liz começou –, se conhece a profecia, saberá do que estou dizendo...
– Mas é claro que conheço, todos conhecem.
– Pois então, eu sou a menina de quem a profecia fala – ela foi direto ao ponto.
– Como assim? Quer dizer que você é a Elementure? Impossível – deu um sorriso odioso de deboche. Não estava acreditando.
– Sim, eu sou a Elementure, dominadora dos quatro elementos, a prometida a salvar o mundo dos Floris – tentou ao máximo não mostrar-se metida.
– Mostre então seus poderes, mostre! – Gargalhou. – Salve seu amigo!
Liz começara a considerar Elpros como amigo, pois até ali não havia atrapalhado em nada. Porém, depois de vê-lo duvidar da mesma, o que ela odiava, não hesitou em irritar-se. Teria de mostrar seus poderes a qualquer custo.
– Me dêem licença – Liz disse. Mesmo sem saber o que realmente fazer. – Me diga o que fazer!
– Não é a Elementure? Faça você mesmo!
– Diga-me logo o que tenho de fazer, não sou tão experiente assim...
Ara observava-os impaciente, achava um tédio assistir briguinhas idiotas de jovens daquele tamanho, ainda mais naquela situação, diante de um corpo petrificado.
– É só você cobrir toda a rocha com algum elemento – Elpros proferiu num riso ridículo. – E deixe corroer até só restar os contornos do seu amigo magrelo.
– Não fale assim de Afonso seu idiota! – A menina bradou raivosa. A ansiedade fervilhava em suas veias.
Um silêncio obscuro percorreu todo o lugar. Trovões ribombaram no céu escuro. Elpros mantinha um sorriso indiferente, como se em alguns segundos ele zombaria da moça mostrando que ele estava certo. Elizabeth fechou os olhos e tornou a ajoelhar diante da estátua deformada. Colocou as mãos abertas na rocha morna, se estivesse um calor escaldante, sem dúvidas queimaria as mãos de quem tocasse. Comprimiu o rosto e a única coisa que pensara era em ar, pois isso é o que tinha de abundancia em todo o lugar. Imaginou uma corrente azulada correr os contornos sólidos da estátua. Esperava um vento chicotear seus cabelos e dissolver como areia a rocha enfeitiçada. Mordeu os lábios e desejou com todo o coração que seus poderes se manifestassem. Então, para a surpresa de todos, os ventos cálidos romperam galhos e limparam árvores. Parecia que um furacão estava para acontecer. A Elementure continuou de olhos fechados, continuou a imaginar tudo que pudera, o capuz saiu de sua cabeça, a capa esticou-se no ar deixando parte da mochila amostra. As amoras voaram para longe, os ramos da pequena planta dançaram e a rocha se dissolveu. Os poderes de Elizabeth deram certo. O corpo enfeitiçado já era metade carne. Ao abrir os olhos, Liz viu a lava fervente desaparecer como o próprio ar. Deixando assim, o corpo do arqueiro adormecido e pálido no solo, com suas roupas desfiadas e parte queimada.
– Raios que me partam! Você é realmente a Elementure – Elpros retorquiu boquiaberto.
Um suspiro de alívio ressoou de Liz. Ara esboçou um largo sorriso de satisfação. Afonso saltou o ar que lhe prendia e tossiu um pouco desengonçado. Tremeu de frio.
– Ele está com frio – Ara agachou ao lado do arqueiro vendo-o tremer –, me empreste sua capa Elpros!
– Minha capa não!
– Rápido – Liz já tirara seu manto e jogara-lhe em cima do amigo. – Ele vai morrer!
– Não quer ser um de nós? – Ara indagou, já sacara que o rapaz queria aventura. – Então ajude seu companheiro! – Gritou jogando a pequena capa que lhe cobria em Afonso, deixando a mostra suas delicadas asas pálidas.
O rapaz mostrou-se surpreso ao ver uma fada, que para ele estava extinta há séculos, porém não questionou. Deu um largo suspiro insatisfeito e jogou a capa indelicadamente para as meninas. Cruzou os braços e sentiu frio, mas não muito. Ambas cobriram o arqueiro com a delicioso manto.
– Consegue falar? – Elizabeth tocou seu rosto suavemente, seu corpo parecia ferver por dentro, da boca expelia sereno e os olhos mantinham-se semi-abertos.
Afonso sorriu com dificuldades, os lábios estavam roxos. Ele não conseguia falar.
– Temos que achar um abrigo, a tempestade está chegando – Elpros proferiu incomodado, fitou entre a copa das árvores o céu orçado, as nuvens pareciam apostar corrida.
– Vamos ficar aqui, é só jogar alguns galhos por cima da amoreira – Ara retorquiu já saindo de baixo da planta e correndo até árvores pequenas e galhudas.
O rapaz ajudou a fada a tapar o abrigo, em menos de cinco minutos tudo já parecia uma toca. Nem tão quente, mas muito confortável. Os quatro comeram as frutas da mochila de couro, estavam famintos, beberam água e logo a tempestade chegou. Fizeram uma espécie de tocha e a acenderam, deixando-os aquecidos e iluminados. Elpros transformou-se em lobo, pois sua pelagem inibia uma grande parte do frio. Afonso, por mais que quisesse não se transformou em raposa, por vergonha do rapaz, que como tantos outros esnobariam de sua forma mágica, no entanto permaneceu com a capa felpuda do novo "amigo". As moças cobriram-se com as capas. Ninguém sentiu frio, estavam aquecidos e protegidos, mas os trovões os davam medo e a neve os preocupava.
– Acham que são que horas? – Ara perguntou. Estavam todos calados e sem assunto.
– É difícil saber quando se tem uma tempestade ao seu redor – Elpros disse. – Mas acredito que seja um fim de tarde.
Um longo silêncio retornou. Porém Elizabeth se manifestou:
– Conte-nos sua história – fitou os olhos caninos do lobo. – Como veio parar aqui?
– Sou de Monte Caprion, lembro-me como se fosse ontem... – Começou. – Eu andava pelo vilarejo, em busca de aventura, já estava cansado de jogar pedras nas janelas dos outros e sair correndo – gargalhou –, foi então que encontrei uma trilha, uma trilha curta que dava para uma mata, logicamente não hesitei em segui-la, mas quando me dei conta do que realmente fazia eu já chorava e esperneava em meio às árvores e cipós. Na época eu tinha seis anos, uma criança ainda. Perdido. Com fome. Mas depois, eu dormi. Dormi no pé de uma árvore enorme.
– A árvore que também nos fez parar aqui – Afonso lembrou-se, enquanto tentava falar.
– Como assim? – Ele não sabia.
O arqueiro e a Elementure explicaram tudo, contaram suas histórias, disseram o que passaram e o que tinham de passar. Ara contou-lhe da devastação no Carvalho de Sal, onde ela morou por anos e tudo se esclareceu como água.
– Então devemos partir para o Castelo de Mou amanhã bem cedo – Elpros retorquiu decidido, com um ar de liderança ressoando em suas narinas.
– Nós? – Afonso rebateu num riso irônico. – Desculpe fortão, você não pode ir!
– Mas é claro que pode – Liz olhou-o de relance arqueando a sobrancelha. – Não seja tolo Afonso, quanto mais ajuda, mais rápido chegaremos a Éron e mais rápido selaremos o portal.
– Está decidido. Elpros vai com a gente – Ara sorriu. Também apoiava a companhia do rapaz.
– Que merda – Afonso resmungou deitando-se de frente para a parede de ramos. – Boa noite! – Foi seco. Cobriu-se ainda mais com a capa e fechou os olhos.
Os três fizeram o mesmo. De modo que ficassem confortáveis no abrigo, mesmo não sendo tão amplo como queriam e nem tão seco como precisavam. Os trovões ribombavam cada vez mais altos, os galhos da amoreira se envergavam, a neve já cobrira muitos metros no solo. O caminho na manhã seguinte seria molhado e árduo.
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