𝚘 𝚙𝚊𝚛𝚚𝚞𝚎

𝟸𝟺 𝚍𝚎 𝚓𝚞𝚕𝚑𝚘 𝚍𝚎 𝟸0𝟷𝟼 

𝙷𝚘𝚛𝚊 𝟸𝟹 𝚍𝚊 𝚟𝚒𝚊𝚐𝚎𝚖

𝚂𝙰𝙼𝙰𝙽𝚃𝙷𝙰 𝙷𝙰𝚁𝚅𝙸𝙲𝙺

Nós chegamos a Woodland uma hora mais cedo do que o previsto.

Não sei se foi por Amanda ter enfim se familiarizado com a direção ou pelo Universo simplesmente estar colaborando conosco — embora eu duvide que qualquer entidade cósmica colaboraria com os planos de três moleques insolentes. O que sei é que, ao passarmos pela placa de boas-vindas à cidade, os gêmeos comemoraram e eu só me senti meio culpada.

Não que eu não esteja feliz por chegar aonde chegamos, mesmo aos trancos e barrancos. Eu ainda quero conhecer o meu pai e não me arrependo de nenhuma das montanhas que movi pra isso, mas é um tanto chato que minha mãe tenha precisado ser uma delas.

Gothel continua bombardeando meu celular com mensagens e ligações, ao ponto de literalmente destruir toda a funcionalidade dele. Na última vez que tentei ligá-lo, o coitado não demorou a aquecer pela sobrecarga.

Também sei que Dona Tara só está preocupada.

Eu nunca aprontei nada remotamente similar à uma fuga secreta por milhas de estrada rumo ao meu progenitor desconhecido; é óbvio que mamãe iria arrancar os cabelos. Em algumas mensagens, sua única súplica era por um indicativo de que estou bem e inteira — e, ignorando um ou dois comentários preconceituosos sobre caminhoneiros tarados, eu até achei a solicitação bem razoável, e acabei mandando um alô rápido via Colin.

Estou bem. Por favor, pare de me perturbar, foi tudo o que eu disse, antes de realmente começar a me sentir um monstro. Também consideraria razoável levar a minha primeira surra da vida quando voltasse pra casa.

— Olha só... — Colin murmura do banco traseiro. — Parece que chegamos numa data especial.

Tiro minhas unhas roídas da boca para olhá-lo.

Alguns quilômetros adiante, as luzes da cidade pequena irradiam tons de amarelo pálido em contraste com a noite escura. O para-brisas não é amplo o suficiente para representar a importância que essa vista tem. É o lugar onde tudo começou, onde minha mãe e meu pai provavelmente me conceberam dezesseis anos atrás. Estamos mais perto do que nunca, e Amanda mantém o pé confiante no acelerador.

— Data especial?

— Urrum — meu melhor amigo diz, o rosto iluminado pelo telefone. — Aniversário de noventa anos da cidade.

— Noventa anos! — Amanda guincha. — Que gracinha.

— E está tendo uma festa em um parque de diversões reformado. Tipo um festival.

— Eu já estava dentro quando você falou parque! — A garota quica no banco, animada. — Vamos direto pra lá. Colin, pega o endereço.

Ele parece tentado a contestar, cansado pela viagem, mas qualquer coisa que diga é refutada pelos olhinhos pidões da gêmea ou sua consciência pesada sobre certo celular jogado na pista.

— Não devíamos nos acomodar no hotel primeiro? — eu tento.

— Bobagem. — Amanda abana uma mão. — Se eles aceitam animais e não exigem nossas identidades, não teremos problemas.

Como se para concordar, Miado bota a língua pra fora.

— Tudo bem — Colin cede, e acaricia o espaço entre as orelhas do cão. — Mas você não vai gastar toda a nossa grana em brinquedos.

— Ai, chato — Amanda resmunga. — Eu deveria ter te devorado no útero quando tive a chance.

Eu me distraio do bate-boca fraternal e volto com a cutícula do dedão para os dentes. Tateio o pingente de sol em meu pescoço com a outra mão, atacada pela sensação de que o tamanho da rodovia só aumenta com a velocidade dos pneus. Nunca vi nada mais estranho. Preciso simultaneamente chegar de uma vez e congelar o tempo para que possa respirar fundo por umas duas horas.

Meu pai. Eu vou mesmo conhecer o meu pai.

Quero dar uma olhada no Facebook dele de novo, por mais que já tenha decorado as postagens antigas e percebido que ele não é muito ágil nas novas. Papai mandou uma mensagem no privado de Amanda logo depois que deixamos St. Robert, para perguntar como ela estava e confirmar que o teste de amanhã segue marcado. Mesmo que quem dirigisse o carro ainda fosse Colin, a garota quase capotou todos nós com sua euforia ao saber que a equipe da agência já estava pronta pra ela.

Meu pai é de fato um docinho.

— Sam...? — o chamado cauteloso de Colin me abate com um leve susto. — Tá tudo bem?

Limpo a garganta, desconcertada.

— Tá, tá. Só pensando.

— Pensando na morte da bezerra, criatura? Se liga! — Amanda me dá uma palmada na nuca. — Nós estamos oficialmente em Woodland!

Eu pisco para a exclamação dela, e grudo a cara na janela do jeito que Miado poderia grudar — acho que as comparações de Colin não estão tão equivocadas, afinal.

Woodland é linda. Eu digo, nada fora dos padrões para uma cidadela de alguns milhares de habitantes, mas linda porque tem a cara de um lar que abriga muitas histórias, incluindo a minha. O aspecto todinho da cidade acompanha um clima meio colonial, com uma arquitetura charmosa.

As casinhas de dois andares, de portas altas e janelas emolduradas por tinta. Os estabelecimentos pequeninos, aconchegantes. Os banquinhos de praça no meio das calçadas de pedra, os fogos coloridos estourando no céu, as pessoas transitando com a tranquilidade frívola de um domingo à noite. É uma maravilha contagiante, injetável nas veias.

— Puxa...! — arfo, uma mão no coração. — Eu poderia ficar aqui pra sempre.

— Uh! Será que a sua era Rapunzel vai ser extinta de vez? — Amanda aperta os dedos no volante.

Chio uma risada desafinada pelas narinas. Colin também tem o foco voltado para a cidade, mas eu aposto que está bem atento à conversa.

— Quem dera — digo para a minha amiga. — Minha vida não vai mudar como a dela mudou no filme. Eu vou é ser presa em cativeiro pelos próximos dois anos e a era continuará firme e forte.

— Talvez seu pai possa interferir — Colin intervém. Eu disse que ele estava atento. — Se ele realmente não souber de você, sua mãe pode até ser processada por alienação parental.

Meneio com a cabeça.

Eu sei que Gothel estaria errada em ter me escondido do meu próprio pai por mais de uma década, mas não quero metê-la em encrencas com a justiça. Acho que sou meio abilolada pela influência dos contos de fada mesmo, porque adoraria que tudo terminasse com baldes de perdão e reconciliação para todos os lados. Sem processos, brigas e merdas no ventilador.

Em contrapartida, se o pior acontecer, acho que é justo dizer que foi por minha causa.

— E se meu pai souber de mim e simplesmente não quiser nada comigo?

— Aí nós vamos dizer uns bons desaforos pra ele — Amanda fala, determinada. Colin assente discretamente, girando os punhos fechados. — Mas pode ser só depois do meu teste?

O garoto checa o celular de novo.

— O parque é na próxima curva, Mandy.

— Beleza. — Minha amiga se debruça sobre o volante. — É só seguir esses gritinhos remelentos e o cheiro de algodão doce.

E não é que ela estava certa?

Nós estacionamos diante de uma construção grande, com uma fila modesta para a compra de ingressos, e dois seguranças checando entradas na porta. Atrás do gradeado dos portões, só se vê crianças e cores do arco-íris piscando em brinquedos. Tem uma roda gigante, uma daquelas barcas insanas, barraquinhas de pesca e montanhas-russas. Admito que parece bacana.

Na fila, Colin estipula um valor máximo para Amanda gastar, já com os ingressos contados. Aos nossos pés, Miado pula sobre as patas e remexe as orelhas freneticamente, radiante com o ambiente novo e tumultuado — e ele não é o único.

— TIRO AO ALVO! — Amanda berra, os braços levantados, quando entramos no parque. — Vou ganhar um prêmio irado pra você, Sam!

— Não esqueça do nosso orçamento! — Colin grita às costas dela.

Eu solto uma risadinha baixa e inalo profundamente o ar úmido de Woodland. Engancho meu braço ao de Colin e o arrasto junto comigo e com Miado para um passeio contemplativo por entre os pedestres.

O garoto sorri.

— Até que enfim chegamos, hein?

— É... — Sorrio de volta. — Nem acredito que deu tudo certo.

Ao menos, tudo certo pra nós. Minha mãe deve ter uma opinião totalmente diferente agora.

Dona Tara nem sonhava sobre a minha obsessão com a verdadeira identidade do meu pai, sobretudo depois que Weston apareceu na jogada — é vergonhoso que eu realmente morra de ciúme da atenção que ele ganha dela. Os dois compartilham suas tradições particulares, como dias de jogos e noites de vinho, e às vezes parecem mais jovens do que eu namorando no sofá.

Sou uma criança mimada com problemas de dividir, mas, dessa vez, convenhamos que a culpa é um pouco da Dona Tara.

Ela foi somente a minha mãe desde sempre (biruta, controladora e psicótica, mas minha mãe), e de uma hora pra outra precisa ser a noiva de alguém também. Eu não gosto disso. Acho que eles estão avançando rápido demais e me deixando de escanteio, mesmo que seja só implicância minha.

É possível que uma minúscula parte de mim tenha fugido por um ato de birra ao se sentir abandonada. Se lembrou da sua filha agora, mãe?

— Obrigada por ter me ajudado — digo a Colin, tão logo percebo que minha cabeça fala pelos cotovelos porque nós estamos quietos demais. — Sei que a ideia foi minha, mas não teria sido nada sem você e a Amanda.

Ele estica os lábios num sorriso acanhado.

— Não precisa me agradecer, Sam. Sabe que meus motivos são bem egoístas. — Ele dá de ombros. — Eu só queria enfartar os meus pais.

— Mentiroso. — Eu enfio um cotovelo na costela dele, e Cole ri. — Você me ajudaria de qualquer jeito. Sei que não resiste à uma boa armação.

Ele iça o cantinho da boca.

— Você é minha melhor amiga. É meu dever fazer qualquer coisa por você.

Torço uma mão na coleira de Miado e a outra em volta do braço dele.

Algumas de suas tatuagens não autorizadas estão à mostra por debaixo da manga da camiseta polo. A maioria não tem nenhum grande propósito além do estético (e de enfartar uma dupla de babacas, como de costume), mas Colin dedicou duas para sua irmã e eu. Tenho meus olhos desenhados bem no bíceps dele, no meio de uns rabiscos muito sem sentido, e a assinatura de Amanda está um pouco acima, em negrito.

É lógico que Colin não brinca quando diz que somos as meninas de sua vida. O garoto é intenso.

— Olha só o que eu consegui pra você, Sam! — Sua gêmea ressurge de um punhado de pirralhos barulhentos brincando com churros. Há uma centopeia colorida nas mãos dela e um sorriso pulsante no rosto. — Foi o mais parecido que tinha com um camaleão.

Eu acho graça, aceitando a pelúcia.

— Obrigada, Mandy. Mais um ótimo presente pra guardar.

— Tente impedir a sua mãe de queimar todos, sim? — Colin tira graça.

— Engraçadinho. Ela não...

A força com a qual Amanda agarra o meu punho de repente silencia as minhas palavras e arrasta meu olhar confuso para a sua expressão pálida. Minha melhor amiga está congelada em posição de alerta, os olhos esbugalhados presos na região atrás de mim e Colin, os lábios entreabertos em um berro mudo. É, no mínimo, assustador.

— Não olhem agora, mas acho que temos um conhecido perto do carrossel.

Eu franzo as sobrancelhas.

— Que conhecido? A única pessoa que...

Contrariando o pedido da irmã, Colin olha rapidamente por sobre o ombro. De imediato, seus músculos se enrijecem e ele vira de volta a jato para cochichar em meu ouvido.

— É o seu pai, Sam. O seu pai está aqui.

O QUÊ?!

Eu me viro com tudo, desprezando minhas concepções mais básicas sobre compostura e naturalidade.

Meus olhos se atraem instantaneamente para o rosto do homem ao lado do carrossel que gira pôneis, cavalos e unicórnios com uma música açucarada. Por entre as barras onde as crianças seguram, John Barker tem uma filmadora cobrindo um dos olhos e um sorriso de esgar.

É ele. Eu já vi essa camisa verde em inúmeras fotos do Facebook, sem falar no boné com o jacaré no centro.

Acho que o Universo anda mesmo colaborando conosco, através de seus próprios métodos questionáveis.

— Droga, droga, droga. Ai, meu Deus. Eu não estou pronta para falar com ele. — Depressa, eu devolvo ao meu pai só a visão da minha nuca e dos ombros retesados. Espero que não tenha sido gravada com a câmera. Se ele me ver no vídeo depois, pode pensar que sou uma perseguidora quando eu de fato tentar abordá-lo no teste amanhã. — É uma oportunidade ótima, mas eu ainda não estou pronta!

— Relaxa, Sam. — Colin toma o meu rosto entre as mãos para que eu me acalme. — Ninguém vai empurrar você pra cima do cara.

— Por que ele está aqui? — pergunto, baixinho. — Será que ele tem algum filho pequeno? Algum que pode estar no carrossel!

Amanda troca o peso de perna e fica espiando pela lateral da minha cabeça.

— Nós não vimos nada sobre nenhum filho no Facebook — Colin pontua.

— Piorou! Se ele estiver escondendo, quer dizer que pode ter ignorado a minha existência também!

— Ele não esconderia a criança nas redes sociais e viria com ela a um parque — Amanda conjectura. — Pais desnaturados não funcionam assim.

— Talvez quisesse protegê-la da exposição — Colin chuta.

Afundo as unhas no braço dele, incentivada pelo nervosismo.

— Então existe mesmo um segundo filho! Eu tenho um irmão!

— Samantha, se controla! — Amanda gralha. — Estamos apenas teorizando! Seu pai pode estar aqui só porque é o aniversário de Woodland. E é legal.

— Já ouvi dizer que evento em cidade pequena é sempre uma reunião de moradores. — Colin lança uma encarada enfezada para a irmã. — Nós devíamos ter ido para o hotel.

Culpada, a garota retrai os ombros até as orelhas.

— Como é que eu ia adivinhar que cidade pequena é pequena mesmo?

Eu mordisco o interior da bochecha sem parar, sacodindo a perna com a mesma frequência. Miado, já incomodado pela minha inquietação, se enrosca pelas minhas canelas.

— Eu preciso saber se ele tem outro filho. Amanda, vai lá e pergunta.

— Tá doida?! — Ela dá um salto pra trás. — Vê se a minha cara é de pau, Samantha.

— Você vai para as fotos com ele amanhã, não vai? Não custa nada se apresentar um dia mais cedo! Por favor, Mandy!

— Ele vai achar que eu sou maluca, Samantha! — Amanda tem o mesmo receio que eu. — Não posso perder minha provável chance de ouro com a marca de protetor solar por isso.

A cara de Colin se fecha em uma careta.

— Protetor solar? Mas que merda...

Me atrevo a olhar de relance para o meu pai uma segunda vez, a curiosidade vencendo a precaução.

Não consigo avaliar muito de longe, até porque várias cabeças passam na minha frente e papai abaixou a sua para algo em suas mãos, mas é o mais próximo que já estive da outra metade do meu DNA e de um derrame. Eu herdei uma marca de nascença desse cara e poderia matar um vendedor de cachorro quente para vê-la.

Eu imagino se John tem alguma noção — intuição paternal reprimida, talvez — de que está a poucos metros de sua filha.

Meu pai levanta a cabeça, ajeita o boné e sorri para ninguém em específico no carrossel. Ainda estou em dúvida se um dos fedelhos pode ser meu meio-irmão quando o homem roda nos calcanhares, empunha a filmadora e se embrenha na multidão pelo sentido oposto ao nosso. Merda. É idiota, mas sinto que se perdê-lo de vista nunca mais o encontrarei novamente.

— Preciso segui-lo. — Eu me desvencilho de Colin. — Vou levar Miado comigo, vocês curtam o parque.

— Calma aí, Sam! — Colin esganiça a voz. — Eu vou com você.

Ambos olhamos pra Amanda em expectativa, e ela ergue as duas mãos ao lado da cabeça.

— Foi mal, doidinhos, mas eu vou fazer o meu ingresso valer. Sabem que eu gasto dinheiro, mas não à toa. — Amanda sorri cinicamente para o irmão.

— Ei, não é à toa. Investigar o pai da Samantha também vale o ingresso.

— Vamos logo, Colin! — Eu o puxo pelo antebraço, ansiosa porque meu pai está se afastando.

— ENCONTRE A GENTE NA SAÍDA EM MEIA HORA! — Colin berra.

Amanda chacoalha um braço no ar.

— NÃO GARANTO NADA!

Eu diferencio papai no parque sempre pelo boné e os passos meio desengonçados graças à filmadora que tapa seu olho, provavelmente prejudicando o equilíbrio. Ele tem ombros largos e panturrilhas grossas. A parte de trás da cabeça já está perdendo um pouco para a calvície. Confesso que é estranho enfim associar um ser humano real, o qual estou perseguindo agora mesmo, ao cargo de meu pai. Depois que todo o mistério termina, pode ser relativamente desafiador lidar com a descoberta. Eu preciso treinar mais o que dizê-lo no teste amanhã.

Oi, prazer, eu sou Samantha, sua filha biológica que você pode ter ou não ouvido falar antes. Quer um chiclete?

Eu e Colin paramos a um carrinho de pipoca de distância quando papai para também, a câmera apontada para um amontado de mesas ocupadas.

— Por que ele tá filmando tudo? — Cole se pergunta, arredio.

— Eu não sei. Talvez queira mostrar a alguém? — cochicho.

O garoto dá risada.

— Sam, ele não vai nos ouvir. Você pode falar normal.

— Estamos numa missão de espionagem, Colin! Aja como tal!

Meu melhor amigo sorri e aponta com o queixo.

— Olha, ele está indo para o pula-pula.

Nós nos metemos na aglomeração para segui-lo sem arruinar o disfarce. A área onde as crianças pulam como foguetes tentando alcançar o espaço está mais vazia que as outras, o que logo me provoca certa agonia. Papai continua de costas pra nós, concentrado em seu vídeo, mas não há nada muito concreto que o impeça de nos enxergar.

O pastor-alemão amigável na coleira conquista mais atenção do que o adequado para a missão. Colin aperta minha mão na sua, me assegurando de que estamos bem. Eu aperto a centopeia de Amanda.

— Você estava sabendo desse lance de protetor solar? — ele indaga, o tom meio retraído.

Eu o olho. Seu semblante parece indeciso acerca de seus sentimentos sobre a pergunta.

— Hm. Não. Amanda não tinha comentado. Por quê?

— Sei lá. Eu só acho um pouco... estranho.

— O que é estranho?

Ele gesticula desajeitadamente com a mão livre.

— Protetor solar me remete a praia, praia me remete a biquíni e é estranho ter minha irmã de dezessete anos no meio desses dois.

— A Amanda esteve em uma praia de sutiã e short ainda hoje, Cole.

— Sim, mas não havia ninguém tirando fotos dela. — Ele engelha a testa. — Eu procurei.

Estalo a língua no céu da boca.

Desde que éramos crianças, Colin sofre da mania de incorporar o pai que nenhum de nós jamais teve. Eu desconfio que ele ainda é movido por algumas mentalidades bem arcaicas sobre o homem ser o santo protetor da mulher, mas não reclamo porque meu amigo sabe seus limites entre zeloso e controlador. Dona Tara deveria aprender uma ou duas lições com o garoto.

Vindo de Colin, é atraente. Vindo dela, é praticamente insalubre.

— Eu diria que você está se preocupando demais — aproximo os lábios do ouvido dele —, mas aposto que já sabe disso.

Colin vira o rosto e me olha nos olhos, as írises esverdeadas agitando-se em cima das minhas. Estou totalmente entretida pela troca de olhares, até que percebo meu pai esbarrar em uma mulher e pedir desculpa em alto e bom som. Com a voz dele, é de imediato que me esqueço de Colin e volto para John. Nunca tinha o escutado falar. É como escutar o barulho da chuva pela primeira vez, e me conforta de maneira igual. Papai tem uma voz gentil, marcante, com uma raspa de rouquidão na maior cadência.

Eu queria tê-lo ouvido me ninar com histórias de princesas a infância toda.

Papai se vira, sem aviso, e subitamente está quase de cara para os Três Espiões Demais (Miado incluso, é lógico).

Meus olhos se trombam desajeitadamente com os dele, no contato visual mais desconfortável do século. Meu pai está olhando pra mim.

Eu quase caio na besteira puramente nervosa de sorrir, antes do resfolegar surpreso de Colin me lembrar de que não deveríamos ser vistos. Papai não pode nos reconhecer. Eu me recuso a correr o risco do homem achar que sou uma lunática pelas razões erradas.

Me coloco diante de Colin, salvando nós dois da observação curiosa de papai, e cubro a boca de meu melhor amigo com a mão para beijá-lo de mentirinha. Com o braço, eu me penduro no garoto e omito o que não está acontecendo com meu ombro.

Colin arregala os olhos, Miado late. Agora eles é quem estão parecidos. Minhas pupilas dilatadas de desespero lhe imploram para ir na onda.

Colin relaxa um tantinho, contorna minha cintura, e os lábios se mexem sob meus dedos para conter a gargalhada. A vermelhidão das bochechas dele se assemelha à do ferimento em sua testa.

Eu teria sorrido se não estivesse exageradamente apreensiva, não só pelo meu nariz encostado ao de Colin, como também pela empolgação indevida de Miado. Cão danado. Se ele atrapalhar meus planos mais uma vez, não vou perdoá-lo por um mês inteiro.

— Funcionou? — eu falo como uma ventríloqua, porque minha boca continua grudada no dorso da mão. — Papai foi embora?

— Foi — Colin responde, da mesma forma. — Mas acho que ele meio que filmou a gente antes.

Eu recuo, trêmula, e olho ao redor. Nem sinal de John. Apenas algumas mães nos olham com certo desdém de censura, como se fosse absolutamente condenável não beijar um amigo na frente de umas crianças.

— Cale a boca. — Dou um peteleco no peitoral de Colin. — Por que ele filmaria?

— Deve ser porque a gente atua muito bem.

Exibo um sorrisinho tímido.

— Foi mal. Eu entrei em pânico.

— Não se desculpe. Seu único erro foi não ter me beijado de verdade.

Ergo as sobrancelhas.

— Bem... eu não sabia se tinha o seu consentimento.

Colin assente, grato pela minha consideração.

— Você tinha. Achei que estivesse bem claro.

— Não muito desde os meus doze anos.

Colin sorri, eu sorrio.

É sempre engraçado lembrar de quando nós nos beijamos no meu aniversário para que eu pudesse praticar antes de um encontro secreto com um namoradinho da época. Era pra ter sido uma acordo privado entre eu e ele, mas é claro que Amanda nos flagrou na traseira da casa e nunca mais largou do nosso pé. Ela jura até hoje que vamos acabar juntos um dia, mas não tenho tanta certeza.

Minha vida não costuma imitar o melhor dos contos de fadas tão bem quanto imita o pior.

— Vamos pro hotel, Rapunzel. — Flynn Ryder estica o braço por sobre o meu ombro, nossos dedos ainda entrelaçados. — Já tá quase passando da sua hora de dormir.

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