𝚘 𝚛𝚎𝚝𝚘𝚛𝚗𝚘

𝟸𝟼 𝚍𝚎 𝚓𝚞𝚕𝚑𝚘 𝚍𝚎 𝟸0𝟷𝟼 

𝙷𝚘𝚛𝚊 𝟸𝟸 𝚍𝚊 𝚟𝚒𝚊𝚐𝚎𝚖 𝚍𝚎 𝚟𝚘𝚕𝚝𝚊

Aparentemente, o buraco com John Barker é bem mais embaixo do que todos nós imaginávamos.

De acordo com Eric, o informante de mamãe, a polícia já anda de olho no empresário há tempos por suas atividades suspeitas com menores de idade. A Ineffable Models foi investigada por produção de imagens de pré-adolescentes em situações sexuais e John já se encrencou diversas vezes por diferentes condutas predatórias com os agenciados de sua empresa.

Ele é tão podre que uma rápida olhada no Google teria nos alertado, como Dona Tara fez questão de esfregar em nossas caras.

— Extremamente irresponsável — repete ela, na lanchonete de posto onde paramos para tomar café. — Roubar o carro do seu pai, Colin? Você não tem juízo, menino?

Do outro lado da mesa, meu melhor amigo exibe um sorriso orgulhoso.

— Ele deve tá muito puto — comenta o garoto.

— E com razão. — Mamãe abocanha umas rodelas de salsicha. — Já pensou se ele só expulsa você de casa, ao invés de te emancipar?

— Nah. — Colin une as mãos atrás da cabeça, em uma pose relaxada. — Eu chantageei bem aquele velho desgraçado.

Ninguém resiste a risadinhas, e mamãe esconde o sorriso atrás da caixa de suco.

— Eu vou morar com você quando for expulsa também — Mandy afirma.

— Tudo bem, mas eu não vou te sustentar, não.

— E eu lá quero ser sustentada por homem? — ela protesta, ofendida. — Me poupe. Eu vou arranjar um emprego e ganhar mais do que você.

— Ah, é. Porque isso deu muito certo da última vez.

Antes que os irmãos engatem em um pingue-pongue eterno de provocações tiranas, Weston difere tapinhas nas costas de Colin.

— Você é um bom garoto, Colin. Cuidou muito bem da sua irmã e da Sam.

O sorriso dele se torna oblíquo, e Colin o lança diretamente pra mim. Amanda revira os olhos.

— Sabe como é, né — o gêmeo caçoa. — A gente não tatua duas meninas no braço à toa.

Eu gostaria de criticar a sua mania de bancar o salvador das donzelas indefesas, mas perco minha razão quando uma das donzelas em questão (eu) age como a maior idiota. Já pedi milhões de desculpas à mamãe por ter contrariado tudo o que ela sempre me disse sobre não confiar em estranhos. Se não fosse por Miado, eu realmente acho que teria me ferrado na arapuca asquerosa de John.

E, considerando que levar Miado foi exigência de Colin, acho que ele está no seu direito de bancar o que quiser.

— Eric disse que John autorizou que a polícia examinasse o computador dele e a casa. — Mamãe olha as mensagens do policial na tela do celular. — Eles estão procurando o quê?

— Provavelmente possessão de pornografia infantil — Colin responde, baixinho.

Logicamente, o clima na mesa pesa.

Por mais horrível que pareça, nenhum de nós tem motivos para subestimar o mau-caratismo de John depois dos relatos de mamãe a seu respeito. Se o cara já praticamente fabricava a própria pornografia nojenta há dezessete anos atrás, eu só não imagino como ele deve aproveitar uma ferramenta poderosa que nem a internet hoje em dia — e minha comida por pouco não volta pela garganta.

— Isso é crime, certo? — Mandy pergunta, nervosa. — Se eles acharem algo, John está preso.

— É. As sentenças são de duas décadas pra perpétua — responde o garoto.

— Mas se ele autorizou que examinassem suas tralhas, é porque não deve ter mais nada a temer — eu argumento. — Ele já deve ter deletado tudo.

Meu melhor amigo meneia com a cabeça, remexendo as torradas murchas.

— Aposto que sim, mas a polícia tem maneiras de recuperar arquivos deletados. — Colin encara a minha mãe, sério. — Nenhum crime é perfeito. Eles vão pegá-lo.

Dona Tara retira uma unha roída da boca e larga o talher na borda do prato.

— Eles já teriam o pegado se eu o tivesse denunciado. — Ela cruza os braços sob os peitos, inconformada. — Desperdicei a chance de tirar a liberdade de um maldito pedófilo por pura covardia.

Eu acaricio seus ombros em consolo. O passado de minha mãe respingando remorso injustamente sobre ela é só mais uma razão para que eu me sinta péssima pela bagunça que causei.

— Não foi covardia, amor. — Weston estica a mão para tocar a dela. — O pedófilo é ele. Você era apenas uma garota assustada.

— Uma vítima — eu emendo, concordando com o meu padrasto.

Admito que gosto mais dele agora, sobretudo com a descoberta de que Weston não é tão carne nova quanto parecia. Mamãe revelou que eles já estão juntos há anos e que o homem só demorou tanto para ser assumido graças aos receios dela em confiar no sexo oposto e sua superproteção obsessiva comigo.

Eu era só uma criança quando mamãe o conheceu numa loja de brinquedos. Weston foi o cara mais paciente da história.

Eu perdi todas as minhas desculpas para desconfiar de suas boas intenções ou me enciumar da atenção que ele recebe de Dona Tara. Weston aguardou uma década para tê-la de verdade e posso enxergar o quanto a merece. Agora que meu julgamento está finalmente livre do filtro da implicância, eu noto que eles foram feitos um para o outro, e pensar em mamãe vestida de noiva não é mais horrível como me atirar do topo da torre.

Até porque a torre, igual a implicância, também deixou de existir.

— Ele podia ter machucado você por um erro meu, Sam — Dona Tara murmura. — Podia ter machucado centenas de outras meninas sem que ninguém nunca dissesse nada.

Nós nos entreolhamos, acuados. Lembrando da minha noite de terror com John e do que ele provavelmente seria capaz para arrancar o que queria de mim, a insinuação de mamãe não soa tão absurda.

— Tomara que ele nunca tenha chegado a esse ponto. — Weston curva o rosto, verde de enjoo.

— Ou, se chegou... — Colin é mais realista, e mordisca o lábio ao hesitar. — Tomara que arranjem forças para falar quando ele for preso.

Quando. Eu aprecio a confiança de Colin.

Continua difícil acreditar no que John realmente teria feito comigo se não fosse pelo meu cachorro rompendo o ligamento de seu joelho no momento exato — segundo o policial Eric. Se eu estivesse completamente desamparada e sozinha, poderia ter sido violentada ou pior.

Mesmo que John não fosse se safar do crime com a mesma facilidade que já se safou antes, eu ainda ganharia traumas muito mais obscuros do que um jantar de pavor e ameaças numa viela vazia — tudo por uma besteira tão grande como ter um pai. O meu pai verdadeiro (aquele que errei por felizes galáxias de distância) não é tão ruim assim. Eu pesquisei no Google.

Seu nome é Aidan, ele tem quarenta e dois anos, e é um cara normal com atitudes normais. Nós nos falamos um pouco por chamada de vídeo tão logo a bomba sobre sua filha desconhecida foi assimilada.

Eu estava no banco traseiro do carro de Weston, com o celular dele nas mãos, à 90km/h na estrada atrás de Colin e Amanda. Papai confirmou que minha marca de nascença é só minha mesmo, sem históricos anteriores nas famílias, e me mostrou seus cinco cachorros com os cinco nomes dos integrantes dos Beatles. Ele é careca; raspou a cabeça por uma aposta e não parou mais. Eu também contei muito sobre mim: Meus programas de tevê favoritos, as matérias que odeio no colégio, minha primeira palavra.

A diferença com John é gritante e, acima de tudo, bonita. Aidan é legal e se comporta como um pai pra valer — sem bizarrices. Exceto pelas suas tendências infiéis na juventude, eu não tenho nada para criticá-lo.

Imitando a Dona Tara, o homem foi brutalmente honesto comigo sobre a época em que fui concebida. Aidan disse que é grato por mamãe ter lhe escondido a verdade, pois provavelmente não teria sido maduro o suficiente para lidar com a paternidade como deveria.

Eu teria fugido, Sam. E não sei se a sua mãe ou você me perdoariam.

Não acho que ele pretenda jogá-la na justiça. Ambos também andam conversando e sinto que se entenderam bem — eu poderia fazer um balde de pipoca só pra assistir as interações dos dois. Meus pais.

Só o que nos separa agora são as muitas milhas entre Rochester e Quebec, que é onde Aidan vive. Ele já falou conosco sobre uma possível viagem para me conhecer pessoalmente, o que estremeceu meus ossos de animação e despertou em mamãe a Gothel que ela nunca vai eliminar 100%.

Se a Samantha for pra aí, eu vou junto. Você não namora mais com aquela professora caquética, não, né?

Cruz credo, Tara. Acho que ela até já bateu as botas.

Que Deus a tenha.

Talvez seja cedo para tirar conclusões precipitadas, mas desconfio de que consegui o sapatinho de cristal que sempre desejei.

No banheiro do posto, molho minha cara cansada com uma mãozada de água, e inspiro fundo o ar com cheiro de mijo característico. Em frente ao espelho, sorrio para o pingente de sol em meu colo. Mamãe disse a meus melhores amigos que só não ficará com raiva deles pela ajuda na fuga porque o colar é uma graça. E eu, apesar de não ser mais a Rapunzel dos dias atuais, nunca mais vou ousar tirá-lo novamente.

A porta de metal range e Mandy aparece logo atrás dela. Sequer tenho a chance de olhar para a garota antes que seus braços estejam apertados à minha volta, o peso de seu corpo quase cedendo sobre o meu.

— Uau. — Dou uma risadinha fina, esmagada no abraço ao ponto de nem poder retribuir. — Quanto tempo eu passei aqui?

— Tempo demais — Amanda responde, a cabeça deitada em meu ombro. — Foi o ovo frito, não foi?

Gargalho mais alto e espirro gotinhas de água da torneira nela. Amanda se afasta, orgulhosa da própria piada.

— O que aconteceu? — pergunto. — Você geralmente não é tão grudenta.

— Ah, bobagem. É que o quase sequestro da sua melhor amiga pode mexer um pouco com uma pessoa. — Ela me cutuca na costela com o cotovelo. — Fiquei preocupada com você, tapada.

Eu assinto com a cabeça, encabulada.

— Me desculpe. Eu deveria ter escutado vocês.

— Tá de boa. Quem sou eu pra falar? Nós duas nos cegamos pelo o que mais queríamos na vida. — Amanda dobra as mangas do moletom para lavar as mãos na pia ao meu lado. — Acho que prova que temos paixão.

Brrr. Os calafrios me congelam ao lembrar das fotos de Amanda no poder de John Barker. É reconfortante saber que ela não estava posando de nenhuma forma inapropriada — Colin teria sido o primeiro a reparar —, mas não evito a suspeita de que John talvez nem precise disso para ficar contente. Se o cara inventou até que eu estava dando em cima dele, pelo amor de Deus, sua criatividade deturpada não deve ter limites.

Eu espero que ele seja preso e, sua agência mequetrefe, queimada.

— Nem acredito que Colin foi o único a não ser enganado — murmuro, para espantar os pensamentos ruins.

— Não fala em voz alta ou ele pode ser invocado da privada para se gabar. — Amanda engancha meu pescoço com o braço, ao mesmo tempo em que eu tusso uma risada. — E é bom você vir com a gente pelo resto da viagem. Para eu não esganá-lo com o cadarço do tênis, sabe.

Eu olho pra ela pelo rabo do olho, sobrancelhas franzidas e um sorrisinho torto.

— Pra não esganá-lo, é? Sei. Você tá é com saudades.

— Só um tantinho. — Amanda enfatiza uma minúscula lacuna entre os dedos. — Mas também é muito chato viajar com garotos, ainda que um deles seja um cachorro. — Ela afunda um indicador na minha bochecha. — Preciso de outra garota pro time, Sam. Tá faltando você.

Nós passamos emboladas pela porta do banheiro, meu coração quentinho com a consideração de Amanda. Eu avisto mamãe e Weston do lado de fora, brincando com Miado, ao passo que Colin reabastece o Chevrolet por segurança nas bombas. Seu cabelo loiro mal esvoaça com o vento seco da estação. Parece que o super-herói está precisando de um banho.

— Minha mãe e Weston pediram pra você me levar pro outro carro? — eu brinco, com uma pitada de seriedade.

— Não... — Amanda sorri. — Mas eles definitivamente estão precisando de um tempo sozinhos, não acha?

— Não. — Sacudo os ombros.

O que posso dizer? Velhos hábitos são difíceis de largar.

— Relaxa, Samantha. — Ganho uma palmada no traseiro. — Eles não podem aprontar nada demais em um veículo em movimento.

— É, vai nessa.

Por fim, eu concordo em me transferir do Corolla de Weston para o Chevrolet furtado do Sr. Shields. Amanda está radiante e Colin sorri pra mim como se eu tivesse feito minha primeira escolha certa em milênios. Sua irmã é quem dirige o carro a princípio, muito mais confortável com o volante e cantando vários countrys memorizados da finada playlist.

Voltar pra casa é muito mais divertido do que fugir dela. Estou voltando para o lar que eu sei que é meu, protegida pela companhia visível de mamãe no retrovisor — e meu pai ainda me liga no celular peba para conhecer meus amigos.

É um bom sinal que Colin se dê bem com ele de imediato. Os dois falam sobre suas tatuagens, já que Aidan tem um leão e uma águia nas costas.

Você tem os olhos da minha filha no braço? Puxa, aí fica difícil competir.

Eu guardo o sorriso na mão, abobada pela naturalidade que o minha filha sustenta em meus ouvidos, e Amanda zomba de mim com cócegas em meu pescoço.

Pela uma hora e meia que sobra de estrada, os gêmeos trocam de lugar na direção e meu pai se despede porque precisa ir trabalhar. É um amanhecer de quarta-feira. Estamos tão atrasados para devolver o carro de Dean que eu temo que os gêmeos sejam recebidos a vassouradas na porta de casa, embora meu melhor amigo se reacomode no banco do motorista como se estivesse ansioso para levar o esporro.

— O que é que há com você? — pergunto, risonha.

— Ah, nada. — Colin torce os punhos no volante. Claramente há alguma coisa. — Só quero chegar logo.

— Alguma razão especial?

Amanda mete a cabeça no vão entre os bancos.

— A Camila mandou foto dos documentos da emancipação preparados. — Ela difere tapinhas no ombro de Colin. — Agora só falta o garotão assinar.

— Mentira! — Eu quico no banco com animação, e arregalo meus olhos sorridentes. — Por que não me disse antes, Colin?!

Colin grunhe, fuzilando a irmã pelo espelhinho retrovisor, mas nem sua tentativa de carranca ofusca o brilho alegre em seu rosto. Ele conseguiu mesmo, sem ninguém matar ninguém durante o processo.

— Eu queria meio que fazer uma surpresa — ele explica, e me oferece um sorriso. — Você sempre torceu pela minha emancipação, Sam. Sei que é uma notícia tão boa pra você quanto é pra mim.

— É uma notícia ótima! — exclamo, histérica. Não resisto a pular para abraçá-lo de lado, ao passo que suas risadas preenchem o veículo pequeno. — Meus parabéns, Cole! Você vai ficar definitivamente por sua conta!

— Jesus — Amanda murmura. — Arrumem um quarto.

No fim das contas, todo o caos que regeu os últimos dias valeu à pena nos pequenos detalhes. Mamãe foi obrigada a confrontar uma parte não muito agradável de sua vida, mas abriu caminho para curar feridas antigas e possibilitar a punição de um pedófilo. Amanda e eu aprendemos que o mundo real não é feito de flores, e eu resolvi o mistério sobre o meu pai com bastante antecedência — Dona Tara falou que só pretendia me contar quando eu completasse dezoito anos.

Colin vai ter a merecida emancipação que merece. De repente, estou feliz por ele ter furtado o Chevrolet dos pais para me ajudar na minha ideia de jerico. Estou feliz por termos ido e voltado também, juntos.

É o que importa, não é? União. Se estivéssemos em um conto de fadas, ela seria a lição de moral.

— Dá pra acreditar? Emancipado. — Meu melhor amigo se apruma no volante, mirando o horizonte com um ar de esperança. — Acho que combina comigo.

— Devia colocar no lugar de Shields — Amanda sugere.

Colin engelha a testa e pende a cabeça, pensativo.

— Quer saber? Talvez eu coloque. — Ele sorri, sapeca. — Só para irritá-los uma última vez.

Eu checo o meu mapa para me localizar e Amanda diz que só estamos há duas cidades de casa. Ela acidentalmente cochila no banco de trás com Miado, ninada pelas suas melodias de vaqueiro, e eu fico trocando mensagens de texto com a Dona Tara para me distrair.

Mãe: Já desenterraram mais podres de John em Woodland. Eric está me atualizando.

O torpedo resgata a lembrança lamentável de que ainda devo um pedido de desculpas à Colin, por ter sido uma vaca com mais alguém que só tentou me proteger dos estragos que esses podres poderiam causar.

Meu maior erro foi confiar em John mais do que em meu melhor amigo de infância. Eu queria tanto um pai que estava quase disposta a sacrificar o mundo por ele.

Enquanto ensaio as desculpas em minha mente, nós já cruzamos os limites de Rochester, e eu começo a reconhecer o interior afastado do centro. A cidade natal de mamãe era bonita, mas eu prefiro muito mais a minha. Os edifícios abandonados, as calçadas arruinadas, as luzes e a movimentação frenética são um retrato fiel da modernidade, onde segredos imundos acham um pouco mais de obstáculos para se esconder. Novamente, o sentimento de segurança se fortalece em minhas entranhas, e eu enfim pigarreio a fim de chamar a atenção de Colin.

O garoto me olha de lado, intrigado.

— Sinto muito por como agi naquele dia — eu murmuro de uma vez, apesar das palavras meio constrangidas na pronúncia. — Se eu tivesse me dado mal sem Miado, a nossa última conversa seria uma briga, e eu com certeza acabaria no Inferno. — Bufo, irritada comigo mesma. — Me desculpe por ser tão cabeça-dura.

— Vira essa boca pra lá. — Cole se remexe no assento, desconfortável. — John não ia ter as bolas de... te matar.

Eu dedico ao para-brisas um semblante cético.

— É, bom. Graças às pulgas que você colocou na minha orelha, eu não precisei contar com a sorte. — Difiro um peteleco fraquinho na testa dele, perto do arranhão ainda inflamado.

— Falando em pulgas, o real herói foi Miado — diz ele, bem mais modesto do que Mandy reclamou.

— Vocês dois foram. Aproveite as comparações com cachorros agora.

Colin acha graça, bem-humorado.

— Só estou feliz por você estar bem, Sam. — Ele para o Chevrolet no sinal, e cruza os braços na altura do peitoral. — Já tinha até me esquecido das merdas que você falou.

Minhas sobrancelhas se arqueiam para o tom passivo-agressivo.

— Ah, é. Eu tô vendo que você esqueceu mesmo. — Eu me inclino por cima do rancor de Colin, contornando seu pescoço com um braço e apoiando o queixo em seu ombro. De tão próxima, consigo admirar a constelação que enfeita sua pele, como as sardas e os pontos de barba no maxilar. — Obrigada por sempre cuidar de mim, Flynn Ryder — finalizo, mais suave. — Prometo que nunca vou desprezar isso de novo.

Colin vira o rosto com agilidade, nos posicionando a meros centímetros um do outro.

Os seus olhos me olham nos meus pela primeira vez desde que entrei no carro, mas logo escorregam para a minha boca, fazendo a vistoria geral pelo nariz e bochechas. As respirações se misturam no curto espaço que nos separa, até transformarem-se em uma só, inspirando e expirando a tensão afrodisíaca que nos embriaga. Quem avança para um beijo sou eu, tímida, só um encostar de lábios que pulsa em meu peito. Colin corre com as mãos para o meu pescoço, desesperado para não me soltar antes mesmo de me segurar. Com força, tesão, dedos carimbados pela minha pele.

O gelado do piercing na boca dele me desperta em regiões que nem quero mencionar. A língua desliza com delicadeza em meu lábio inferior, trazendo ao beijo um sabor um pouco mais indecente. Eu amasso o tecido da camiseta do garoto com os punhos para calar gemidos certamente vergonhosos que me arranham para sair. O fôlego que falta não é o bastante para atrapalhar qualquer ato, mesmo que morramos sufocados.

É apenas uma buzina cruel que nos afasta em um salto culpado, também acordando Amanda e meu cachorro bruscamente.

O semáforo brilha verde. O dono da primeira buzina parece ser Weston, e os carros atrás dele agora o copiam com a mesma impaciência.

Eu me retraio no banco do passageiro e limpo a garganta, falhando miseravelmente em conter o sorrisinho que formiga em meus lábios. Colin nem tenta conter o seu, e simplesmente pisa no acelerador sem a mínima preocupação com o nosso redor.

— Colin, dá pra ficar esperto, por favor? — Amanda está grogue de sono e descontente por ter sido acordada. — Eu estava tendo um sonho incrível em que você não moscava no volante.

Colin só ri, quase lesado.

— Foi mal, Mandy — ele diz, sua encarada sacana me atinge feito um dilúvio de proporções bíblicas. — Não posso garantir que não vai acontecer outra vez.

Balanço a cabeça, recolhendo um sorriso ainda maior nos lábios, e uso de todo o meu autocontrole para não encarar Colin de volta — não que as imundícies do meu tênis no porta-luvas sejam mais interessantes, mas são devidamente menos tentadoras.

O garoto se inclina pra perto, e juro que nunca se pareceu tanto com o moleque de onze anos que me perturbava nos intervalos da escola.

— Agora, sim, você está desculpada — ele sussurra, atrevido.

Um tapa; é mais uma das coisas que Colin merece.

Nós paramos primeiro na minha casa para libertar Miado e descarregar as bagagens. Os gêmeos sabem muito bem que não são mais bem-vindos na casa dos pais, e minha mãe não se opõe em alojá-los no quarto de hóspedes até que Colin resolva os trâmites da emancipação e do aluguel do apartamento em que ele está de olho. Ao que tudo indica, vamos morar juntos por um tempinho — incluindo Weston. Eu tenho quase certeza de que ele já se mudou permanentemente e apenas decidiu não me comunicar.

No meio do passadiço para dentro da residência, com sua última mala na mão, mamãe empaca de olhos arregalados para o celular.

— Sam — ela me chama, a voz densa e atipicamente grave.

Eu também empaco alguns passos adiante, na varanda, e olho para Dona Tara em certa confusão.

— O que foi? — indago.

Mamãe ergue a vista e gruda em meu rosto, perplexa.

— Ele foi preso — murmura. — Por desacato policial, mas foi preso. John está preso.

Preso!, eu quase grito para a vizinhança inteira ouvir através dos muros. No entanto, acho que meu sorriso já fala por si só.

Mamãe treme da cabeça aos pés, abalada, e eu me apresso em agarrá-la assim que percebo que ela está prestes a cair. Não sou forte o suficiente para mantê-la de pé, mas estou logo ao seu lado quando nossos joelhos encontrar a grama. Dona Tara chora compulsivamente em meu peito, como raras vezes a vi chorar, e minha reação é de terror e alívio simultâneos. Terror porque parece que ela vai afogar o país, e alívio porque sei que seria um gesto de felicidade. As lágrimas que escorrem pelas suas bochechas são agridoces, substituindo um pouco da culpa dos anos de silêncio e medo por um gostinho de justiça, para variar.

Eu acaricio os cabelos de mamãe, com minhas próprias lágrimas se multiplicando nos olhos. Três dias atrás, eu fugi dela para buscar o pai que sempre quis conhecer. Estava sufocada, descontente, e pensei que precisava cruzar centenas de quilômetros para realizar as minhas mais fabulosas fantasias; mas não precisava. Toda a fantasia sempre esteve aonde eu estou.

Bem aqui. Porque, sem sombra de dúvidas, o meu final feliz ainda mal começou.

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