𝚘 𝚝𝚎𝚜𝚝𝚎

𝟸𝟻 𝚍𝚎 𝚓𝚞𝚕𝚑𝚘 𝚍𝚎 𝟸0𝟷𝟼

𝟷𝟸 𝚑𝚘𝚛𝚊𝚜 𝚎𝚖 𝚆𝚘𝚘𝚍𝚕𝚊𝚗𝚍

𝚂𝙰𝙼𝙰𝙽𝚃𝙷𝙰 𝙷𝙰𝚁𝚅𝙸𝙲𝙺

TW: Aliciamento de menores.

A Ineffable Models, agência do meu pai, tem uma fachada muito bonita e contrastante com o resto de Woodland. O prédio de dois andares é moderno, branco, com várias áreas espelhadas. Há um tapete vermelho engraçado estendido pela calçada até as portas de vidro, que se abrem automaticamente numa recepção ampla e climatizada. O bege das paredes está quase todo coberto por rostos fotogênicos em molduras chiques. Algumas modelos posam ao lado de marcas pouco conhecidas e outras simplesmente encaram a câmera sob um filtro preto e branco.

Presumo que Amanda será a do primeiro tipo.

— Oi, bom dia... — Ela ainda está meio tímida ao se dirigir à moça atrás do balcão. — Meu nome é Amanda, eu tinha um teste marcado aqui...

— Virou consultório médico essa porra agora? — Colin cochicha, emburrado, olhando ao redor com uma careta.

A funcionária assente e digita rápido pelas teclas do computador.

— Amanda, sim, boa tarde. O John reservou uma sala pra você. E vocês, quem são? — A mulher se inclina para nos enxergar.

— Samantha Harvick e Colin Shields — Colin se adianta, um tanto grosseiro. — Somos os acompanhantes dela.

Eu o cutuco na costela como repreensão, a recepcionista assente de novo e Amanda atira em nós dois um olhar de expectativa por cima do ombro.

Ela está linda. Os cabelos ondulados se espreguiçam em cascatas por suas costas e a pele rosada com um toque sutil de maquiagem parece feita de porcelana. Sei que minha amiga vai arrasar nas fotos, independentemente de qualquer nervosismo bobo de principiante — e, por falar em nervosismo, eu mal consegui pregar o olho na noite passada.

Amanda estava resmungando em seus sonhos e a cama que dividimos é pequena demais para que eu possa ignorá-la, ao contrário da minha gigantesca ansiedade para o dia de hoje. Conhecer o meu pai é tão importante que qualquer humilde imprevisto já teria o poder de me arruinar.

Pode ser o meu despreparo e a falta de um discurso adequado. Eu ainda não sei bem o que dizer a John e o improviso me parece uma cilada.

Pode ser a gafe de ontem, no parque. Se Colin estiver certo sobre papai ter nos filmado, o homem talvez repare a coincidência ao nos reencontrar algumas poucas horas depois. Em contrapartida, acho que seria bom começar a utilizar a pequeneza de Woodland a meu favor. Coincidências rolam o tempo todo, Sr. Baker, ainda mais em cidade pequena. Por favor, não chame a polícia.

Pode ser aquela minúscula possibilidade de meu pai já ter plena ciência sobre mim e simplesmente não ligar. Eu sempre tive certeza de que esse não era o caso, mas, agora, estou com um leve pavor de ter me enganado.

Quem sabe Dona Tara nunca me contou a sua verdadeira história com John porque foi magoada por ele e não queria que o mesmo se repetisse comigo. É algo que qualquer mãe que se preze faria, mas eu preferia que ela tivesse sido sincera. Não sou mais criança há um tempo e poderia ter aguentado o tranco melhor do que vou aguentar se for rejeitada pelo meu pai uma segunda vez, ao vivo e a cores.

Respiro fundo, fechando os olhos para me acalmar.

Eu arrisquei meu mundo inteiro para estar aqui — e não que ele seja grandes coisas, mas é tudo o que eu conheço e tenho como garantido. John, por outro lado, quer eu goste ou não, ainda é apenas uma esperança que estou tentando alcançar.

E, que droga, eu espero que ele valha a pena.

— Ah, boa tarde! Bem-vindos à Ineffable Models!

Eu reconheço a voz instantaneamente, mesmo de costas pra ela, igual um cachorro com o dono. Meu pai está na escadaria de cerâmica, sorrindo largo na nossa direção, mais arrumado do que ontem. A blusa de malha foi substituída pela formal, complementada por um blazer marrom e calças de linho. Sem o boné de jacaré, o homem esbanja cabelos castanhos domados por gel e um porte 200% mais intimidador agora.

Eu só devo esbanjar uma cara péssima, porque Cole me apoia pela lombar como se para impedir um desmaio.

— O... olá, Sr. Baker — Amanda fala com ele, os ombros retraídos em um aceno acanhado.

— Amanda, olá. Pode me chamar de John, por favor. — Ele estica a mão pra ela, e Amanda aperta desajeitadamente. O olhar de papai recai sobre Colin e eu, quase se estreitando com um reconhecimento que eu torço para ser apenas fruto da minha imaginação. — E eles dois...?

— Colin é meu irmão e Samantha... — Amanda me olha de relance, incerta. — É minha melhor amiga.

— Nossa melhor amiga. — Colin pressiona minha cintura.

Papai nos mede de cima a baixo com a mais discreta descrição, e concorda com a cabeça. De perto, ele tem um cheiro agradável de sândalo e feições que mostram novas semelhanças com as minhas — eu juro que nossos narizes possuem a mesma pontinha arrebitada. Mas, para a minha tristeza, a marca de nascença segue desaparecida.

— Satisfações, meninos. — Ele anda até a recepcionista, abrindo caminho por nós. Seu braço roça no meu e estou eufórica como criança em noite de Natal. — Algum de vocês maior de dezoito anos pode assinar uns documentos pra mim?

Amanda abre a boca, mas Colin se adianta.

— Que documentos?

— Ah, o usual. Autorizações de direitos autorais, uso de imagem, distribuição, etc. — Muito tranquilo, papai entrega a ele a pilha de papéis com pinta de importante. — Pode ler até as letras miúdas, garoto, eu aguardo.

Colin folheia as páginas brutalmente, um ar crítico em sua expressão e a língua molhando a ponta dos dedos vez ou outra. Apesar do jogo de cintura jurídico que ele herdou dos pais advogados, Amanda e eu trocamos uma olhadela tensa, porque não parece que conseguiremos escapar das nossas idades reais para assinar algum termo metido à besta e essencial.

Eu olho para papai, distraído em uma conversa com a recepcionista.

Imagino se as nossas afinidades não vão além das marcas de nascença, se ele gosta de bichos e animações da Disney tanto quanto eu. Me pergunto se ele foi um cara decente para a minha mãe e se teria sido pra mim se tivéssemos tido a oportunidade. Ainda não estou totalmente convencida de que John não tem outro filho e, caso tenha, me pergunto se proporciona a ele um pedaço do amor que nunca proporcionou a mim.

Eu deveria ir pra terapia junto com a Dona Tara. Já estou enciumada de um meio-irmão hipotético que pode nem existir.

Debaixo do peso da minha encarada sem-vergonha, papai vira o rosto e prende nossos olhos uma vez mais. Eu tenho quase certeza de que seria inteligente disfarçar para evitar qualquer lembrança do parque, mas só consigo sorrir. É tipo um gesto involuntário, se apoderando da minha boca e crescendo rumo às pontas das minhas orelhas.

Aposto que pareço uma maníaca, embora meu pai seja tão amável que não hesite em sorrir de volta.

— Hm... — Colin murmura para os documentos. — Olha só, cara, nenhum de nós tem dezoito anos, e nem somos responsáveis legais uns dos outros. — Ele devolve os papéis ao meu pai, e Amanda esbugalha os olhos para o gêmeo. — Não vai dar pra assinar nada, não, foi mal.

Embasbacados, John e a funcionária mal se movem.

Amanda abaixa a cabeça para seus punhos, pronta para descer o cacete em Colin assim que meu pai nos dispensar — e eu quero até me juntar à garota. Afinal, o teste dela era a minha grande chance de me aproximar de John e conhecer um pouco mais dele antes de devidamente revelar quem eu sou. Tirando isso, não me sobra mais nada. Todo o resto foi em vão.

Colin é o único que se mantém impassível, queixo erguido, doido para nos arrastar pelas orelhas para fora da agência. Ele realmente não simpatiza com John desde o início, e eu finjo não entender o porquê para não me ofender. Minha mãe tem um bom julgamento com homens — na maioria das vezes —, e não se envolveria com o cretino incurável que Cole pensa que meu pai é. É claro que ela também terminou com ele e nunca mais sequer o mencionou, mas muitos relacionamentos funcionam assim.

— Bom. Então, se estiver tudo bem pra Amanda, nós podemos esquecer as formalidades e fotografá-la mesmo assim. — Papai larga o chumaço de folhas na mesa, de modo que elas quicam na quina da madeira. — No entanto, sem a autorização de um maior sobre o uso de imagem, não vai dar pra enviarmos o material à marca. Aí...

— Aí seria só um ensaio sem propósito com o tema de praia? — Colin cruza os braços e aperta os olhos.

Sua falta absoluta de tato engelha a testa de papai e arregala os meus olhos e os de Amanda. Pelo trincar do maxilar dela, eu tenho certeza de que a garota está por um tris de fazer o irmão engolir os próprios dentes.

— O ensaio pode ser como a Amanda desejar. Nós temos todo o aparato preparado e eu só não quero desperdiçar a viagem de vocês. — Papai fita minha amiga. — Você disse que vive em Rochester, não disse? É uma distância considerável.

Colin quem arregala os olhos pra ela agora, inconformado pela gêmea ter fornecido sua localização para um estranho na internet — o que seria compreensível se Amanda não falasse com o meu pai através do Facebook, pelo perfil onde a mesma informação é acessível em um clique. E também não é como se Rochester fosse um ovo feito Woodland. Ninguém a rastrearia por lá apenas perguntando para algum pedestre bocudo.

Colin está de fato perdendo toda a sutileza, e, eu, a paciência.

— Acho que você devia ir em frente, Mandy — digo, depressa, antes que meu melhor amigo se atreva. — Mesmo que as fotos não sejam usadas para o que você gostaria, ainda podem servir para um portfólio. E ganhar experiência é legal também.

A mira do julgamento de Colin muda para o meu rosto, ao passo que sua irmã não parece lutar muito para aceitar meu conselho. Papai sorri (diretamente pra mim! De novo! Sem que eu sorria primeiro!), e concorda.

— Sua amiga tem bons argumentos, Amanda. Ninguém evolui sem a experiência necessária.

Colin me lembra um vulcão em erupção de tão vermelho, mas segura a irritação nos lábios comprimidos. Uma veia salta em sua testa quando a irmã sorri para papai.

— O senhor está certo, Sr. Baker. Vamos fazer o ensaio.

— Maravilha. — Papai alarga o sorriso. — Por favor, queira me seguir até...

— Nós vamos com ela — Cole se pronuncia novamente, sem brechas para oposições.

O escrutínio de papai sobre ele é diferente do anterior, mais severo. É evidente que o homem já retribui a hostilidade de Colin em minutos que se conhecem, e só quero esganar o garoto pela tolice.

Cole não parece entender que seu comportamento idiota me machuca mais do que ao verdadeiro alvo. Eu adoraria que ele parasse com a merda de macho alfa por um segundo, porque não era com tantos pés esquerdos que eu planejava introduzir John Baker em nossas vidas.

John Baker, merda, o pai que estive aguardando por dezesseis anos.

— Tudo bem — ele cede. — Mas meus estúdios não são lugar para teimosa. Uma indelicadeza e você está fora.

Amanda deforma o rosto em uma caretinha constrangida, e eu seguro Colin pelo pulso com toda a minha força. Estou implorando para que ele fique na linha ou, se a civilidade for difícil demais para seus neurônios pré-históricos, vá embora. Eu ainda estarei com Amanda. Não precisamos do mau-humor de um gêmeo malvado contaminando o ambiente.

— Sem problemas. — Colin finge um sorriso. — Vou ser o cara mais delicado da cidade.

— Ah, não será possível — papai desdenha. — É um cargo muito acima da sua capacidade.

Okay. Isso foi um pouco desnecessário.

Colin me olha com o maior desgosto ao subir as escadas ao meu lado e atrás de John e Amanda. Eu posso enxergar o tá vendo só? dançando nos olhos do garoto, mas ele sabe que não levou a patada de graça. Meu pai não é obrigado a aturar quieto os desaforos de um forasteiro na sua agência de modelos logo em uma segunda-feira de manhã, um dia já ruim o suficiente sozinho. Eu só dou de ombros e pulo os degraus.

No estúdio, há uma penca de refletores pendurados em cabos de ferro, uma câmera a postos na mão de um barbudo e araras de roupas aos montes. O cenário é composto por cartolina e estampas nada praieiras, a alguns metros de um cantinho modesto com uma mesa, uma cadeira e uma maquiadora. Tem até uma mesinha de lanche, cercada por bancos de plástico.

Amanda aparenta ter pisado em um reino encantado. Seus olhos cintilam e seu sorriso se expande com a atenção devota para tudo o que a rodeia. Meu pai a apresenta para a equipe, diz nomes e tagarela, e Colin bufa nos calcanhares dos dois feito uma sombra: Mudo e sombrio, pra lá de sorrateiro.

Cansada de sua atitude, eu sento e me sirvo de um copo de café.

Enquanto belisco uma mãozada de biscoitinhos também, assisto papai sorrir como um anjo e conseguir aos poucos que Mandy relaxe, se sinta confortável e acolhida. Considerando que é extremamente divertido ver o homem ser um querido, eu não me incomodo com a significativa demora entre produções e conversinhas para que os trabalhos de fato comecem.

Colin só se afasta de John e da irmã quando Amanda já está posicionada no foco das luzes, arrumada que nem uma boneca, de novo com sua timidez. Ela parece sem-graça de posar na frente de tanta gente.

— Tomara que ninguém invente de pedir pra gente sair pra Amanda ficar mais à vontade — Colin resmunga no outro banco, triturando um biscoito com a mordida infeliz. — Só vão me expulsar daqui a tiros.

Eu reviro os olhos intensamente.

Para prevenir uma discussão, resolvo puxar meu assento para mais próximo de onde o fotógrafo propõe que Amanda sorria e cruze as pernas. Ela está adorável em um vestido amarelo até as coxas, mas deve ter se esquecido de como mostrar os dentes sem parecer um animal rangendo.

A garota me nota pelo cantinho do olho e as sobrancelhas se erguem, como se eu fosse seu antídoto pessoal para o nervosismo.

— Sam! — ela sussurra, aliviada.

Por causa da distração de sua modelo, John se vira também, e eu quase deixo cair o último biscoito.

Não está ajudando, pai.

— Algo de errado, hm... — Ele gira o rosto. — Samantha, não é?

É maravilhoso escutá-lo dizer o meu nome pela primeira vez, em seu sotaque ligeiramente carregado do leste. Algo tão banal como um pai dizendo o nome da filha é, pra mim, um afago eterno no coração.

— Sim. Significa boa ouvinte. Minha mãe estava muito sozinha quando eu nasci e precisava de uma boa ouvinte, nem que fosse um... bebê. Aí, bum, Samantha.

Um silêncio embaraçoso arreia sobre a sala.

Amanda intercala piscadas frenéticas entre seu irmão (ainda enfezado nos fundos) e eu, tentando adivinhar quem vai foder o ensaio primeiro. John e a estafe me encaram com imensas caras de paisagem, e me sinto encolher em vergonha e sorrisinhos amarelos. De repente, uma revolta inédita com Gothel afunda o último prego em meu caixão:

Eu talvez soubesse lidar melhor com meu pai se tivesse tido algum.

— Parece que a sua mãe tem muito bom-gosto — diz John, só por dizer.

Meus ombros despencam, um sorriso genuíno massageia meus músculos. Sim, eu sempre suspeitei que Dona Tara tinha bom-gosto — e agora está confirmado.

— Talvez devêssemos botar alguma música para descontrair? — alguém sugere.

— Seria ótimo, obrigada! — Amanda exclama, quase em desespero. — Pode ser country?

Até que enfim, as fotos e flashes se iniciam.

Ao som das músicas mais vaqueiras e alegres da década, minha melhor amiga se solta para a câmera e todo o lance de modelagem que ela aprecia lhe serve como uma luva. Amanda sorri, salta, gargalha e abre os braços para as fotografias, intensificando suas reações quando faço gracinhas atrás do fotógrafo. Antes que possa me dar conta, estou ao lado dela no cenário, igualmente extrovertida e animada, imitando as caras e bocas das Panteras — por mais que o terceiro elemento do nosso grupo continue isolado perto dos biscoitos, só um pouco menos carrancudo.

É como se eu estivesse no topo das nuvens. O ar é mais limpo de cima, e preenche meus pulmões com facilidade. Com as risadas de papai encorajando nossas palhaçadas junto da equipe, o fantasma da solidão que senti a infância inteira é espantado. Eu finalmente destruí a maldita torre.

John está pegando água em um bebedouro no corredor quando uma breve pausa é anunciada. Amanda foi trocar de figurino, Colin deu o braço a torcer para conversar com alguém educadamente, e eu aproveitei para saltitar de fininho no encalço de papai. Não sei que assunto inventar e nem tenho muito tempo para decidir, pois o homem abaixa o copo de plástico e me enxerga assim que a porta do estúdio fecha às minhas costas.

Eu tento sorrir pra ele, papai pende a cabeça, e meu cérebro quase entra em combustão espontânea para formular uma frase.

— Está sendo um bom ensaio — vomito, desconcertada. Ao menos não foi nada comprometedor. — Obrigada por fazer isso pela Amanda.

— Que nada, é o meu trabalho. — Papai despeja seu copo no lixo, e me olha com certa dúvida. — Vocês duas parecem bem chegadas.

Oh. Ele está demonstrando interesse na minha vida! É preciso muito senso de ridículo para abafar o impulso de celebrar em pulinhos.

— Sim, somos. Nós três. — Com a minha menção indireta a Colin, eu limpo a garganta e aperto os punhos. John me observa pacientemente. — Eu sei que o meu amigo pode ser meio... extremo... às vezes... mas é só preocupação. Ele não faz por mal, eu juro. Peço desculpas por ele.

Papai curva os lábios e meneia com a cabeça.

— Amanda não disse que traria um guarda-costas e uma amiga tão gentil. — Ele gesticula com a mão. Apesar da alfinetada em Colin praticamente dar a entender que minhas desculpas em seu nome não foram aceitas, estou contente pelo elogio. Eu sorrio e não defendo o garoto de novo, para não estragar a interação. — Você me remete a alguém naquelas fotos, sabia?

Ah, merda. Parque traidor.

— Oh, jura? — indago, a voz estrangulada.

Talvez não seja tarde para cobrir metade da cara com o cabelo e fingir que gosto de escutar Evanescence no escuro do meu quarto.

— Sim. Uma ex-namorada minha, na verdade.

Espera aí. Para tudo.

ELE ESTÁ FALANDO DA MINHA MÃE?!

Eu o remeto a alguém. Uma ex-namorada sua. Uma ex-namorada que pode muito bem ser a Dona Tara, já que todo mundo diz que nós somos a cópia uma da outra — eu discordo. Minha mãe é infinitamente mais bonita do que eu, mas nosso parentesco é inegável nas fotos dela com a minha idade. E, pelos meus cálculos, ela já devia conhecer o meu pai aos dezesseis. O namoro decerto deve ter durado alguns anos antes de mamãe engravidar aos dezenove.

— Ah, sei. — Eu falho em camuflar o entusiasmo dilatado em minhas pupilas. É possível que realmente desmaie com o tanto de adrenalina que ela me dispara. — E por que vocês terminaram?

Tapo a boca, não ágil o bastante para que meu enxerimento não atinja os ouvidos de papai e me renda uma careta em resposta. Pelo lado bom, ele se diverte com o desastre invencível que sou em sua presença. Pelo lado ruim, não acho que John seja muito aberto com completos desconhecidos acerca do seu passado amoroso. Eu é que não vou julgá-lo.

— Ainda não sei direito até hoje — ele replica, indiferente. — Acredito que não era pra ser.

Minha língua formiga com mais questionamentos, mas eu os controlo dentro da boca. A necessidade de armar uma reunião entre meus pais é quase tão vital quanto respirar. Eu gostaria de ser uma gêmea como Amanda e Colin para promover a minha vida a um remake mais realista de Operação Cupido.

— Ela deve ter sido uma mulher marcante. A sua ex. Pra você ainda lembrar...

Quieta, quieta, quieta. John não pode perceber que eu tenho mais ou menos uma ideia de há quanto tempo o seu namoro terminou.

— É, marcante. Por aí. — Ele franze o nariz para o outro lado do corredor, pensativo. — Mas e você, Samantha? Tem algum ex ou atual?

Cuspo uma risadinha desafinada.

A indagação dele é desconfortável como Dona Tara querendo falar sobre De Onde Vem Os Bebês comigo, mas não me importo. Pais só são pais se atirarem seus filhos em desconforto puro de vez em quando.

— Nenhum. Minha mãe é meio rígida e eu ainda sou nova.

Meio. É o maior eufemismo da história. Minha fuga que o diga.

— Huhum. Quantos anos você tem mesmo?

— Dezesseis e dois dias — respondo, orgulhosa, o peito estufado.

— Oh! Parabéns atrasado, não?

Rio um risinho confundível com um espirro.

— Muito obrigada, p... — Esbugalho os olhos. — John.

— Sabe, já que você está de visita, eu talvez podia levá-la a um jantar no melhor restaurante de Woodland. — Ele se apoia lateralmente no galão de água, uma mão no quadril, olhos atentos ao meu rosto. — Tudo por minha conta, óbvio, como um presente. Eu gostei de você. É bem madura pra sua idade, diferente de uns e outros.

Minha nossa. Minha nossa. MINHA NOSSA!

É perfeito!

Um jantar com o meu pai antes de voltar para casa e enfrentar as consequências dos meus atos é indiscutivelmente perfeito. Já prevejo uma conexão familiar se formando nas entradas e no prato principal, e é exatamente disso que preciso: Mais conversa e intimidade do que uma manhã em uma agência de modelos pode oferecer. Conhecendo um pouco mais do meu pai, será mais simples definir como contar o que ele precisa saber.

Não vou deixar outra oportunidade escapar. Depois de conseguir um jantar, também consigo revelar a verdade com o mínimo de drama.

— Tudo bem, certo. Soa bacana. Eu devo... a que horas... o endereço?

Meu pai acha graça. Não há dúvidas de que eu o entretenho. Já é um bom começo.

— Aqui. — Ele me dá um retângulo de papel, com uma textura sedosa que desliza sob minhas digitais. John Barker, agenciador e produtor, é o que diz o cartão. — Pode me contatar pelo número. Nós acertamos tudo pra hoje à noite, sim?

Eu uso tudo de mim para conter a empolgação na balançada de cabeça. Meu pai é o cara mais legal do mundo.

— Hoje à noite. Sem problemas.

Preciso guardar esse cartão como se fosse a minha vida.

— E, ah, que fique só entre nós. Eu não quero jantar com o seu amigo esquentado também.

Em seu lugar, eu também não iria querer.

— Claro, claro. Só entre nós. Afirmativo.

— Maravilha. Conversamos mais tarde, Sam. — John me lança uma piscadela, e retorna para o estúdio com Amanda.

Eu me certifico de que a porta de vidro bateu antes de pular, expelir gritinhos mudos e socar o ar. O bom e velho nervosismo rodopia em meu estômago de antemão, mas não tenho com o que me preocupar. Meu pai certamente vai gostar de mim como eu já gosto dele, porque é o que nós merecemos em compensação pelos tempos que não vamos recuperar.

Apalpo o pingente de sol em meu pescoço, um sorriso quase tosco nos lábios.

Enfim, não sou mais uma princesa perdida.

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